América está gritando A luta pela água na América Latina
As Américas possuem a maior porcentagem de reservas de água doce do mundo, que incluem uma grande quantidade de rios caudalosos e os maiores aquíferos do mundo, o Guarani (que […]
Publicado 06/03/2018
As Américas possuem a maior porcentagem de reservas de água doce do mundo, que incluem uma grande quantidade de rios caudalosos e os maiores aquíferos do mundo, o Guarani (que abarca Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) e o Aquífero Alter do Chão (na Amazônia). Seja durante a onda privatizadora dos anos 90, ou através dos despejos causados pelo neodesenvolvimentismo, o grande capital sempre quis se apropriar dos territórios e recursos aquáticos por meio por meio da privatização. Porém, também houve diversas experiências de resistência nesse período. Sem a pretensão de abarcar todas elas, citamos aqui alguns casos exemplares de luta em defesa da água e dos territórios.
Por Marcelo Aguilar, do MAB.
Chile/ Contra HidroAysén. Foto: Patagônia sin Represas
Esquel, cidade localizada aos pês da Cordilheira dos Andes, na Província de Chubut, Argentina, foi o primeiro obstáculo para a grande mineração a céu aberto no país. Ali, depois de formar uma assembleia popular, o povo convocou uma consulta pública que, em março de 2003, resultou em um não marcante, e acabou se convertendo na primeira lei provincial de proibição desta atividade. Segundo a revista argentina Mu, a estimativa mais baixa de consumo de água que a mineradora previa era de um milhão de litros diários, mas as comparações com outros projetos revelam que o dado é falso, e que a cifra real ia atingir pelo menos doze milhões de litros diários.
Isso sem contar a contaminação das águas causada pelo uso de cianuro na extração mineral. Já são nove as províncias argentinas com leis de proibição total da mineração, ou de alguns dos aspectos da atividade, como o uso dos produtos químicos. A Assembleia de Esquel tem inspirado muitas outras assembleias que continuam lutando pela vida em todo o país.
Abril de 2000. Com uma situação crítica de água e um histórico de conflitos locais pelo recurso, a região de Cochabamba, no centro da Bolívia, levantou-se contra a privatização. No final de 1999, o governo de Hugo Banzer, presidente por dois mandatos, o primeiro conquistado por meio de um golpe de Estado, vendeu a companhia municipal a um consorcio internacional. As tarifas subiram de um dia para o outro, a população reagiu e os protestos se espalharam pela cidade. Banzer declarou o Estado de Sítio e sacou o exército às ruas. O absurdo era tal que Aguas del Tunari consórcio integrado por Bechtel e Edison (EUA), Abengoa (Espanha), entre outras podia cobrar pela água que os moradores obtivessem dos rios, ou até de seus próprios poços artesianos. Se não pagassem, podiam até perder suas casas.
A luta popular conseguiu barrar a privatização e expulsar às empresas, fazendo Banzer recuar. Mas também conseguiu marcar fortemente na memória coletiva que a água é do povo e estabelecer um antecedente histórico de grande importância na luta contra o neoliberalismo. Óscar Olivera, uma das lideranças da resistência, disse numa entrevista ao canal de Casa de América: Estávamos frente a um processo brutal e irracional de privatização da água, que na prática significava converter a água numa mercadoria. Desde a perspectiva indígena e popular na Bolívia, a água é um presente generoso da Pachamama, é o sangue da madre terra. Ao ser um presente para todas e todos, ninguém em particular pode se apropriar dela.
O conflito pela água e terra vem de longe na região Oeste da Bahia. Durante a ditadura militar (1964-1985), grupos de pistoleiros atuavam na região ao serviço de grileiros de terras que ameaçavam e agrediam a população com a proteção do Estado e a ajuda da própria polícia, fato que ocorre até hoje. Entretanto, na atualidade a disputa pela água vem se acirrando por conta do nível de consumo das grandes empresas do agronegócio transnacional que operam na região.
Dados da CPT (Comissão Pastoral da Terra) apontam que pelo menos 17 riachos do Rio Arrojado já estão totalmente secos. Empresas como a Sudotex, Celeiro, BrasilAgro e Igarashi, por exemplo, com investimentos oriundos de outros países como Nova Zelândia, Estados Unidos e o Japão, vem avançando cada vez mais sobre os rios. Somente a Igarashi, multinacional de origem japonesa, consome hoje uma quantia equivalente a cem vezes a cidade de Correntina, epicentro das disputas. Em novembro de 2017, um grupo de camponeses e trabalhadores da região boicotou instalações de duas fazendas do agronegócio internacional acusadas de secar rios na região. O grupo está sendo perseguido e criminalizado, e a população tem saído às ruas para defender a água como fonte de vida e não de lucro para as empresas.
Em 11 de novembro, 12 mil pessoas de uma população total de 33 mil se manifestaram com uma passeata. Na Audiência Pública realizada em Correntina, Andréia Neiva, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que atua na região, enfatizou: Aqui não tem bandido, não. Aqui tem trabalhadores e trabalhadoras que estão defendendo seu direito à vida. Nós somos vítimas de um processo de desenvolvimento que não nos considera e não nos respeita. Se for tratar a gente como bandido, como criminoso, então prepara a cadeia, porque não vai ter cadeia para prender toda a população do Oeste da Bahia.
Maio de 2011. A Comissão de Avaliação Ambiental designada pelo presidente Sebastián Piñera aprova o projeto HidroAysén. O plano contemplava a construção e operação de cinco centrais hidrelétricas, duas no rio Baker e três no rio Pascua na região de Aysén, ao sul do Chile, que alagaria 5.910 hectares de terra. Pretendia instalar também 3800 torres de 60 metros de altura ao longo de 2000 km, o que o colocaria como uma das linhas de transmissão mais extensas do mundo. Mas despertou uma grande desaprovação da população e gerou muita luta. Mesmo com o presidente Piñera ameaçando que sem HidroAysén se estaria condenando o país a um apagão, milhares saíram às ruas em várias regiões para dizer Patagonia sin represas e mostrar sua indignação com o projeto. Em novembro de 2017, as empresas desistiram e devolveram os direitos de exploração da água. O Comunicado da ENEL (uma das maiores do setor energético associada à Endesa) e Colbún expressava que suspendiam o projeto porque não é factível em termos económicos, no contexto da atual situação do mercado elétrico e suas perspectivas futuras. Mas essa sempre é uma desculpa das empresas para não assumir as derrotas. A resistência popular, que conseguiu gerar consciência e mobilização, esticar os prazos (gerando custos maiores e aumentando o desgaste) e questionar as bases do projeto, foi a grande responsável dessa grande vitória na defesa da água no continente.
Frente ao despejo do capital e a complexa realidade do conflito armado, as comunidades colombianas tem tido que inovar nas formas de resistência. Uma delas vem sendo as consultas populares. Estas consultas estão amparadas pela lei 134 de 1994, que estabelece seu caráter vinculante e segundo a qual: uma pergunta de caráter geral sobre um assunto de transcendência nacional ( ) municipal ou local pode ser submetida à consideração do povo e em todos os casos a decisão do povo é obrigatória. Uma das experiências mais marcantes foi no município de Cajamarca, departamento de Tolima, atravessado de norte a sul pelo Rio Magdalena (um dos mais importantes do país). Por meio de uma consulta popular, a população está conseguindo deter La Colosa, um dos maiores projetos de exploração de ouro a céu aberto do mundo, da empresa AngloGold Ashanti. Na consulta, realizada em março de 2017, 97% dos votos foram contrários à mineração. Apenas 76 pessoas votaram a favor. Entre 2013 e 2017, a mineração perdeu nas cinco consultas populares realizadas. Hoje já são mais de 10 na história do país, e 44 estão sendo tramitadas, num fenômeno que põe em tensão os projetos económicos do capital e do governo com as intenções das comunidades, que lutam em defesa dos territórios, pela água e a vida.
Berta Cáceres foi assassinada por defender os rios. Em Honduras, que é um dos países mais perigosos do mundo para ativistas ambientais, Berta, que era fundadora e a principal liderança do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH) lutava contra a instalação da Hidroelétrica Agua Zarca (propriedade da empresa hondurenha DESA) no rio Gualcarque. A morte de Berta ocorreu no meio de uma forte luta contra o projeto, e o COPINH responsabiliza à empresa DESA, que a tinha perseguido e ameaçado constantemente, e ao Estado hondurenho, que tinha a responsabilidade de cuidar da sua integridade. Um informe internacional publicado em novembro de 2017 demonstra que de fato o crime foi ordenado por diretores da empresa DESA, em aliança com forças de segurança do Estado. Durante seu discurso na cerimônia de entrega do prêmio Goldman (uma espécie de Nobel ambiental), Berta disse algumas frases que ficarão na história de luta da humanidade, entre elas: Dos rios somos custódios ancestrais ( ) dar a vida de múltiplas formas pela defesa dos rios é dar a vida para o bem da humanidade e do planeta e A mãe terra, militarizada, cercada, envenenada, onde se violam sistematicamente direitos fundamentais, nos exige atuar. Despertemos humanidade, despertemos, já não há tempo!.
Cajamarca, região norte dos Andes peruanos. Terra rica em ouro, mas de gente sem dinheiro. A mineradora Yanacocha, uma das maiores da América Latina, quer aprovar o projeto Conga para extrair ouro a céu aberto. Mas a resistência é enorme. Desde 2012 as comunidades da região (que tinha sido declarada em Estado de Emergência) têm realizado grandes protestos que foram duramente reprimidos, e contabilizam pelo menos cinco mortos. Máxima Acuña, camponesa da região, virou o símbolo da resistência. Em 2010, quando voltava para casa, a mineradora tinha entrado com retro escavaderas para marcar um trilho, sob o argumento de que o terreno era da mineradora. Tempo depois, queimaram seu rancho, destruíram sua horta, e a polícia chegou para tentar tirar Máxima e sua família do terreno. Foram golpeados, espancados, ameaçados. A Yanacocha, que em Quechua significa Lagoa preta, quer remover 92 mil toneladas de pedra por dia durante 17 anos, depositando os rejeitos na Lagoa Azul que Máxima, assim como milhares de camponeses de Cajamarca, defendem com a vida.
A constituição do Uruguai diz: A água é um recurso natural essencial para a vida. O acesso à água potável e o acesso ao saneamento, constituem direitos humanos fundamentais. Como resultado da luta popular, e por meio de um plebiscito realizado em 2004, os serviços de saneamento e abastecimento de água para consumo humano são prestados exclusiva e diretamente por pessoas jurídicas estatais. Porém, a recente aprovação da lei de irrigação acendeu os alarmes. Paradoxalmente impulsionada pelo governo da Frente Ampla que participou ativamente na campanha do plebiscito de 2004 e com o apoio da oposição, um grupo de cientistas da Universidade da República denuncia que a lei está orientada em sentido contrário às realizações atingidas nestes 13 anos em matéria de direito cidadão sobre a água e avança na criação de um mercado da água, que se implementará por meio de agentes privados de gestão da água, algo absolutamente contrário ao estabelecido na Constituição. Movimentos populares e sindicais e grupos acadêmicos já começaram a coleta de assinaturas para a realização de um referendum que tenha por objeto a anulação da lei.