É necessário debater o racismo para fortalecer a luta dos atingidos, pois só assim venceremos as injustiças que nos assolam diariamente
Publicado 10/07/2020 - Atualizado 21/07/2020
Minas Gerais é o estado que tem no nome a referência a um dos principais pilares da economia extraída daqui. Sabemos que as grandes multinacionais monopolizam a mineração e, por isso, não há rigor no controle de segurança do trabalho.
O que ajuda a explicar o fato de os dois maiores desastres ambientais e trabalhistas da história do país – o rompimento da barragem de Fundão em Mariana (2015) e o rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão em Brumadinho (2019) – acontecerem nesse estado. Ambos crimes da maior mineradora do Brasil, a Vale.
É preciso fazer uma análise cronológica sobre o início da exploração mineral com a escravidão, no século XVII, pois os trabalhadores que ocupam cargos precários hoje foram os escravizados de ontem. Por isso, notamos que, em regiões minerárias, os moradores ao redor da terra explorada são, em maioria, negros. A classe trabalhadora que ocupa as atividades de “chão de fábrica” também é, em maioria, pessoas negras e muitas vezes, trabalhadores terceirizados pela empresa principal que detém o monopólio da mineração.
As mulheres lutam por espaço e sofrem as duras penas do machismo e sexismo, que as discriminam diariamente. Quando se é uma mulher negra, além do machismo e sexismo, sofre também com o racismo, que por anos sem fim contribuiu para seu apagamento e a impediu de ocupar espaços de liderança. Não podemos esquecer, também, que o capitalismo visa o lucro acima da vida e que o hétero-patriarcado massacra cada dia mais as mulheres.
Há várias barreiras enfrentadas por mulheres no dia a dia. E os depoimentos reforçam que, mesmo após os 132 anos de abolição, as mulheres negras continuam ocupando cargo de subalternidade na maior parte do tempo.
Percebemos também que o projeto de urbanização é melhor na área central, ou próximo dela, e que a maior parte de mulheres que se identificam como pretas moram em bairros afastados do centro da cidade. Isso nos diz muito sobre os lugares urbanos que retiram minério, pode haver maior concentração de pessoas negras ocupando aquelas terras.
Sobre as mulheres negras ocuparem cargos de subalternidade, podemos retornar ao século XVII. Essas mulheres eram escravizadas para a extração minério em atividade fim ou mesmo em atividades meio para que os homens escravizados pudessem realizar essa extração. Assim são os trabalhos realizados pela maioria delas no período atual: ou estão no chão de fábrica das atividades de extração, ou mesmo na cozinha ou limpeza e sempre sob ordens superiores, passando por atividades insalubres, enfrentando a terceirização, assédios, demissões e o cúmulo da exploração.
É necessário debater o racismo para fortalecer a luta dos atingidos, pois só assim venceremos as injustiças que nos assolam, diariamente. Lembrando que a classe trabalhadora colhe frutos de um período escravagista.
O Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB quando propõe reflexão sobre ‘as mulheres negras no contexto da barragem e da mineração’ não deseja derrapar para o campo minado da ‘tematização’ da luta de classe. A base dessa estrutura injusta é sempre a exploração. O processo continuado da exploração apropria-se do trabalho e dos bens naturais nas mais diferentes formas, recaindo, mais pesadamente, sobre os grupos mais vulneráveis; vulnerabilidade que vem justamente da exploração e que a alimenta.
Essa concepção de classe é essencial por duas razões principais: primeiro porque ela nos ajuda a ter uma visão mais adequada da realidade dos fatos; e segundo porque ela não nos deixa imobilizados. Se a escravidão é uma construção histórica – e, de fato, o é – a libertação é possível. A dialética aplicada à luta cotidiana nos salva!
O MAB convidou algumas mulheres de regiões atingidas pela mineração para, através de seus depoimentos, avançarmos na compreensão sobre a atualidade da mulher, principalmente a partir de seu convívio com as atividades de mineração.
Confira os depoimentos das mulheres atingidas por barragens de algumas cidades de Minas Gerais:
Patrícia Ramos – Mariana
“Não moro no centro, moro numa rua que liga o centro a bairros operários e ocupações. Sou professora na Escola Daura, em Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto. Não trabalho na mineração, mas sou moradora de uma cidade dependente desse setor e trabalho num distrito cujos moradores têm travado uma batalha para protegerem suas vidas diante das incertezas que a mineração predatória tem apresentado para eles ao longo dos anos. Dessa maneira, percebo que uma atividade importante para o desenvolvimento da sociedade, na verdade, da maneira como é explorada, nesse sistema capitalista, garante lucros para os acionistas e problemas dos mais variados para trabalhadores e moradores, como o desemprego, a precarização do trabalho, o assédio, as doenças de trabalho, as doenças decorrentes dessa pressão por que passam diante dos ataques a direitos e riscos de rompimentos de barragens. Mais especificamente sobre a questão de mulheres negras e a mineração, esses problemas – e listei apenas de maneira mais genérica – são ainda mais aprofundados, seja porque essas mulheres estão nos postos de trabalho mais precarizados, com menores salários, em atividades terceirizadas, seja porque moram em lugares de maior vulnerabilidade, já que os recursos gerados pela mineração não são utilizados para melhorar a condição de vida das populações no entorno das empresas. E é bom destacar que são comunidades que estão nos locais antes de a mineração chegar”.
Mariana Gomes* – Congonhas
“Me considero parda e tenho 21 anos. Moro em bairro distante da região central, porém considero uma infraestrutura boa, com iluminação adequada, ruas asfaltadas. Já trabalhei na mineração na empresa CSN, sem ocupar lugar de liderança. Conheci poucas mulheres em cargos de liderança e eram todas brancas. A mineração possui seu impacto positivo, como a geração de emprego na cidade, porém o impacto negativo na degradação do meio ambiente. Ainda vejo muita discriminação e desigualdade na distribuição de vagas para mulheres em geral. A grande maioria trabalha em chão de fábrica ou cargos com salários menores, principalmente as mulheres negras que têm poucas oportunidades no mercado de trabalho”.
*Nome fictício. A entrevistada preferiu não usar o nome verdadeiro.
Taís Guerra – Congonhas
“Sou branca e moro na região central da cidade. Meu bairro possui ruas asfaltadas, casas de padrão médio, rede de água tratada, esgoto canalizado e coleta de lixo diária. Não trabalho na área de mineração, trabalho na área siderúrgica em empresa terceirizada e desconheço mulheres negras que ocupem locais de tomada de decisão no meu ambiente de trabalho. Para mim, os impactos mais perceptíveis da mineração são a poluição do ar; poluição de rios e alta sedimentação de minério em cachoeiras e nascentes; risco de rompimento de barragens; e dependência econômica do município em relação à atividade mineradora. No meu entendimento, as mulheres negras são a última opção de contratação para cargos dentro das mineradoras que, via de regra, optam pela contratação de homens, em sua maioria brancos. As mulheres brancas, ainda que em menor quantidade que os homens, ocupam alguns cargos de maior relevância dentro das mineradoras. Mulheres negras normalmente são contratadas para serviços de menor complexidade, consequentemente com remuneração inferior”.
Letícia Silveira – Congonhas
“Sou uma mulher branca de classe média e tenho 27 anos. Moro na parte central da cidade, no bairro Lamartine. A casa possui uma infraestrutura segura, ampla e confortável. Os impactos da mineração em nossa cidade e região são muitos e se desdobram em inúmeros outros. Diretamente podemos destacar as condições insalubres e perigosas de trabalho a que os/as trabalhadores/as são submetidos/as nas áreas da atividade mineradora. Destaco em especial a destruição socioambiental nas regiões mineradoras; moradoras da comunidade do Pires, por exemplo, relatam que as nascentes estão secando, o que aumenta o custo de vida na região. Com certeza os impactos são maiores para as mulheres negras, que lidam e sofrem na pele muito mais todas as consequências da mineração, vendo seus filhos sem opções de emprego fora da atividade minerária, sofrendo assédios e abusos na rua por parte dos trabalhadores que vêm de fora para trabalhar nas empresas, tendo que lidar com o aumento exponencial do custo de vida na cidade e morando nas áreas periféricas e mais atingidas por essa rede de destruição.
Rosângela Aparecida – Congonhas
“Tenho 53 anos e sou preta. Moro em bairro distante do centro, a passagem R$ 3,80 (caro demais), o ônibus é sujo de minério, a água não é de boa qualidade, vem suja. Trabalhei como terceirizada da Vale, auxiliar de serviços gerais, nunca vi mulher negra em liderança. O local de trabalho com muita poeira, ruído e próximo a barragens. Eles acham que a mulher negra não existe, não é gente!”
Silnara Faustino – Congonhas
“A mulher é sempre ‘descredibilizada’, sexualizada e assediada. O fato de ser uma mulher preta, que ocupava um cargo técnico, fazia com que essas opressões fossem intensificadas. Por ser negra tinha que às vezes impor para ser ouvida e os assédios são tratados quase como sorte, afinal, na cabeça de muitos, eu deveria estar agradecida por ser percebida.”
“A infraestrutura onde eu moro é adequada, coleta de esgoto, pavimentação, iluminação pública. Trabalhei por 8 anos na mineração. Atualmente não. Sempre em terceirizadas. Não vejo mulheres negras em local de tomada de decisão. Os impactos da mineração são na qualidade de vida. Sempre trabalhei e estudei e havia de pouca a nenhuma flexibilidade para estudos. A qualidade do ar me causava doenças respiratórias, a comida industrializada me causava distúrbios gástricos. Além das condições ambientais, as relações são potencialmente abusivas para mulheres. É um ambiente muito machista, chefiado por muitos que beiram a misoginia.
Rejane Maia – Congonhas
“Não podemos nos dar por vencidas diante disso, dessa maldades contra nossa raça. Nunca vi mulher negra em posição de liderança”.
“Não trabalho na mineração, porém o ar da cidade é carregado de poluição. Hoje em dia, estamos passando por muito racismo contra nossa cor. Isso é muito triste, e sem dúvida a diferença de tratamento é muito grande né!? Uma pena, pois o sangue que corre na veia de uma mulher branca é o mesmo que corre em uma negra. Não podemos nos dar por vencidas diante disso, dessa maldades contra nossa raça. Nunca vi mulher negra em posição de liderança”.
Márcia Aparecida – Conselheiro Lafaiete
“Sou uma mulher negra e tenho 48 anos. Moro no centro da cidade e em termos de estrutura não falta nada. Não trabalho com mineração, sou autônoma. Na minha cidade vejo que a poluição aumentou muito, temos a Vale aqui e em alguns dias dias, a poeira se espalha por vários bairros da cidade fora os caminhões pesados que circulam pela cidade. Percebi também que os trabalhadores terceirizados estão perdendo seus empregos e tenho visto o aumento de moradores em situação de rua e um alto consumo de álcool e drogas. O impacto na vida da mulher negra é que muitas estão virando viúvas de maridos vivos e também um alto número de mães solteiras, principalmente as mulheres abaixo de 21anos.”
“Faço artesanato e nessa área tem muita mulher negra que sustenta a família com seus trabalhos, mas são poucas que estão se destacando mesmo trabalhando muito”.