Ricardo Montagner, o pequeno agricultor que luta por uma grande transformação no modelo energético do país
O coordenador, que viu o Movimento dos Atingidos por Barragens nascer na Bacia do Rio Uruguai, se engajou em grandes lutas pelo Brasil afora e fala sobre seu encantamento com a pluralidade da organização no respeito às diferentes realidades locais
Publicado 16/07/2021 - Atualizado 05/08/2024
Do pequeno município gaúcho de Charrua, nos limites do Brasil subtropical, Ricardo Montagner luta por um futuro onde não haja fronteiras para a justiça social. “Como militante, o nosso papel é atuar na construção da luta pelos direitos humanos, para que eles existam para as pessoas de todos os cantos desse país e desse mundo, porque o ser humano precisa ter uma vida digna, precisa ter, de fato, um modelo de desenvolvimento sustentável, não um modelo que é destruidor, que leva à morte das pessoas, que destrói os lugares e a vida dos moradores”. Para o coordenador do MAB, a luta local contra uma barragem que mudaria os rumos das águas e da vida dos moradores da Bacia do Rio Uruguai, há 35 anos, foi um despertar para a consciência de classe.
“A primeira luta era pela defesa da nossa terra, da nossa sobrevivência, em defesa da nossa comunidade, um local em que estamos residindo e plantando ainda hoje , mas depois entendemos que a luta era maior”, conta.
A luta na Bacia do Rio Uruguai
Na época em que Ricardo teve o primeiro contato com o movimento que se transformaria no MAB, ele era uma das 200 mil pessoas ameaçadas por um projeto de construção de vinte cinco hidrelétricas na Bacia do Rio Uruguai. “Era esse o contexto em que surgiu a Comissão Regional dos Atingidos por Barragens (CRAB) da Bacia do Rio Uruguai. Na época, a gente levantou a bandeira ‘Terra sim, Barragem não!’ que viria a ser um dos grandes gritos do MAB”, conta. A resistência garantiu mudanças no projeto da hidrelétrica que preservaram as terras onde Ricardo nasceu, cresceu, criou duas filhas e vive hoje com sua esposa Jane Granja produzindo alimentos como leite, verduras, milho e soja.
Com essa mudança no projeto da Usina de Machadinho (que foi possível depois de muitas lutas), o número de famílias atingidas pela obra foi reduzido de 6.000 para 1.700, diminuindo-se apenas 100 MW na produção da hidrelétrica. A vitória nessa luta instigou em Ricardo o desejo de seguir militando para que mais pessoas pudessem ter seus direitos protegidos. Ele queria que os moradores que foram retiradas de suas terras fossem indenizados justamente e que houvesse reassentamento dos trabalhadores sem terra, porque havia exemplos de outras obras no sul do país em que os atingidos não tiveram seus direitos reparados.
Antes das obras de Machadinho, a construção da Usina Hidrelétrica Passo Real, no Rio Jacuí (RS), tinha deixado milhares de pessoas desalojadas e sem seus direitos reparados. “E não é só a questão econômica da indenização que importa, né? Mas também o direito das pessoas viverem ali seus laços de amizade, os laços culturais, as tradições, tudo isso tinha sido quebrado”, comenta Ricardo.
O coordenador explica que esses projetos das grandes hidrelétricas dos anos 80 seguiam ainda um modelo criado na ditadura militar, que não levava em conta as questões sociais do entorno. “A ideia era alagar a terra e expulsar as pessoas do local. Inundar a área, inundar as comunidades, o cemitério, a igreja, o campo de futebol, sem reparação dos danos, sem conversar com as comunidades, sem realocar as pessoas. Então, entendemos que era preciso lutar para evitar que essas obras mudassem o destino de mais gente. Decidimos aí construir uma luta mais ampla, a nível nacional”, lembra o militante.
Uma articulação nacional para mudar o modelo de produção de energia
Ricardo explica que a união com outros atingidos mostrou que era preciso mudar não só a realidade da Bacia do Rio Uruguai, mas o modelo de produção e distribuição de energia em todo o Brasil. “Percebemos que precisávamos de um modelo mais racional, mais sustentável e mais justo para todos.”
O coordenador lembra que, no momento em que o MAB se organizava como um movimento nacional, havia uma grande efervescência de lutas populares. “Então nessa época vivemos um grande avanço, através das comunidades eclesiais de base, principalmente no campo, quando nasceu o Movimento Sem Terra, os sindicatos mais combativos e os movimentos progressistas da igreja. Todos esses movimentos tiveram um papel importante na construção de uma nova sociedade que buscava lutar pelo direito dos oprimidos, contra os esses grandes projetos ligados aos interesses do capital nacional e internacional”, afirma.
Essa articulação nacional que começou a ser construída junto com outros movimentos do campo conectava os atingidos do Rio Uruguai, nas fronteiras do sul, aos de Itaparica e Sobradinho, no Rio São Francisco, e também de Altamira e Balbina, no meio da Floresta Amazônica e de muitas outras localidades. Foram essas junções das lutas deram origem ao MAB como um movimento nacional que em 2021 completou 30 anos.
“Eu vejo isso como uma grande virtude do MAB, né? Essa capacidade de articular o debate com essa pluralidade que existe dentro de um movimento social, respeitando as diferenças regionais dos territórios, as realidades de cada bioma, a questão de gênero, a questão da cultura local, sempre buscando criar e organizar a luta na amplitude”, ressalta Ricardo.
“Esperamos que isso se repita por mais 30 anos, num novo momento com grandes avanços e superação de desafios que vivemos agora. Vamos alcançar juntos grandes avanços culturais, grandes avanços de conhecimento, de solidariedade e de luta”, conclui o militante.