Em socorro da santa

Os criminosos e seus comparsas, em todos os lugares, em todos os tempos, procuram ‘esquecer’ os fatos e esconder as vítimas Por Antônio Claret Fernandes, militante do MAB e padre […]

Os criminosos e seus comparsas, em todos os lugares, em todos os tempos, procuram ‘esquecer’ os fatos e esconder as vítimas

Por Antônio Claret Fernandes, militante do MAB e padre da Arquidiocese de Mariana (MG)

O nome é Universidade Aberta do Brasil, no Bairro Cidade Nova, Barão de Cocais. É sábado, nove de fevereiro. A Militante do MAB, que está na cidade, desde a véspera, acompanhando as famílias evacuadas às pressas da Comunidade Socorro, ameaçadas por Gongo Soco, vai cedinho para a UAB.

Gongo Soco, hoje da Vale, era mina de ingleses, no Séc. XIX. Entre 1.824-1856, teriam sido explorados 12.887 kg de ouro com trabalho escravo. O nome pode estar relacionado, segundo alguns historiadores, ao gongo (espécie de sino) que tocava, por ocasião de ‘roubo’ na mina, mas ninguém ouvia.

A Militante faz articulações, dialoga com os atingidos e com a Defesa Civil do Estado de Minas Gerais. Chega a entrar na escola. Há funcionários da empresa escondidos lá dentro, os quais se dispõem a mostrar-lhe mapa da barragem e plano de emergência. Um deles, porém, reparando-lhe a camisa, vendo a logomarca do Movimento dos Atingidos por Barragens, fica extremamente irritado e toma medidas para que a Militante se retire. A partir desse momento, o discurso, que era de abertura, começa mudar. Mesmo assim, ela ainda é informada de que, após reunião a portas fechadas da Vale com autoridades, às 9, a empresa vai encontrar-se com o povo, às 11 horas, para esclarecimentos.

A Militante sai. Mais militantes vão chegando, inteirando-se dos fatos. Um grupo de mulheres e homens, atingidos, também está ali, à busca de notícias.  As famílias foram espalhadas em hotéis de três cidades: Barão de Cocais, Caeté e Santa Bárbara. Algumas ficam em casas de parentes. Foram obrigadas a sair de casa na madrugada de sexta-feira (8), às pressas, por isso trazem apenas a roupa do corpo e algum documento. Mais nada. E reclamam da falta de informação sobre o futuro e sobre suas casas e pertences, que ficaram para trás. Um atingido comenta da cachorra, que é muito brava, e previne o Tenente da Defesa Civil de não ser aconselhável ir lá sem sua companhia. No fundo, parece que já tem saudade do seu lugar. É que as coisas, os animais, as aves são carregados de história de vida abandonada, fugindo da morte.

A Vale investe na invisibilidade. Desde a véspera ‘guarda’, cuidadosamente, os atingidos, longe da sociedade e, agora, ela própria se esconde no interior da UAB. Nos processos criminosos, tanto de Mariana (05/11/2015) quando Brumadinho (25/01/2019), a empresa tenta aplicar a mesma tática. Além dos prédios fechados, ela usa, também, as leis, os governos, a truculência e os argumentos, ainda que fajutos, para esconder-se. O diretor-presidente da Vale, Fábio Schvartsman, afirma na Câmara Federal (14/02): ‘a Vale é uma joia brasileira que não pode ser condenada por um acidente que aconteceu em uma de suas barragens’. Ele já havia dito antes que a sirene de brumadinho não tocou porque foi engolida pela lama. Ele crê no mercado e em velhos ditados: o que não é visto não existe e uma mentira, dita várias vezes, torna-se verdade.

Moradores do entorno de Brumadinho testemunham que a Vale fazia detonações nas proximidades da barragem, que sentiam os tremores, que a empresa desligou a sirene para não disparar como tática de ocultamento e, por isso, ela não tocou no dia em que a barragem se rompeu.

Pessoalmente e por ZAP, a Militante continua seu trabalho, convidando famílias alojadas mais próximas para reunião das 11 horas, buscando tirar o véu do crime. Seu esforço surte efeito. Por volta de dez e meia ao menos 40 pessoas já se encontram ali, no pátio.

A possibilidade de as vítimas se desvelarem incomoda a Vale, que age, rapidamente, (em surdina) para evitá-lo, atiçando seus cães de guarda.

Sempre há cães dispostos a  ladrar ainda que, ao final, lhes sobrem apenas ossos e disputas entre iguais nos terreiros dos palácios. A subserviência é um vício doentio.

O clima, inicialmente tranquilo e aberto na UAB, vai se tornando cada vez mais fechado e tenso. O relógio dá onze horas e a prometida reunião não ocorre. Portão grande, de acesso à rua, é fechado e um segurança, de pé, controla entrada e saída. A porta de vidro, de acesso ao interior da escola, que estava arreganhado até o canto, também é fechada. Junto dela, uma mocinha de crachá permanece o tempo todo de pé, deixando entrar somente pessoas autorizadas. Três ou quatro membros da Defesa Civil do Estado de Minas Gerais colocam cadeiras enfileiradas e, ali, se sentam, claramente para controle. Chegam carros com policiais, que descem e ficam em pontos estratégicos.

Um Cabo da Defesa Civil é escalado para ‘dialogar’ com os presentes, aglomerados perto da porta. Ele repete várias vezes que só pode receber uma comissão de 6 pessoas. Mas a reivindicação é que todos participem. Após muita insistência, retira-se, entra na UAB – talvez para consultar quem tenha poder de mando – e, minutos depois, volta com a notícia de que todos poderão participar.

Junto da notícia, que agrada, inicia-se um zum-zum-zum, que vai crescendo, crescendo, de que a reunião deve ser somente com as famílias atingidas.  Um dos manifestantes chega a ver um Cabo da Defesa Civil afirmando aos atingidos que ‘esse pessoal de fora só vem para tumultuar’ e lhe chama a atenção. Ele, meio irritado, continua espalhando a ideia.

A tática é clara: ao lado do discurso de reunião com todos, havia a decisão da Vale de receber somente os atingidos. A dúvida é sobre o melhor caminho para isso. Mas a resposta vem, quase imediatamente. Quando os presentes vão entrando para a sala de reunião, a Defesa Civil impede passagem de duas crianças, filhas de atingidos. Explode uma confusão. Sua mãe fala e grita e chora. As crianças são puxadas, rapidamente, por uma mulher, com uniforme da Defesa Civil, e são cuidadosamente guardadas dentro do prédio. De fora ainda se pode notar que recebem algo parecido com chocolate. E se acalmam.

Enquanto isso, um funcionário da Prefeitura de Barão de Cocais, imiscuído com a Defesa Civil, servindo à Vale, toma a dianteira na sala. Afirma que os próprios atingidos vão decidir se pessoas de fora participam ou não, mas adianta, alto e bom som, que ‘se houver gente de fora a empresa não se reúne’.

Trocam-se olhares. Toda a sala ganha ar de suspense e apreensão. Quem são os ‘intrusos’? Muitos se voltam para os repórteres do Jornal Brasil de Fato, obrigados a sair. Depois se aproximam da Assessora Parlamentar, que também sai. Um senhor é convidado a retirar-se, mas se apresenta como advogado de duas famílias atingidas e acaba ficando. Um militante não obedece ao funcionário da Prefeitura, que, imediatamente, convida os atingidos a se deslocarem para outra sala.

Assim, a Vale, sem aparecer, consegue seu intento: esconder o crime e suas vítimas.

O Brasil, sob Bolsonaro, e Minas Gerais, sob Zema, preferem a gula genocida do capital, prevista e friamente calculada em números, à vida segura do povo, valendo-se, para isso, dos mais variados artifícios, inclusive do controle social por métodos repressivos.

Transcorridas mais de duas horas, ouvem-se vozes dentro da escola, num ar descontraído. Caixas de marmitas e refrigerante chegam numa caminhoneta. Não há dúvida! A reunião terminou e a empresa oferece almoço aos participantes. Não se sabe se há pizza no cardápio. E se, na sobremesa, existe anestésico para enganar a dor.

Pouco tempo depois, os atingidos começam a sair, distribuídos em dois ou três. Cuidadosamente, evitam a militância e a imprensa. A incipiente relação de confiança entre eles e a Militante, que os convidou para a reunião e foi obrigada a ficar de fora, parece, por ora, ter-se quebrado por completo. Mas é uma questão de tempo.

Um repórter se aproxima de uma atingida e lhe pergunta se a Vale a proibiu de falar. Ela, muito incomodada, levanta a mão, como a afastar o repórter, enquanto diz: ‘é ruim para nós!’.

 Um senhor grisalho, que se encontrara com a Militante mais cedo, vem descendo de carro e agradece-lhe, mas com semblante de temor. Parece fazer algo proibido.

A impressão da militância é que, chantageados, eles vão sofrer muito para, depois, sentir a necessidade inevitável da organização popular enquanto condição para resguardo de direitos.

Os informes continuam chegando. Alguns extremamente preocupantes. Uma empresa alemã não garante estabilidade da barragem de Gongo Soco. Com isso, o futuro dos moradores evacuados continua incerto por tempo indeterminado. Principalmente os idosos, nos hotéis, não conseguem dormir e, alguns, nem saem do quarto.

Outros informes chegam a ser bizarros. A Vale, com lucro de 30 bi em 2018, compra dois pares de roupa por pessoa atingida. A compra de 170 mil, em BH, deixa o comércio de Barão de Cocais incomodado.

 A Defesa Civil, por sua vez, junto com Ministério Público, organiza força-tarefa para retirar a Santa da Comunidade de Socorro. Ela é tombada pelo Patrimônio Histórico. Primeiro a conduzem à cidade. Depois a levam para Mariana porque a cidade é atingida caso a barragem venha a se romper. Famílias ribeirinhas, não tombadas pelo Patrimônio, continuam em área de risco.

O povo, tão devoto, é preterido por autoridades civis que intercedem pela santa.

Em tempos de pouca coisa para se comemorar, a notícia de um novo corpo encontrado na lama traz o sentimento de alívio para quem tem parente na lista de desaparecidos no crime de Brumadinho. Até um fragmento achado – um braço que seja! – traz esperança. Pois gera a certidão de óbito, que tira a dúvida. E possibilita trocar o termo ‘evento’, pois não é festa, por ‘rompimento de barragem’. As vacas estão magras, então ínfimas conquistas soam grandiosas.

Em tempos de muito medo, estar sempre alerta faz diferença. A criança do Bairro Residencial, em Congonhas, que dorme com a bolsa arrumada, é a sirene que grita, enquanto é tempo.  Ali, 5 mil pessoas estão sob barragens da CSN, que somam, no seu conjunto, ao menos 94 milhões de metros cúbicos de rejeito. O dobro de Fundão, em Mariana, equivalente a duas imensas montanhas do tamanho do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro.

Os criminosos e seus comparsas, em todos os lugares, em todos os tempos, procuram ‘esquecer’ os fatos e esconder as vítimas. Em Barão de Cocais, ao menos no dia nove, essa tática funcionou. Mas não terá fôlego grande. Cortinas de fumaça, por mais que sejam espessas, desfazem-se pelo vento forte das lutas. E o véu se rasga.

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