Mais de trinta anos de resistência e luta por direitos marcam a história da hidrelétrica de Belo Monte
Publicado 27/11/2021 - Atualizado 05/08/2024
Os primeiros estudos do potencial energético do rio Xingu denotam de 1975, quando a Eletrobrás contratou a empresa de consultoria CNEC para fazer o inventário do rio. Em sintonia com o espírito do “milagre econômico”, os dirigentes do setor elétrico se sentiam motivados a acelerar seus projetos, principalmente aqueles considerados de “baixo custo de investimento” (SEVÁ, 1988) – como hidrelétricas em plena Amazônia, em um período em que a preocupação ambiental e social não fazia parte da agenda.
Em 1988, o Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE) apresentou o projeto do chamado “Complexo de Altamira”. Ele era composto pelo barramento Juruá/usina Kararaô, que teria uma capacidade de geração de 11.000 MW e formaria um lago artificial de 1.100 a 1.200 km², a 250 km de distância da foz do Xingu no Amazonas; e o barramento Babaquara, com 6.600 MW de potência, e que formaria um lago de impressionantes 5.600 a 6.200 km² logo acima da cidade de Altamira (SEVÁ, 1988). Para se ter uma dimensão do que isso significava,
Lembramos que a época em que foram divulgados os Estudos de Inventário (CNEC, 1980), toda a capacidade de geração instalada nas hidrelétricas brasileiras era da ordem de 25.000 MW; e que as projeções mais realistas a respeito do potencial hidrelétrico de todos os rios do país eram da ordem de 150.000 MW. Ou seja: o conjunto formado pelos dois aproveitamentos da Volta Grande, hoje chamado de ‘Complexo de Altamira’, prometia uma capacidade igual à metade do que havia em funcionamento em todo o país; e também: o aproveitamento integral do rio Xingu, se realizado conforme esta alternativa, por si só representaria 10% de todo o potencial do país. (SEVÁ, 1988, p. 25).
As duas usinas exigiriam o deslocamento de sete mil indígenas, de 12 territórios. Nos anos 1980, por um lado, as questões ambientais começavam a ter incidência internacional e, por outro, a exaltação às grandes obras de engenharia típica do discurso da ditadura militar perdia força no cenário de redemocratização. A experiência de Balbina e Tucuruí eram exemplos negativos que pesavam contra a realização de Belo Monte. O projeto então revestiu-se de polêmicas.
O mês de fevereiro de 1989 foi marcado em Altamira pela polarização em torno da hidrelétrica. Por um lado, indígenas, setores da igreja, sindicalistas, pequenos agricultores e trabalhadores rurais se reuniram no 1º Encontro das Nações Indígenas do Xingu. Por outro lado, setores empresarias e agropecuários capitaneados pela União Democrática Ruralista (UDR) promoveram uma grande manifestação a favor da hidrelétrica nas ruas de Altamira. O discurso destes era nacionalista, “pró-ecologia” e em defesa do progresso iniciado com a abertura da Transamazônica.
Diante do clima de tensão, um destacamento policial deslocou-se para a cidade. Dois dias antes do início do Encontro, foram disparados tiros de arma de fogo próximo ao Sítio Betânia, da Igreja Católica, onde estavam alojados os indígenas que participariam da atividade (UMBUZEIRO e UMBUZEIRO, 2012, p 180).
É deste encontro indígena a conhecida foto da guerreira kayapó Tuíra encostando seu terçado no rosto do engenheiro José Antônio Muniz Lopes, diretor da Eletronorte. A repercussão internacional da mobilização contribuiu para que o projeto de barrar o rio Xingu entrasse em um período de hibernação. Além disso, durante toda uma década de baixo crescimento e alta inflação, o Estado brasileiro tinha menos capacidade de investir e um projeto da magnitude de Belo Monte e dependeria de financiamento externo. Motivos econômicos, ambientais e políticos, portanto, pesaram contra a execução da hidrelétrica naquele contexto.
Em 1994, já no auge do neoliberalismo, os estudos para viabilização do barramento do Xingu foram retomados. Em um recuo estratégico, o projeto da usina foi revisto. O reservatório da nova hidrelétrica, rebatizada de Belo Monte devido à resistência dos indígenas, passou a ter 516 km². Além disso, o projeto foi alterado para não alagar a terra indígena Paquiçamba, dos Juruna, na Volta Grande do Xingu. O projeto voltaria como uma das obras prioritárias do Avança Brasil, programa de obras de infraestrutura do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Em 2002, quando o novo projeto foi apresentado à Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), o Ministério Público Federal apontou irregularidades nos estudos de impacto ambiental e solicitou sua paralisação. Esta foi a única decisão judicial que efetivamente paralisou o licenciamento da usina, dentre mais de 68 ações movidas em diversas instâncias contra o projeto (NASCIMENTO e CASTRO, 2017, p. 152).
Em 2005, já no governo Lula, o Congresso Nacional autorizou a Eletrobrás a continuar os estudos, o que foi feito em parceria com as construtoras Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Norberto Odebrecht.
Quase 20 anos depois do Encontro dos Povos Indígenas de 1989, em 2008, os Kayapó voltariam a encabeçar a resistência à obra, ganhando as páginas dos jornais ao entrarem em confronto com o engenheiro Paulo Fernando Vieira Souto Rezende, funcionário da Eletrobrás e principal responsável pelos estudos para a construção da usina. No ano seguinte, após a divulgação do EIA, foram realizadas algumas audiências públicas em Altamira, Vitória do Xingu e Belém, em um processo marcado pela contestação dos movimentos sociais e do Ministério Público Federal. A Justiça Federal acabou determinando a suspensão do licenciamento para que ocorressem novas audiências. Em mais uma tentativa de apaziguar as críticas e viabilizar o projeto, o Conselho Nacional de Política Energética anunciou que Belo Monte seria a única hidrelétrica do Xingu.
Nesse mesmo período, Altamira sofreu o impacto de uma operação da polícia federal batizada de “Arco de fogo”, que fechou cinco serrarias no município. O mercado de trabalho local sofreu um baque, pois as madeireiras eram consideradas as principais empregadoras da região. Segundo o sindicato de trabalhadores da construção civil, 2 mil pessoas ficaram desempregadas (CUNHA, 2008). Com esse clima, grupos organizados chegaram a fazer protesto em frente à Eletronorte pedindo a construção de Belo Monte.
A polêmica em torno da obra reflete na polarização da sociedade local. Por um lado, movimentos sociais e organizações de trabalhadores, bem como setores da Igreja Católica contrários reuniram-se em torno do Movimento Xingu Vivo Para Sempre (MXVPS). Por outro, fazendeiros e comerciantes organizaram o FORT Xingu, defensor do projeto. Entre os movimentos sociais e lideranças locais também surgiu uma fissura, uma vez que a hidrelétrica historicamente combatida estava sendo levada a cabo pelo governo do Partido dos Trabalhadores, que durante esse período hegemonizou o conjunto das forças sociais de esquerda. De acordo com Eliane Brum (2019),
Belo Monte é também uma obra que a ditadura militar tentou fazer, mas não conseguiu, devido à resistência dos povos indígenas do Xingu e dos movimentos sociais da região de Altamira, no Pará, no passado um dos mais organizados da Amazônia. Só o PT poderia fazer Belo Monte, exatamente porque ninguém acreditava que o PT faria Belo Monte (BRUM, 2019, p. 61)
Belo Monte foi tida como obra prioritária do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal e, em fevereiro de 2010, o Ibama concedeu a licença prévia. Em contrapartida, o órgão elencou um conjunto de 40 condicionantes, medidas que o consórcio responsável pela usina deveria executar para minimizar os impactos negativos deflagrados pela construção da hidrelétrica. Cada etapa do licenciamento – licença prévia, licença de instalação e licença de operação – continha um conjunto de condicionantes que deveriam ser cumpridas para passar à etapa seguinte. No entanto, não é exagero afirmar que Belo Monte obteve todas as licenças sem cumprir as condicionantes, ou as cumprindo apenas parcialmente. Sobre isso, Nascimento e Castro (2017) pontuam:
O licenciamento ambiental tornou-se objeto de duras críticas por parte de governos e setor elétrico (público e privado), além de ter se tornado o lugar em que a ilegalidade passou a vigorar como uma solução para se levar adiante projetos e obras consideradas “prioritárias” para o Brasil. (p. 151)
Em abril daquele ano, a Norte Energia S.A. (NESA) arrematou a concessão da hidrelétrica, ao oferecer o preço de R$ 77,97 por MWh, um deságio de 6,02% com relação ao preço-teto estabelecido pela Aneel, R$ 83 por MWh. O consórcio, organizado às pressas, não era considerado favorito pela imprensa especializada (COIMBRA et al., 2010).
A Norte Energia, que mudou sua configuração desde o leilão, é formada pelas seguintes empresas (com a respectiva participação acionária): as estatais Eletrobrás (15,00%), Chesf (15,00%) e Eletronorte (19,98%), os fundos de pensão Petros (10,00%) e Funcef (10,00%), Belo Monte Participações S.A./Neoenergia S.A. (10,00%), Amazônia/Cemig e Light (9,77%), Vale (9,00%), Sinobras (1,00%) e J.Malucelli Energia (0,25%). Em 2015, com as obras civis da hidrelétrica quase encerrando, a Vale vendeu 49% de sua participação para a Cemig Geração e Transmissão.
Para a construção da barragem, foram contratadas as principais empreiteiras do país, reunidas no Consórcio Construtor de Belo Monte (CCBM). Dele participam empresas que cogitaram participar do leilão, mas desistiram (Odebrecht e Camargo Correa); que participaram, mas perderam (Andrade Gutierres); e que estiveram presentes no consórcio vencedor, mas anunciaram sua saída logo após o leilão (Queiroz Galvão, Contern, Galvão Engenharia, Cetenco, J. Malucelli e Serveng). Ou seja, as empreiteiras optaram pelo setor que garantia uma rotação mais rápida do capital, em detrimento daquele de longa duração, que ficou sob garantia e riscos do setor público. O contrato da Norte Energia com o CCBM foi firmado em R$ 13,8 bilhões à época.
O fornecimento de máquinas e equipamentos, área de maior densidade tecnológica, ficou a cargo de empresas transnacionais com histórica participação no setor elétrico brasileiro. A francesa Alstom, a austríaca Andritz e a alemã Voith se reuniram em um consórcio para fornecer, respectivamente, sete, quatro e três turbinas por R$ 3,6 bi (valores da época). A Impsa forneceria 4 turbinas por R$ 816 mi, mas a Norte Energia rescindiu o contrato com a empresa argentina em 2015, quando esta se encontrava à beira da falência.
Orçado inicialmente em menos de R$ 20 bilhões, no período de sua inauguração o custo de Belo Monte já chegava próximo a R$ 40 bilhões. O BNDES concedeu o maior empréstimo da história do banco para a construção da usina: R$ 22,5 bilhões.
Belo Monte possui um arranjo institucional peculiar em que “pela primeira vez, na Amazônia, o Estado repassa a construção e a gestão de um grande empreendimento do setor de energia hidráulica para a iniciativa privada” (CASTRO et. al, 2014, p. 6), justificando assim os financiamentos recebidos em uma “parceria” em que cabe ao setor público arcar com ônus e riscos e o setor privado se apropriar dos lucros.
Belo Monte foi planejada para ser a terceira maior hidrelétrica do mundo em potencial de geração (atrás da chinesa Três Gargantas e da binacional Itaipu, construída na fronteira do Paraguai com o Brasil), com 11.233 MW de potência instalada. Porém gerou críticas pela energia firme ser menos da metade desse valor, 4.571 MW, devido à redução da vazão do Xingu durante o verão amazônico (de junho a outubro). Por este motivo, a hidrelétrica costuma ser acusada de inviabilidade econômica.
De fato, comparando sua capacidade instalada e sua produção média, temos um fator de capacidade de geração de 40%, abaixo da média nacional de geração hidrelétrica, de 55% e bem menor que Itaipu, cuja produção média equivale a 68% da capacidade. Mesmo assim, um estudo realizado por Gilberto Cervinski (2019) mostrou que a mais-valia gerada pelos trabalhadores da hidrelétrica ao longo do tempo de concessão (30 anos, descontado os cinco primeiros destinados à construção) equivale a R$ 110 bilhões, uma vez que o modelo elétrico de base hidráulica brasileiro permite que a energia seja produzida a um baixo custo e comercializada a altos preços (CERVINSKI, 2019).
Conforme apresenta o mapa abaixo, o arranjo de Belo Monte inclui uma barragem principal no leito do rio Xingu a cerca de 40 km da cidade de Altamira, no Sítio Pimental, onde está instalada a casa de força complementar, com seis unidades geradoras com turbinas tipo Bulbo, com capacidade de 233,1 MW. Esse barramento é responsável pela formação do lago, de 516 km², que atinge parte do perímetro urbano de Altamira. De lá, sai um canal de derivação, de 20 km de extensão, 210m de largura e 25m de altura, através do qual a água é transferida para um reservatório intermediário de 119 km².
Essa engenharia permite “desviar” a água da Volta Grande do Xingu, um trecho de 100 km de rio, cuja dificuldade de navegação teve papel decisivo no histórico de ocupação de Altamira, e que banha duas terras indígenas (Paquiçamba e Arara da Volta Grande). Depois da Volta Grande, está a casa de força principal. Esta possui 18 unidades geradoras com turbinas tipo Francis, com 11.000 MW de capacidade instalada.
Em junho de 2011, o Ibama autorizou o início das obras ao conceder a Licença de Instalação nº 795/2011. Seguiu-se um período de intensas mobilizações populares e questionamentos judiciais, que interferiram na forma tortuosa como Belo Monte se realizou. A decisão política e econômica de construí-la, porém, mostrou-se irreversível. Dezenas de milhares de trabalhadores levantaram a usina com pouco atraso diante do cronograma original – se comparado com obras dessa magnitude realizadas em outros períodos – talvez para que Belo Monte convertesse mais rapidamente num fato consumado. Esse processo acelerado causou consequências profundas na região, em especial ao principal centro urbano impactado, a cidade de Altamira.
Este texto é parte da dissertação de mestrado “UHE Belo Monte e as concepções espaciais do conceito de atingido por barragem: uma análise a partir da Lagoa do Independente I em Altamira (PA)”, apresentada como requisito para obtenção do título de mestre em Geografia pela Universidade Federal do Pará.