O professor da UFRJ, Carlos Vainer, conta a história da sua relação de colaboração e aprendizado mútuo com o Movimento dos Atingidos por Barragens desde que conheceu o CRAB em Erechim (RS) há 35 anos
Publicado 31/08/2021 - Atualizado 31/08/2021
Em 1971, com apenas 22 anos, fui libertado da prisão da ditadura militar e banido do país. Depois do exílio no Chile, México e França, com a anistia, voltei ao Brasil e ingressei, em 1980, como professor e pesquisador, no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, hoje Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além das aulas e orientações, passei a desenvolver uma pesquisa sobre políticas migratórias no Brasil. Isto é, como, desde a independência, o estado brasileiro concebeu a distribuição das populações no território e como interveio para direcionar fluxos, fixar ou mobilizar populações.
Após estudar por vários anos como o estado havia imposto suas concepções de território e trabalho a imigrantes estrangeiros e trabalhadores nacionais, considerei que era a hora de olhar para a dimensão conflituosa destes processos e ver, se e em que medida, se desenvolviam resistências e tentativas de contra-mobilidade ou auto-mobilidade (categorias retiradas do francês Jean-Paul de Gaudemar).
Por volta de 1986, ouvi de colegas que estudavam conflitos sociais no campo referências à luta de populações que seriam deslocadas compulsoriamente para dar lugar à implantação de 25 grandes barragens hidrelétricas na bacia do rio Uruguai. Era a CRAB – Comissão Regional de Atingidos por Barragens do Alto Uruguai. Depois de conseguir com um colega gaúcho o nome de um militante da CRAB, fiz contato e resolvi conhecer de perto este movimento. E assim, eu e Frederico Araújo, à época meu assistente de pesquisa, fomos para Porto Alegre, onde pegamos um ônibus e desembarcamos numa gelada manhã de 1987 no terminal de Erechim (RS).
Nosso contato nos dissera para encontrá-lo numa igreja, pois naquele dia haveria uma Assembleia da CRAB. E lá fomos nós. Enquanto o pessoal ia chegando com suas faixas e ocupando o vasto salão da igreja, conseguimos achar nosso contato e ficamos de conversar com ele após o final da assembleia, pois esta já ia começar.
O início de uma relação duradoura em Erechim
Lá fora a gente gelava, mas dentro da igreja o ambiente era quente. Logo, eu e Frederico descobriríamos que aquela era uma assembleia da maior importância: após anos de lutas, a Eletrosul havia reconhecido a CRAB como legítima representante dos atingidos pelas barragens de Itá e Machadinho e aceitara negociar um acordo. Naquela Assembleia, os termos negociados com a Eletrosul seriam apresentados aos atingidos para a discussão e aprovação. Esse foi o primeiro acordo feito com atingidos pela implantação de barragens antes de sua construção. Nós chegávamos a Erechim num dia histórico.
Logo que a assembleia teve início, alguém se levantou e questionou a presença de “agentes da Eletrosul”, propondo que estas pessoas se retirassem. O argumento era simples e irretorquível: se os atingidos não podiam assistir às reuniões internas da empresa, esta também não deveria poder assistir às reuniões dos atingidos. Após rápida discussão, a proposta foi aprovada por aclamação. Em consequência, seis pessoas se levantaram e saíram. Eu e Frederico fomos então fuzilados por centenas de olhos que esperavam que fizéssemos o mesmo; afinal, ninguém nos conhecia e nossa cara, nosso jeito, nossas roupas estavam mais para gente da cidade do que do campo.
Confesso que passamos momentos delicados e desconfortáveis, sem saber muito bem o que fazer. A certa altura fui até a mesa para pedir a nosso contato que, assim que fosse possível, explicasse quem nós éramos – pesquisadores da Universidade que queriam conhecer melhor o movimento e ouvir os atingidos. E assim aconteceu, fazendo com que aqueles olhares de desconfiança e, mesmo, raiva, se transformassem em olhares amigáveis e acolhedores. No intervalo para o café, muitos se aproximaram para contar o sofrimento de suas comunidades e a luta que travavam. E assim teve início uma longa trajetória de pesquisa sobre as lutas dos atingidos por barragens, sobre política energética, sobre impactos sociais e ambientais de barragens.
Mas não foi somente nossa pesquisa que começou naquele dia vitorioso de 1987. Ali teve início também uma história de 35 anos de colaboração que foi além das pesquisas. Criamos, como parte do ETTERN (Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza), a Assessoria Técnica e Educacional Meio Ambiente e Barragens (ATEMAB), focada na assessoria técnica e apoio ao esforço incansável do MAB para formar sua militância. Talvez eu e demais colegas que participamos disso tenhamos ensinado alguma coisa, mas posso assegurar que aprendemos muito mais que ensinamos. Eu, Frederico e outros estudantes da ATEMAB ajudamos a organizar e participamos da reunião da Região Sudeste e do I Encontro Nacional de Atingidos por Barragens, realizado 19 a 21 de abril de 1989, em Goiânia. E lá estávamos, também, com o amigo e companheiro, antropólogo Aurelio Vianna, do CEDI, no I Congresso Nacional de Atingidos por Barragens, em março de 1991, que marcou a fundação oficial do Movimento de Atingidos por Barragens.
Neste Congresso, ficou estabelecido que o 14 de março seria celebrado como Dia Nacional de Luta contra as Barragens. Depois, esta data se transformou no Dia Internacional de Luta contra as Barragens, pelos Rios e Pela Vida, conforme deliberação do I Encontro Internacional de Povos Atingidos por Barragens, realizado em Curitiba, em março de 1997.
O 14 de março era uma data muito importante para mim, pois, em 14 de março de 1987 nascera minha filha Alice. E por causa dessa coincidência, durante muitos anos, em virtude de atividades do MAB nesta data eu não estava em casa, mas em algum lugar do país, em algum encontro, em alguma comunidade de atingidos. Lá em casa o pessoal brincava dizendo que eu devia ter uma outra família em Erechim… e, em certa medida, tinha mesmo. E a filha de Luiz e Ivanei Dalla Costa, militantes da CRAB e do MAB, que hoje já é médica, quando começou a falar me chamava de “vovô”.
Sim, me sinto parte desta família. Uma família um pouco diferente das demais, porque construída não por laços de sangue, mas pela unidade e solidariedade na luta. Uma família que almeja não apenas o bem estar de seus membros, mas de todo o povo trabalhador dos campos e da cidades. Uma família que luta pela justiça social e ambiental, por uma sociedade igualitária, sem opressão de classe, de raça ou de gênero. Uma família que cresce com a luta do povo. Uma família que nasceu aos poucos, em Itaipu, nas barrancas dos rios Tucuruí, São Francisco e Uruguai, mas que está hoje em todo o país. Uma família que é também colombiana, mexicana, salvadoreña, latino-americana e se reúne no MAR – Movimiento de Afectados por Represas.
Muitos dos que conheci no início desta história já não se encontram mais entre nós. Mas seus filhos e netos continuam a luta. Aos que se foram, a meus irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas, primos e primas, compadres e comadres do MAB, parabéns por esses maravilhosos anos de luta, de sofrimento é verdade, mas de esperança sempre renovada.