“Volta à normalidade é cenário distante”, afirma médica que atua no combate ao coronavírus
Entrevista com a médica Marina Farina, que atua em duas unidades de um hospital privado na Baixada Santista (SP) como plantonista do Centro de Terapia Intensiva
Publicado 20/04/2020 - Atualizado 21/08/2024
Para entender os desafios da pandemia para os profissionais da saúde, o coletivo de comunicação do MAB entrevistou a médica Marina Farina, que atua em duas unidades de um hospital privado na Baixada Santista (SP) como plantonista do Centro de Terapia Intensiva.
Marina se formou em medicina em 2017 pelo Centro Universitário de Patos de Minas (MG), através dos programas Prouni e FIES. Concluiu a residência em clínica médica em fevereiro de 2020 em um hospital da rede pública estadual de São Paulo localizado em Santos.
Com a chegada do coronavírus, as duas unidades do hospital onde ela trabalha estão recebendo apenas pacientes com síndrome respiratória suspeitos de Covid-19. E uma delas também atende pacientes com financiamento do SUS, por estabelecimento de contrato com o governo municipal de Praia Grande.
Marina reforçou a importância de se manter o distanciamento social e criticou a postura do presidente da Repúbliva e de grupos de empresários que pressinonam pelo fim do isolamento. O distanciamento social ainda é a melhor forma de combate à pandemia, e a pressão de empresários e de setores do governo, incluindo o presidente, para que os trabalhadores voltem a produzir escancara ainda mais a crueldade da ganância e da defesa do lucro acima de tudo, afirmou.
Confira a seguir a entrevista:
Como está a situação no local em que você trabalha?
Os hospitais passaram e ainda passam por um processo de adaptação às novas necessidades e rotinas impostas pela pandemia. Existem dificuldades para compra de equipamentos de proteção para os funcionários, bem como de novos respiradores e insumos para os pacientes, mesmo que o hospital tenha condições financeiras para tal. O que sabemos é que os produtos estão em falta no mercado, além do superfaturamento dos preços impostos pelas empresas.
Enquanto isso, o número de casos vem aumentando e nós estamos nos adaptando entre a instituição de novos cuidados e a economia de insumos, pelo medo de que a pandemia se prolongue e não tenhamos recursos para trabalhar até o final.
O que mudou na sua rotina de atendimento aos pacientes desde o início da pandemia?
A rotina de trabalho foi completamente alterada, e como eu disse, ainda passa por modificações diárias devido ao surgimento constante de novas informações e à necessidade de ajustes e adaptações de toda a equipe e estrutura de serviço.
Para nós, profissionais que temos contato direto com os pacientes, a principal mudança diz respeito à necessidade de uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) e medidas de higiene muito mais rígidas.
Pode dar alguns exemplos?
Tornou-se obrigatório o uso de roupa privativa do hospital, máscaras, luvas, toucas, óculos ou protetores faciais, capotes e sapatos fechados de material impermeável. A cada atendimento, a paramentação é substituída e as mãos e objetos como óculos ou protetores faciais lavados exaustivamente, o que aumenta o tempo entre um procedimento e outro.
Levamos ao hospital somente o que é estritamente necessário para reduzir a contaminação do ambiente doméstico, e tudo precisa ser adequadamente higienizado ao chegarmos em casa do trabalho.
Além disso, estamos lidando com uma doença nova, com peculiaridades que a ciência ainda não esclareceu completamente, e que nos impõe diversos desafios do ponto de vista de tratamento adequado.
Isso tudo, somado ao aumento do número de internações, abertura de novas estruturas de atendimento e ao afastamento de colegas por terem contraído a doença, torna a rotina mais cansativa e nos obriga a aumentar a carga horária de trabalho. Sem citar o estresse gerado pelo medo de contaminação e questões éticas relacionadas à falta de recursos.
Qual sua avaliação sobre as medidas que o governo federal está tomando, frente à pandemia do coronavírus?
A posição do presidente da República e seus apoiadores tem sido vergonhosa. Diversos jornais e entidades internacionais já classificaram o governo brasileiro como um dos piores no combate à pandemia. Até o momento, o Ministério da Saúde e governos estaduais e municipais têm mantido a defesa do isolamento social, conforme orientado pela comunidade científica, mas com a substituição do ministro e pressão constante dos setores conservadores apoiadores do presidente pelo fim da quarentena, não sabemos qual rumo será tomado nos próximos dias.
Outro entrave ao combate da doença é a falta de disponibilidade de kits para realização de testes em larga escala, o que mascara os números reais de infectados.
Além disso, não há medidas firmes e preocupação com o auxílio financeiro e isenção de pagamento de contas de água e energia elétrica pela população, o que é imprescindível para que os trabalhadores possam ficar em suas casas em segurança.
Como você vê o uso da cloroquina no tratamento aos pacientes com coronavírus e qual sua avaliação dos estudos recentes sobre o uso de novos medicamentos?
A questão da cloroquina ainda é bastante controversa. Existem diversos estudos em andamento para avaliar sua eficácia e segurança, e até o momento ainda não temos dados consistentes que nos permitam indicar ou contraindicar seu uso de forma generalizada. A questão é a mesma com os diversos medicamentos em teste. Existem muitos processos a serem avaliados e questões a serem respondidas para que possamos chegar a conclusões definitivas.
A esperança é de que todo o esforço que está sendo empreendido pela comunidade científica nos traga resultados positivos o mais rapidamente possível. Porém, é irresponsabilidade dizer que já temos um medicamento que cura a doença.
O Brasil ainda está realizando poucos testes para diagnóstico de Covid 19, o que pode se refletir em números absolutos de infecções e mortes relativamente baixos. Essa subnotificação dos casos se confronta com o aumento expressivo de internações por síndromes respiratórias e óbitos aguardando o resultado do exame. Você considera que o governo está sendo omisso na realização de testes em massa e que o número de doentes e mortos por Covid-19 pode ser ainda maior?
Sim. A realização de testes em escala populacional seria importante por diversos motivos, principalmente por facilitar a intensificação das medidas de isolamento e contenção da doença e auxiliar na compreensão do seu comportamento, taxas de infectividade e letalidade.
Os dados de literatura sugerem que o número de casos no Brasil provavelmente é maior do que o divulgado.
Sabemos que nesse momento o distanciamento social é muito importante, mas que pode ter um impacto psíquico bem importante, inclusive para os trabalhadores da saúde, que estão evitando ao máximo contato com os familiares. Você acredita que já é possível enxergar uma luz no fim do túnel no Brasil e prever quando poderemos voltar às rotinas normais ou ainda este é um cenário distante?
A meu ver, a volta à “normalidade” ainda é um cenário distante e diverso nas várias realidades e tipos de atividades. A orientação da OMS é que o afrouxamento das medidas de isolamento social ocorra lenta e gradativamente, baseada na reavaliação constante do possível surgimento de novos casos. Mais uma vez, a realização de exames diagnósticos teria grande importância nessa fase. Cada setor da sociedade terá um tempo adequado para voltar a funcionar normalmente.
Com relação aos profissionais da saúde, particularmente os que trabalham com contato direto com portadores de coronavírus, o fim do distanciamento provavelmente será mais demorado, uma vez que mesmo que as taxas de infecção reduzam, ainda teremos pacientes necessitando de atendimento por um período prolongado.
O MAB está com a seguinte mensagem para os atingidos por barragens e para a população em geral: A vida acima do lucro. Como você vê essa mensagem em um momento em que os grandes empresários pressionam pela volta dos trabalhadores aos postos de trabalho e quando o governo aponta medidas para salvar a economia?
Essa mensagem tem um peso ainda maior nesse momento. A desigualdade social e todas as suas consequências, as deficiências no setor de educação, saneamento e saúde pública restringem o direito à vida de milhares de pessoas, diariamente.
Porém, vivemos um momento em que a superlotação dos serviços de saúde leva à morte concomitante de centenas de pessoas, seja por coronavírus ou outras doenças. Somos bombardeados por notícias e cenas de corpos acumulados nos serviços de saúde e funerários, os cemitérios não têm capacidade para tal demanda, a taxa de fome e desemprego acelerando, e quem mais sente os efeitos da crise são os trabalhadores e as populações mais vulneráveis.
Sabemos que o distanciamento social ainda é a melhor forma de combate à pandemia, e a pressão de empresários e de setores do governo, incluindo o presidente, para que os trabalhadores voltem a produzir, escancara ainda mais a crueldade da ganância e da defesa do lucro acima de tudo.
Qual mensagem você deixaria para os atingidos por barragens do Brasil neste momento?
Primeiramente, eu gostaria de reforçar a importância das medidas de isolamento social e higiene. Quem puder, fique em casa, mantenha contato somente com seu núcleo familiar (pessoas da mesma casa) e planejem-se para que precisem sair de casa somente para coisas estritamente necessárias e o menor número de vezes possível. Lavem as mãos corretamente com água e sabão com frequência, se possível utilizem álcool 70% e soluções de água sanitária para limpeza da casa e objetos, principalmente ao voltar da rua.
Porém, sabemos que algumas pessoas não têm condições de adotar as medidas necessárias, seja pela atividade econômica que exercem, seja por não possuírem as condições para tal.
Por isso, é imprescindível que mantenham-se organizados, conscientes da importância da luta pelo combate ao sistema que oprime e submete a maioria do povo à condições inadequadas de vida, sem direito nem mesmo ao isolamento social ou lavagem de mãos, sem acesso à saúde pública, à terra, à moradia, enquanto os setores mais ricos da sociedade se preocupam em manter seus lucros exorbitantes, sem se importar com a vida dos trabalhadores.
Exerçam ao máximo a prática da solidariedade, continuem se organizando coletivamente para proteger a vida de todos e todas.