Famílias que perderam suas terras para a hidrelétrica de Sinop alegam terem sido coagidas pela Companhia Energética Sinop (CES), que tem como acionista majoritária a estatal francesa Electricité de France (EDF)
Publicado 20/03/2021
A Justiça Federal de Sinop, a 503 km de Cuiabá, vai definir o futuro de 214 famílias do assentamento Gleba Mercedes, que foram atingidas pela construção da hidrelétrica de Sinop e lutam por uma indenização justa, há três anos. O processo movido pelo Ministério Público Federal (MPF), em 2018, está agora na fase final para uma decisão do juiz federal André Perico dos Santos.
Perícias feitas pelo Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra), pelo MPF e pela Justiça Federal, entre os anos de 2017 e 2018, apontam que os valores pagos às famílias pela Companhia Energética Sinop (CES), controlada pela estatal francesa Electricité de France (EDF), chegaram a ser 300% inferiores dos preços que deveriam ter sido destinados às famílias.
“O rapaz ligou meia noite para mim. Falou que eu estava fazendo a maior burrada da minha vida. E ele estava falando do celular do meu filho, porque se ele ligasse para mim do celular dele ele ia ser mandado embora do serviço. E que eu tinha que aceitar o acerto da usina, porque ia ser a maior burrada que ia fazer da minha vida, que ia receber 40% só e que não tinha prazo para usina me pagar, que ia ser na Justiça. Eu fiquei até doente, deu depressão. Daí no outro dia fomos lá e fizemos o acerto”, relata José Kreiner que vive na Gleba Mercedes há mais de 20 anos com a família.
Para o produtor rural não existiu negociação com a usina. Kreiner e todas as famílias atingidas pela hidrelétrica de Sinop relatam que foram coagidas a aceitar uma proposta única da empresa num prazo de 5 dias. A CES pagou em 2017 em média R$ 3,9 mil por hectare. O preço foi estabelecido pelo consórcio e as famílias afirmam que não tiveram a oportunidade de realizar nem uma peritagem do valor real ou fazer uma contraproposta de preço.
Na época, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) fez um levantamento com todas as denúncias relatadas pelas famílias e encaminhou ao MPF solicitando uma perícia do Incra sobre os valores das terras. O laudo do instituto apontou, em agosto de 2017, que o preço médio do hectare na região era de R$ 12.258,00 .
O MPF promoveu uma segunda perícia, em fevereiro de 2018, que também constatou que os valores pagos pela CES estavam abaixo dos preços reais dos lotes. Com as provas das perícias, o MPF abriu uma Ação Civil Pública (ACP) para denunciar as diversas irregularidades na definição das indenizações. Com o processo instaurado na Justiça Federal, foi realizada uma terceira perícia, entre setembro e outubro de 2018, solicitada pelo juiz André Perico, que determinou que o valor médio das terras atingidas pela UHE Sinop é de R$ 23.724 por hectare.
Neste mesmo período de impasse sobre as indenizações, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema) autorizou, no dia 24 de janeiro de 2019, o fechamento das comportas da hidrelétrica Sinop para o enchimento do reservatório da usina. As terras das famílias foram inundadas e a usina iniciou suas operações em setembro de 2019 mesmo sem uma definição na Justiça Federal. A medida da Sema de liberar a licença de operação da hidrelétrica de Sinop ampliou os conflitos sociais e ambientais na região, desde então. As denúncias feitas pelas famílias atingidas e pelo MAB foram ignoradas. As recomendações e ações judiciais movidas pelo MPF e Ministério Público Estadual (MPE-MT) foram desconsideradas.
Com isso, além da falta de indenização justa, as famílias da Gleba Mercedes e toda a população da região de Sinop têm sofrido, também, com outras irregularidades cometidas pelo empreendimento.
A qualidade da água do reservatório da usina virou um problema de saúde pública. Entre fevereiro de 2019 e agosto de 2020, mais de 20 toneladas de peixes foram mortos na região do rio Teles Pires devido à atuação da usina. O lago da hidrelétrica aumentou os focos de criação de mosquitos, alguns deles transmissores de malária e leishmaniose. Segundo laudos feitos pelo MPE, a UHE Sinop é uma das piores usinas na Amazônia em emissão de gases de efeito estufa, o que agrava o aquecimento global, podendo superar níveis de poluentes produzidos por usinas de carvão.
De acordo com a perícia, isso acontece pois o empreendimento encheu seu reservatório sem ter retirado a vegetação necessária para evitar esses crimes ambientais. O procedimento de “supressão vegetal” para a construção de hidrelétricas é uma obrigação prevista na lei 3.824/60 para diminuir a contaminação da água e emissão de gases de efeito estufa produzidos pelas usinas.
De acordo com levantamento feito pelo Instituto Centro de Vida, em 2018, a usina retirou menos da metade da vegetação que deveria ser removida por lei. Diante de tantas irregularidades contra os atingidos, o MPF convocou uma audiência de conciliação, em dezembro de 2019, para diminuir o sofrimento das famílias e garantir que a CES pagasse a diferença até atingir uma compensação justa aos atingidos, mas o consórcio empresarial se negou a participar de qualquer acordo em tratativas preliminares com MPF.
Falta transparência
Para a construção de hidrelétricas serem aprovadas pelos órgãos reguladores os empreendimentos são obrigados a construírem planos que possam compensar e mitigar os impactos causados pelas obras.
O Plano Básico Ambiental (PBA) é um instrumento, que precisa ser construído com a participação dos atingidos, pois neles constam ações que irão interferir diretamente na vida dessas pessoas. O comerciante e produtor rural Arnaldo Pereira, que vive há 19 anos na Gleba Mercedes, afirma que a usina de Sinop não apresentou um PBA para os moradores. “Falaram tudo de boca, para mim não mostraram nada”. De acordo com Pereira, todas as benfeitorias em estradas, controle de animais, construção de áreas de lazer, criação de peixes no lago, entre outras, foram todas promessas não cumpridas pela usina, que jamais foram formalizadas”.
Texto: Proteja Amazônia e MAB.