Passado mais de um ano da homologação da contratação das Assessorias Técnicas, empresas e judiciário cozinham o direito dos atingidos em fogo baixo
Publicado 22/09/2020
No ano passado, a 12ª Vara Federal Agrária de Belo Horizonte homologou a petição conjunta assinada entre o Ministério Público Federal e as empresas Vale/Samarco/BHP com relação às escolhas das assessorias técnicas independentes para a reparação dos efeitos do crime na Bacia do Rio Doce. As equipes técnicas teriam o papel de se constituírem como um polo independente das empresas, que atuam no processo de reparação por meio da Fundação Renova. O trabalho das assessorias é realizado em favor das vítimas, dos que foram atingidos no sustento, lazer e saúde, após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), que segue sendo o maior crime ambiental da história do país.
A homologação judicial aprovou o processo de escolha das entidades de assessoria técnica – portanto, legalmente, as entidades são aptas para executar os planos de trabalho propostos. Tanto a escolha das entidades quanto a definição dos planos de trabalhos são frutos de uma construção coletiva, envolvendo várias reuniões entre as comunidades e as entidades envolvidas e que, por fim, resultaria na petição conjunta assinada pelas empresas e o Ministério Público Federal, e homologada pela Justiça Federal.
Neste um ano de homologação das assessorias, as mesmas empresas (Vale, Samarco e BHP) que assinaram a petição se recusaram a custear os planos de trabalho construídos nas comunidades.
Pior que isso, resolveram abrir uma discussão sobre o tipo de assessoria técnica que seria disponibilizada aos atingidos. Essa “mudança de escopo” não só viola o direito das atingidas e atingidos de usufruir do trabalho das ATs, mas é um ataque direto aos próprios princípios que norteiam uma assessoria técnica independente – a centralidade no sofrimento da vítima e o seu protagonismo no processo de reparação.
A Justiça federal, após ter homologado as escolhas, não tomou providências quanto ao impasse. Desde janeiro deste ano que o tema – crucial para a participação dos atingidos em todo o processo reparatório conforme descreve o último Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) – segue aguardando uma posição judicial.
Desde 2018, quando foi realizada a escolha das entidades, todos os entes envolvidos no caso Rio Doce têm à disposição estudos, equipes, perícias técnicas e experts que pouco ou nada repassam aos atingidos.
Sem uma assessoria que traduza estes dados técnicos, as comunidades vítimas deste crime, infelizmente, acabam sendo instrumentalizadas pelas empresas rés em tentativas de minimizar os danos causados, em um investimento direto contra os direitos dos atingidos à reparação plena e integral do crime.
Um exemplo disso pode ser observado desde 2017, quando a luta dos atingidos conquistou a deliberação 58 no CIF (que reconheceu trechos antes ditos como não atingidos pelo crime) e, a partir disso, a Fundação Renova realiza vários estudos nestes trechos do litoral capixaba.
Estes estudos que são, via de regra, realizados sem participação popular, alegam que a região não é atingida: em especial Conceição da Barra, Aracruz e Serra. Sobre estes relatórios, é possível afirmar que nenhuma atingida ou atingido foi informado sobre os resultados, sequer quanto foi que eles custaram aos cofres da Fundação Renova – sendo os gastos computados do montante total empenhado pelas empresas no processo pouco transparente de “reparação” que elas afirmam estar construindo.
Outro exemplo nítido de como o dinheiro da “reparação” é gasto contra os atingidos é a vinda de uma empresa australiana, a NewFields, para solicitar à Justiça Federal, desta vez em Linhares, a suspensão da proibição da pesca que vigora da Barra do Riacho à Degredo, no Espírito Santo. A intenção era suspender o Auxílio Financeiro Emergencial ao maior grupo de beneficiários, no caso, os pescadores destas regiões.
A vinda da NewFields, para contrariar os dados produzidos pela LACTEC para o Ministério Público da própria Rio Doce Mar, uma articulação de laboratórios de pesquisa da UFES financiada pela própria Renova, também houve gasto a título de “reparação integral dos danos causados” pelas empresas rés do crime. Do valor gasto nessa iniciativa da Fundação Renova, nenhum atingido nunca ouviu falar.
Empresas estrangeiras na perícia
Além da Fundação Renova, a 12ª Vara Federal Agrária de Belo Horizonte também conta com seus peritos, que são dois. A primeira é a empresa norte americana AECOM, que tem sede em Los Angeles e faturou, em 2019, mais de 20 bilhões de dólares, além de possuir ações na bolsa de Nova Iorque.
A AECOM atua junto a grandes empresas globais como a própria VALE em processos como o da reparação da destruição causada pelo furacão Katrina nos Estados Unidos em 2005. A atuação da AECOM no processo de reparação do furacão lhe rendeu um contrato de U$ 300 milhões (algo em torno de R$ 1,5 bilhões, na cotação de hoje) e um processo por fraude movido pela FEMA que é o órgão do governo dos EUA que faz o acompanhamento de desastres.
No caso Rio Doce, em especial no Espírito Santo, a AECOM é reconhecida por sua atuação em duas polêmicas da reparação: a barragem do Rio Pequeno e a questão do blend da água em Regência. Nos dois pareceres as decisões tomadas pela AECOM foram no sentido contrário dos interesses dos atingidos, embora os valores do contrato da AECOM também sejam um mistério para os atingidos, que são os protagonistas do processo de reparação.
A outra perícia contratada para assessorar a 12ª vara é a KEARNEY, com sede em Chicago, EUA. O curioso deste contrato é que a KEARNEY teria por única função auditar as Assessorias Técnicas – as mesmas que não foram em sua maioria contratadas. No Espírito Santo, a única já contratada é a da ASPERQD em Degredo e, incrivelmente, em termos de contrato, a assessoria saiu mais barato que a perícia. A ASPERQD foi autorizada pela Justiça Federal a receber da Vale pouco menos de R$ 12 milhões. Para fiscalizar este montante a mesma justiça federal contratou a auditoria da KEARNEY por R$ 19 milhões.
Todas estas contratações, pela Fundação Renova, empresas, e mesmo a Justiça Federal, são exemplos de como tem sido o tom do processo de reparação no Rio Doce. Nenhuma destas consultorias ou perícias atuou ou vai atuar no sentido de melhorar ou facilitar o processo de reparação do ponto de vista dos verdadeiros protagonistas do processo que são as populações atingidas. Pelo contrário, tem atuado para aliviar o peso do crime, enquanto contrariam, perseguem, ou simplesmente enrolam aqueles que foram vítimas das empresas.
A falta de seriedade com que são tratadas a transparência
nos gastos e a participação social deixa os atingidos reféns de indenizações
baixas e da “justiça possível” ou melhor dizendo “a justiça para inglês ver”,
envolvendo comissões a advogados particulares e quitação geral para as empresas
rés.