Atingidas denunciam ineficiência da Fundação Renova e exigem reparação
Em seminário realizado em Ouro Preto (MG), atingidos criticam a omissão das empresas e do poder público e apontam que o caminho é a organização coletiva São três anos lutando […]
Publicado 07/11/2018
Em seminário realizado em Ouro Preto (MG), atingidos criticam a omissão das empresas e do poder público e apontam que o caminho é a organização coletiva
São três anos lutando por reconhecimento. Hoje, os criminosos estão soltos, enquanto os meus filhos já foram sentenciados e estão contaminados pela lama tóxica da Samarco, disse Simone Silva, moradora da comunidade de Barra Longa (MG), durante o seminário Balanço de 3 anos do rompimento da barragem de Fundão. Atingidos, acadêmicos, militantes e religiosos se reuniram no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto (MG), nesta terça-feira (6), para lembrar o crime do Rio Doce. O evento foi organizado pela Rede de Pesquisa Rio Doce e pelo Observatorio de Conflictos Mineros de America Latina (Ocmal).
Simone cresceu na comunidade de Gesteira, ouvindo o avô dizer que um monstro lá em cima poderia estourar e destruir a comunidade. Mal sabia o meu avô que 13 anos depois de sua morte a profecia iria se cumprir. O monstro rompeu e matou pessoas, e continua matando, disse a atingida se referindo ao aumento de casos de depressão e tentativas de suicídio. Em Gesteira, tinha cinco pessoas com problemas mentais antes da barragem romper. Agora são mais de 60, diz.
Ela participa do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e ressalta que os impactos do crime da Samarco se renovam a cada dia, afetando especialmente as populações mais pobres. Um exemplo foi quando limparam o centro da cidade, tirando a lama da praça central, onde vivem os ricos, e levando para o alto dos morros, onde moram pessoas que não tem uma condição social boa, relatou.
A moradora de Gesteira falou das dificuldades que enfrenta como mulher, negra e atingida durante sua participação no primeiro debate do seminário que tratou das questões de gênero, raça e classe frente à mineração. Foram realizadas outras mesas de discussão, abordando temas como participação dos atingidos nos processos de decisão, reassentamento e impactos do rompimento da barragem nos povos tradicionais.
Fundação Renova
Silvia Lafaiate, pescadora de São Mateus, no litoral do Espírito Santo, também esteve no seminário para discutir a situação de sua comunidade. Não foi um acidente, foi um crime, mas as empresas não querem nem saber. Nós fomos esquecidos, desabafou.
A comunidade que vivia da pesca artesanal teve seus rios contaminados pela lama tóxica que vazou da barragem da Samarco. A atingida relatou a falta de atitudes da Fundação Renova. A única coisa que quero da Renova é o respeito com a vida. Nós estamos sofrendo. Não era para eu estar aqui lutando, era para eu estar no meu cotidiano. Eu quero a minha identidade de pescadora e o meu rio de volta, afirmou.
Letícia Oliveira, integrante do MAB que atua em Mariana, apontou que a Fundação Renova viola direitos humanos, não reconhece diversas pessoas que foram atingidas, paga irrisórias indenizações e é ineficiente nas obras já que, após três anos, construiu apenas uma casa em Mariana. A existência Fundação Renova é uma forma de impedir a participação dos atingidos. É para maquiar e dizer que houve decisões que, na verdade, não houve, aponta.
A militante avalia que a Renova investe em propagandas, e não em ações de reparação aos atingidos. A Vale e a BHP precisam dizer para o mundo que podem reparar esse crime para que possam continuar explorando minério de ferro. E, por isso, a Renova quer dizer que as empresas criminosas conseguem resolver o problema que criaram. Mas está claro que não conseguem, disse.
A defensora pública do Espírito Santo, Mariane Sobral, criticou o acordo que criou a Fundação Renova e foi assinado pela Samarco, governo federal e dos dois estados afetados, chamado de Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC). Foi um acordo sem nenhum tipo de participação popular, afirma. A defensora também apontou que o poder público foi omisso, deixando para entidades privadas assumirem as reparações aos atingidos, e criticou o grande poder dado para a Fundação Renova para definir quem são os atingidos e como devem ser reparados.
A maior parte dos auxílios financeiros e de indenizações foram para os homens atingidos. Falta a Renova e o poder público discutirem o direito das atingidas, defende. Sobral apresentou dados que apontam que, apesar das mulheres corresponderem a 49,4% da população reconhecida como atingida até o momento, correspondem a apenas 31,5% das pessoas que receberam o auxílio emergencial. Ela criticou a falta de ações afirmativas para garantir tratamento diferenciado para grupos como mulheres, idosos e crianças. Nós observamos na Bacia do Rio Doce que pessoas idosas morrem sem nem receber a resposta da indenização da Renova.
Helder Magno, do Ministério Público Federal (MPF), também criticou o acordo e as ações da Fundação Renova. Os governos fizeram um acordo de gabinete e os programas que seriam executados pela Renova foram pensados dentro de escritórios, sem ouvir os atingidos, diz. Magno afirmou que a Fundação Renova cadastrou os atingidos sem que eles saibam para que serve o cadastro. Como a Renova age dessa forma, impondo aos atingidos um acordo sem dar a informação adequada? Ela está cometendo um novo crime quando faz acordo com pessoas em situação de vulnerabilidade e sem informação adequada, afirma.
Fortalecimento coletivo
Simone Silva conta que se emocionou com os relatos da equatoriana Gloria Chicaiza e da boliviana Anela Cuenca que apresentaram os trabalhos da Rede Latinoamericana de Mulheres Defensoras dos Direitos Sociais e Ambientais e trouxeram casos da participação das mulheres na defesa de seus territórios ameaçados pela mineração. São processos muito parecidos e não é fácil ficar sem resposta. Nós estamos há três anos sem resposta, mas nos fortalecemos quando encontramos mulheres guerreiras. Tivemos um encontro agora com as mulheres atingidas e nos sentimos abraçadas, confortadas, disse.
O encontro de mulheres e crianças atingidas pela barragem do Fundão aconteceu nos dias 04 e 05 de novembro, em Mariana (MG) e marcou o início das atividades da Marcha Lama no Rio Doce: 3 Anos de Injustiça. Organizada pelo MAB, a marcha irá percorrer o trajeto da lama de rejeitos, partindo de Mariana (MG) rumo a Vitória (ES). Serão mais de 650 km de marcha, passando por 14 municípios para realizar manifestações, atos culturais, celebrações religiosas e assembleias para denunciar a lentidão da empresa e da Justiça na reparação dos atingidos.
Por Júlia Rohden, jornal Brasil de Fato