Barragem de São Roque infesta rio com algas em SC: atingidos dizem conviver com ‘lago morto’

Infestação de plantas é consequência da eutrofização extrema do reservatório da Usina Hidrelétrica de São Roque

Barragem de São Roque infesta rio com algas em SC: atingidos dizem conviver com ‘lago morto’

Nos últimos dias de abril de 2022, durante um período de fortes chuvas em Santa Catarina, a empresa Engevix começou a encher o lago que serviria como reservatório de água para operação da Usina Hidrelétrica de São Roque, inundando uma área onde antes viviam 1,3 mil pessoas. Araucárias centenárias e a vegetação nativa foram alagados, junto com estradas, cercas, muros, galpões e até um cemitério.

O rio Canoas, tão vivo na memória das famílias que habitavam suas margens, foi transformado, à força de uma barragem de 67 metros de altura, num lago de 62 quilômetros quadrados – “morto”, denunciam as mesmas famílias.

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“Um lago morto, sem vida, meu Deus, totalmente. Se comparar com o jeito que era antes o rio assim com a vida fluindo, agora é um lago morto, parado, sem vida”, descreve a agricultora Cristiane Terezinha Macalli, que, junto do marido Lindomar, vivia à beira do rio, no município de Brunópolis, e foi deslocada para a margem da nova represa.

“E agora está todo mundo desesperado por esse negócio que está acontecendo aí na beira”, continua, referindo-se à veloz proliferação de plantas aquáticas que está transformando grandes partes do lago em um tapete verde. “Está crescendo, cada dia ele está crescendo, está tomando conta.”

A bióloga e doutoranda em ecologia Mariah Wuerges, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), explica que o fenômeno é resultado da decomposição de tudo o que ficou debaixo d’água com o enchimento da barragem, um processo chamado de eutrofização extrema.

O que aconteceu, explica Wuerges, foi que a empresa não realizou o corte da vegetação como deveria ser, antes de fechar as comportas da barragem.

“Eu conversei com as pessoas que moram lá, 75 pessoas, no meu doutorado. E a maioria das pessoas afirma que, logo depois do enchimento da barragem, a água tinha um cheiro de podre”, relata. “O que acontece é que aquela vegetação vai apodrecendo, vai se acumulando.” 

Registros da vegetação submersa no lago da barragem de São Roque / Arquivo/MAB

Apesar de tudo ter começado em marçoo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), órgão responsável pela licença de operação da hidrelétrica, diz ter sido informado do caso apenas no dia 24 de abril, pela Polícia Militar Ambiental (PMA).

No Boletim de Ocorrência obtido pelo Brasil de Fato, a PMA confirma a proliferação de “algas macrófitas, possivelmente decorrentes da decomposição da vegetação submersa, quando do enchimento do lago da Usina Hidrelétrica São Roque S/A”. O órgão afirma ainda que o fenômeno pode “deteriorar a qualidade da água” e que as algas “podem liberar toxinas poderosas que geralmente levam à morte de peixes e animais em grande escala”.

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“O que a gente está dizendo é que a água está poluída, e a água está poluída, porque o povo está dizendo que está poluída”, enfatiza Wuerges, do MAB.

Antes de permitir o enchimento da barragem, o mesmo IMA havia alertado – na Instrução Técnica (IT nº 15/2022) – para a necessidade de supressão da mata e retirada das estruturas das propriedades nos locais que seriam alagados. Em 2015, o Ministério Público Federal também havia recomendado a paralisação das obras e anulação das licenças ambientais do empreendimento, alertando para os impactos sociais e ambientais do futuro.

Em sua defesa, a empresa afirma que a proliferação de plantas se dá por conta da disponibilidade de nutrientes, mas que não há danos à saúde e à fauna aquática. Também diz estar removendo as plantas e monitorando a qualidade da água.

Com o fechamento da barragem durante um período de fortes chuvas em Santa Catarina, o reservatório encheu além do previsto e alagou estruturas de propriedades que não estavam no plano de inundação / Arquivo/MAB

Longa história de direitos negados

A barragem da Usina Hidrelétrica de São Roque levou 11 anos para ser construída e, segundo o MPF, atingiu 700 famílias nos municípios de Brunópolis, Vargem e São José do Cerrito. A Engevix afirma ter garantido alguma forma de reparação a 500 famílias – e desembolsado R$ 300 milhões na aquisição de terras.

“Muitas pessoas, muitas famílias ainda ficaram sem seus direitos”, relata a atingida Cristiane Macalli, da comunidade Ramo Verde, em Brunópolis. “Ficaram sem luz e sem água aqui nas comunidades mais próximas da represa.”

Ela e o marido estavam sem energia em casa no momento da entrevista ao Brasil de Fato. “Os postes de luz estão debaixo do lago, ficou só as pontas de fora”, conta. A conexão provisória que fizeram com a igreja da comunidade teve de ser desligada em função de uma reforma. Para buscar água, eles precisam percorrer 1 quilômetro até o poço aberto pela empresa. “Nós temos carro, mas o vizinho vai de carrinho de mão.”

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Iniciada em 2011, a obra foi interrompida quando estava quase pronta, em 2016. Mas não foi por conta da falta de cumprimento dos acordos ambientais e sociais, como constatou o MPF à época. O que ocorreu foi a falência da Engevix após ter seus principais executivos presos pela operação Lava Jato. A construção só foi retomada em 2021, após recuperação judicial, já administrada pela Nova Engevix.

“Antes de 2016, foram feitos vários despejos, despejos bem violentos. Famílias foram realocadas para centros urbanos sem nenhuma renda, sem nada”, rememora a coordenadora do MAB Mariah Wuerges.”E as comunidades ficaram paradas todos esses anos sem nenhum tipo de arrecadação. As pessoas empobreceram muito nesse período.”

Com a obra suspensa, e a empresa falida, o processo de negociação das famílias atingidas foi também interrompido – e a perspectiva de reparação ficou mais longe.”Tem pessoas que ficaram muito doentes, sabe? Teve muito problema de depressão, problemas psicológicos”, conta Macalli.

Famílias atingidas pela construção da UHE São Roque mantiveram um acampamento ao lado do canteiro de obras durante 9 anos, em busca de direitos / Arquivo/MAB

“Sem festa de igreja, sem dinâmica comunitária, uma desestruturação total. Sem perspectiva, sem poder investir na terra, sem saber para onde vai tudo isso”, sintetiza Wuerges. Segundo ela, quando a obra foi retomada, a empresa reiniciou a negociação com base em um cadastro feito em 2012. “Na reparação das famílias, ela desconsiderou esses cinco anos.”

Ela cita o exemplo dos jovens, que não estavam no cadastro econômico – “que já foi uma conquista dos atingidos” – antes da paralisação das obras. “Eles continuaram plantando, viraram maior de idade, e, mesmo assim, a empresa não reconheceu o direito de agricultor.”

Barragem cheia, famílias ilhadas e empresa “sem dinheiro”

Enquanto isso, no mundo dos negócios, a agora Nova Engevix precisava correr atrás do prejuízo. Para acelerar a conclusão da barragem, chegou a ter mais de mil trabalhadores no canteiro de obras. Endividada, em 2019 a empresa já havia vendido boa parte da energia que só começaria a gerar em 2022.

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A pressa para começar a operação era grande. A empresa obteve autorização para encher o reservatório, e decidiu fazê-lo em temporada de chuvas fortes na região. Segundo o MAB, a água subiu rapidamente e além do previsto, cortando estradas da região e deixando 30 famílias “ilhadas”.

“Muita lavoura com agrotóxico foi inundada. Eu fui esses tempos lá na casa do seu Ezequiel e a gente encontrou um medidor de venenos. Então o rio lavou monte de veneno também. Tudo o que estava na beira do rio que não ia ser alagado”, completa Mariah Wuerges.

Plantação de soja é inundada durante enchimento da barragem. Ao fundo, vegetação da Mata Atlântica começa a ficar debaixo d’água / MAB

Reservatório cheio, a autorização Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para testes chegou em junho de 2022, e, em setembro, a empresa recebeu licença para operar comercialmente. Naquela data, a notícia foi comemorada pela coluna Radar, da revista Veja, que tornava público: a receita bruta anual estimada é R$ 135 milhões de reais.

Só que para as famílias que, mesmo quando receberam algum tipo de reparação, ainda convivem com falta de direitos básicos como acesso a água e energia elétrica, o discurso é outro.

“A empresa diz que estão sem dinheiro, sem financeiro, né? Dizem eles fizeram a venda dessa energia que eles estão gerando agora, mas para São Roque mesmo, estão sem financeiro”, relata Cristiane Macalli, sobre as recentes reuniões de negociação – por videochamada – feitas com a empresa.

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De acordo com o MPF, após o enchimento do reservatório, em maio, as comunidades de Vila Brasília, Ramo Verde, Lajeados Borba, Aterrados, Marombas, Passo São João, Passo do Teodóro Bento e Glória, pertencentes aos municípios de Vargem, Brunópolis e São José do Cerrito, sofreram graves consequências das ações e omissões da empresa gestora da barragem.

Em julho, o IMA aplicou uma multa por danos ambientais gerados em função do descumprimento das condicionantes da licença ambiental e por deixar de prestar informações exigidas pelo órgão.



O MAB resumiu as violações encontradas após o enchimento da barragem em documento enviado ao IMA, em agosto de 2022: alagamento de vegetação não suprimida; 20 famílias ribeirinhas sem acesso à água; 15 famílias sem luz elétrica; 30 famílias ilhadas em função das estradas alagadas sem a conclusão de novas ligações terrestres; destruição do salão da igreja e alagamento do cemitério da comunidade Ramo Verde; interrupção da travessia de balsa. Na foto, registro de estrada cortada pela inundação da barragem na comunidade de Gasperim, no município de Vargem (SC) / MAB

Consultada pelo Brasil de Fato, a Nova Engevix afirma que “antes do enchimento do reservatório, foram realizadas as ações de supressão de parte da vegetação, remoção das infraestruturas que estavam na cota de alagamento, além da realização de desinfecção e desinfestação das áreas”.

Queda-de-braço desigual 

Como no Brasil não há uma legislação que defina quais são os direitos de famílias atingidas por barragens, a cada novo empreendimento, parte-se da estaca zero. Em resumo, a reparação depende da mobilização das famílias, que precisam disputar uma queda-de-braço desigual com grandes empresas. O resultado, segundo o advogado Leandro Gaspar Scalabrin, é um cenário de “violação estrutural de direitos nas barragens do Brasil”.

Scalabrin atuou na comissão especial do antigo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (atual Conselho Nacional de Direitos Humanos), que entre 2006 e 2010 analisou a situação de famílias atingidas por barragens nas cinco regiões do país.

“Não é um acidente de percurso”, enfatiza o defensor. As violações, ainda de acordo com ele, se repetem nos diferentes tipos de barragem – hidrelétricas, rejeitos de mineração e de captação de água – e, além da falta de reparação adequada, se expressam também na falta de informação e de meios de participação para as comunidades afetadas.

A falta de legislação nacional é apontada como o principal fator de vulnerabilidade para as famílias atingidas. Apenas Minas Gerais e Maranhão possuem leis estaduais. “Não tem uma lei que assegure a igualdade e os direitos dos atingidos em todo o Brasil”, contesta Scalabrin, que explica: “Hoje, um atingido por barragem de Santa Catarina não tem os mesmos direitos do atingido do Rio Grande do Sul”.

Principal bandeira do MAB, a Política Nacional de Atingidos por Barragens teve trânsito no Congresso, sobretudo após a ruptura da barragem da Vale, em Brumadinho, que vitimou 272 pessoas, em 2018. O texto, chamado formalmente de Projeto de Lei (PL) 2788/2019, já foi aprovado pela Câmara dos Deputados, mas está parado na Comissão de Infraestrutura do Senado desde abril do ano passado.

Reparação é inimiga do lucro

Lutar uma luta sem regras claras contra grandes empresas privadas que prezam pelo lucro acima de tudo. Esse é o desafio das famílias que buscam direitos ao se tornarem atingidas por um projeto de barragem no Brasil.

“Embora seja uma concessão pública, uma propriedade nossa do povo brasileiro, o potencial hídrico, no caso de São Roque e de outras, é uma riqueza nacional, como o petróleo, mas ele é concedido a uma empresa privada e ela tem o controle do território do investimento”, explica Scalabrin. “Ela que faz as indenizações, ela que tem as licenças, ela que pratica os crimes.”

As barragens de hidrelétricas produzem, segundo Scalabrin, um “superlucro”, uma vez que o custo de produção da energia é baixo em relação ao seu valor de mercado.

“O potencial hídrico é o petróleo do sul do Brasil. Nós aqui não temos petróleo, não temos gás. Nós temos o potencial hídrico dos rios, o Paraná, o Uruguai, o Mampituba, todos os nossos rios estão barrados e gerando essa riqueza fabulosa que é apropriada por grandes empresas.” 

Edição: Nicolau Soares

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