O Governo Federal (Decreto Nº 10.350/2020) e a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL (Consulta Pública nº 35/2020) decidiram impor à sociedade uma série de medidas para salvar os altos lucros dos agentes empresariais e financeiros do setor elétrico. Essas iniciativas terão como resultado um “tarifaço” de grande impacto financeiro que será repassado nas contas de luz dos 73,5 milhões de consumidores residenciais a partir de 2021.
Publicado 04/06/2020 - Atualizado 20/06/2020
Por Gilberto Cervinski*
Está em curso uma extraordinária crise na indústria de eletricidade brasileira, que se agravou de forma dramática com a pandemia do coronavírus. Diante da situação, o Governo Federal (Decreto Nº 10.350/2020) e a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL (Consulta Pública nº 35/2020) decidiram impor à sociedade uma série de medidas para salvar os altos lucros dos agentes empresariais e financeiros do setor elétrico. Essas iniciativas terão como resultado um “tarifaço” de grande impacto financeiro que será repassado nas contas de luz dos 73,5 milhões de consumidores residenciais a partir de 2021.
Os elementos da realidade indicam que se instalou no interior da cadeia industrial de produção e distribuição de energia elétrica uma crise sem precedentes. Face ao baixo crescimento da economia, acompanhado de grande aumento na capacidade de geração no Sistema Interligado Nacional (SIN), evidencia-se que aproximadamente 37% da capacidade instalada encontra-se ociosa, o que representa 33.500 MW médios de energia excedente que não encontra demanda de consumo suficiente para completar o ciclo de realização de valor. Esse volume de sobra equivale à geração média de eletricidade de sete usinas do porte de Belo Monte, o que demonstra a magnitude da crise.
Atualmente, existem cerca de 172.000 MW de potência instalada e fiscalizada no SIN, distribuídas da seguinte forma: hidrelétricas 63%, termelétricas 27%, eólicas 9% e fotovoltaicas 1%. Essas usinas possuem uma garantia firme de geração de cerca de 90.000 MW, em média. Porém, a carga média verificada em janeiro de 2020 foi de 68.675 MW médios, mostrando que já existia 24% de sobra de energia antes mesmo do aparecimento do primeiro caso de Covid-19 no país.
Durante os primeiros 60 dias de isolamento social (20/03/2020 – 20/05/2020) a média do consumo nacional caiu para de 56.500 MW médios, ou seja, o que equivale a 63% de utilização da capacidade real do sistema elétrico.
Foi para regulamentar a parcela que as empresas estão deixando de ganhar que o governo Bolsonaro emitiu o Decreto Presidencial 10.350 de 18 de maio de 2020, que visa disponibilizar recursos para cobrir o déficit de receita das grandes empresas do setor. Na prática, o objetivo é ressarcir as empresas por tudo que elas deixaram e deixarão de vender e arrecadar até o dia 31 de dezembro de 2020.
Governo cria dívida na conta de luz
O decreto 10.350 autoriza a criação da chamada “Conta-Covid”, permitindo às empresas do setor elétrico cobrir seus déficits ou mesmo antecipar receitas. Na prática, o governo autorizou contrair uma dívida junto a uma espécie de “cartel” de bancos que, segundo o histórico do setor, incluirá o BNDES, Banco do Brasil, Bradesco, Itaú Unibanco, Santander, Citibank, Safra, BTG, BNB, Banco Mundial, Bank of Americ, JP Morgan, Credit Suisse, entre outros.
De acordo com o mesmo decreto, o dinheiro do empréstimo deverá ser o suficiente para cobrir toda a queda do consumo de energia e de arrecadação financeira das concessionárias, para que estas consigam honrar com todos os contratos de geração, transmissão, distribuição e os volumes de encargos setoriais e tributos.
Os principais itens que compõem o montante para cálculos de volume do empréstimo são: a) a “sobrecontratação”, ou seja, aquilo que as empresas não conseguirão vender de abril a dezembro de 2020. Vale destacar que nos primeiros 60 dias de pandemia (20 de março a 20 de maio) a queda no consumo foi de 12,5%, em média, quando comparado com o mesmo período de 2019, porém o impacto final depende muito do comportamento de cada classe de consumidores; b) o pagamento da “inadimplência”, que segundo dados da ANEEL está em 10,2%; c) as diferenças dos aumentos de tarifas autorizados pela ANEEL que foram postergados para entrar em vigor a partir de julho de 2020; d) as diferenças entre a demanda contratada e consumida dos grandes consumidores de alta tensão (Grupo A); e) o valor dos “encargos setoriais” previstos para 2020 que não forem recolhidos em função da crise; e f) um acréscimo de 10% sobre a quota extraordinária para uma reserva de valor.
O montante final da dívida a ser contraída ainda é um tema aberto que, certamente, tem como objetivo ocultar a demanda desse setor. Até o momento, por meio da Consulta Pública nº 35, a ANEEL estabeleceu que a primeira ajuda às empresas fosse limitada à R$ 15,29 bilhões e que os impactos econômicos da pandemia devem ser tratados em uma segunda fase da consulta pública.
Para “passar a boiada” toda, a própria agência reguladora assegurou que “eventual necessidade adicional de recursos” deve ser “informada e requerida à ANEEL para as providências cabíveis”. Vale destacar que algumas projeções indicam que o déficit do setor pode alcançar em torno de R$ 4,5 bilhões/mês o que poderia significar enorme rombo até o final do ano.
Aqui, convém fazer uma breve explicação sobre o modelo energético vigente. Após a privatização da eletricidade, estruturou-se no país o “modelo de mercado” que possui como bases centrais de organização centenas de contratos comerciais dimensionados pelo regime tarifário de preço-teto e um sistema de financiamento (project finance) que é assegurado integralmente nas receitas das usinas, linhas de transmissão e distribuidoras e tudo ancorado no Ambiente de Contratação Regulado, ou seja, nas tarifas finais dos consumidores cativos.
Assim, os agentes empresariais proprietários da energia ficam protegidos de qualquer crise de lucratividade, mesmo em tempos de pandemia. Como se estivessem no interior de uma bolha, protegida e assegurada pelas contas de luz dos 85 milhões de consumidores residenciais urbanos, rurais, unidades comerciais e industriais de pequeno e médio porte, entre outros. E, todas as vezes que são ameaçados na manutenção dos seus lucros extraordinários, o estado brasileiro, especialmente através da ANEEL, lhes assegura a transferência dos custos das denominadas crises, vias reajustes e revisões tarifárias, para os consumidores que compram eletricidade das empresas distribuidoras.
Esse mecanismo financeiro de privilégio empresarial via endividamento indicado no decreto não é novidade. Já foi utilizado em 2014 por meio da Conta no Ambiente de Contratação Regulada (Conta ACR), quando um grupo de 14 bancos realizou três empréstimos no montante de R$ 21,2 bilhões, que foram cobrados nas contas de luz em 54 meses (até junho de 2020) e, como resultado, receberam mais R$ 17,5 bilhões de juros, taxas e encargos administrativos. Uma extraordinária operação financeira parasitária do capital portador de juros, combinada com os interesses empresariais de toda a cadeia produção eletricidade e regulada pela ANEEL
Porém, em 2014, o setor vivia uma crise de proporções muito menores e, mesmo assim, ao longo de 48 meses, causou mais de 80% de aumentos nas tarifas das principais distribuidoras do país, por meio de reajustes, revisão extraordinária e bandeiras tarifárias.
Apesar de sua natureza diferente, a proporção da atual crise não tem precedentes e se tiver que ser suportada por meio das contas de luz, devemos nos preparar para aumentos extraordinários por longo tempo.
Não devemos pagar nada
As soluções apresentadas pelo governo quanto à eletricidade visam apenas proteger e garantir o “equilíbrio econômico e financeiro” e a extraordinária lucratividade de todos os “agentes do mercado”, a saber: os acionistas proprietários das usinas, das linhas de transmissão e distribuição; o sistema financeiro controlador de extraordinária dívida líquida que faz uma verdadeira rapinagem via juros embutidas nas tarifas de luz; as seguradoras e administradoras; os grandes consumidores livres e de alta tensão; as instituições de Estado e governos que recebem altos tributos, entre outros.
O mecanismo usado pelo governo para cobrar o rombo da crise no setor será a conta de luz da população. Para amortecer o impacto dos aumentos, a cobrança de todo volume financeiro (montante principal, juros, encargos e tributos) passará a ser cobrada nas tarifas de energia a partir de primeiro de janeiro de 2021 e permanecerá pelo tempo necessário para pagamento integral de todo volume financeiro.
Os aumentos futuros nas tarifas dificultarão ainda mais as medidas de proteção à vida dos trabalhadores e trabalhadoras, a retomada da economia e a geração de empregos. Será muito difícil sustentar a recuperação de uma economia se existe um terço do setor elétrico ocioso privilegiando o sistema financeiro parasitário, que encarece cada vez mais os custos da eletricidade de nosso país.
Uma das maiores contradições da indústria de eletricidade brasileira é o alto preço da energia elétrica aos consumidores residenciais e aos setores médios e pequenos da economia. Produz-se a baixo custo e as tarifas finais situam-se nos níveis mais altos do mundo, situação que se agravará ainda mais.
Por isso, é legítimo e direito da massa trabalhadora proteger sua vida e não pagar nenhum centavo para salvar a lucratividade extraordinária dos grupos econômicos que monopolizam e controlam nossa energia.
Mesmo que as contradições das tarifas tenham sido sistematicamente ocultadas nas explicações oficiais dos agentes que determinam a política energética nacional, há momentos na história que elas se impõe e se revelam de forma aberta.
Por isso, abre-se uma provável janela que exigirá uma profunda reorganização da indústria de eletricidade, sob base proletária e a serviço de um projeto soberano de nação, capaz de superar as estruturas hegemônicas de mercado e colocar a vida acima do lucro.
* Gilberto Cervinski é membro do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Mestre em Energia pela UFABC.