Será o fim das hidrelétricas na Amazônia?

Por: Elisa Estronioli* Causou muita repercussão no início desse ano a notícia de que a era das grandes barragens na Amazônia teria acabado. O alto custo dessas obras, seus impactos […]

Por: Elisa Estronioli*

Causou muita repercussão no início desse ano a notícia de que a era das grandes barragens na Amazônia teria acabado. O alto custo dessas obras, seus impactos ambientais e a resistência dos povos indígenas e movimentos sociais, além de problemas judiciais, seriam os principais motivos. O exemplo é o da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós (PA), que teve seu licenciamento cancelado pelo Ibama no final de 2016. Ao mesmo tempo, aprofundou-se a crise econômica e política, a democracia sofreu um golpe, veio a Lava-Jato atingindo as grandes empresas da construção civil e o modelo pareceu dar sinais de esgotamento.

Será?

Uma notícia publicada pelo jornal O Globo no início dessa semana voltou a acender a luz de alerta sobre o tema. O Tribunal de Contas da União exige que, até dezembro, o governo federal reveja e dê uma posição sobre cinco grandes projetos para a região e que estão atualmente paralisados. Entre eles está São Luiz do Tapajós e a hidrelétrica de Marabá, ambas no Pará.

Quando ocorreu o cancelamento do licenciamento de São Luiz do Tapajós, nós do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) já avaliávamos que se tratava de uma decisão temporária. Em um momento de crise econômica, não vale a pena para as empresas investir em obras intensivas em capital e cujo retorno não é imediato. Apostamos que a movimentação seria: aprofundar as privatizações (em outras palavras, apropriar-se da riqueza do povo brasileiro), tomar medidas para obter um lucro maior com a venda de energia (leia-se: tarifas mais caras aos trabalhadores) e fazer lobby pela flexibilização (melhor dizer, desmonte) da atual legislação ambiental.

Com essas medidas, cria-se um novo cenário para a retomada dessas obras, muito mais favorável às empresas e desfavorável aos direitos dos atingidos dos atingidos e dos trabalhadores.

A matriz elétrica brasileira ainda é predominantemente hídrica. Embora no último período tenha havido um crescimento de fontes renováveis, sobretudo eólicas, a energia hidrelétrica ainda é a que permite um lucro extraordinário, ou, no jargão do setor, é “mais competitiva”. E a quase totalidade do potencial hidrelétrico ainda a ser explorado no Brasil está justamente na Amazônia.

O que deve mudar é o formato adotado. As últimas grandes hidrelétricas na Amazônia, como as trágicas Santo Antônio e Jirau (RO), Belo Monte (PA) e Teles Pires (MT), foram construídas sob um modelo em que o setor estatal teve peso decisivo para viabilizar essas obras, com a presença da Eletrobrás, das grandes empreiteiras nacionais e o financiamento do BNDES.

Esse modelo deve dar lugar a outro, sob uma lógica neoliberal ortodoxa.  A Eletrobrás está na mira da privatização do governo golpista. As novas obras, quando saírem, devem contar com capital quase que exclusivamente privado e majoritariamente transnacional. Chama a atenção o avanço de empresas chinesas sobre o setor elétrico, mas não se descarta ainda a presença de capital americano, francês, espanhol. E o governo entrega um setor estratégico, em uma região estratégica, a Amazônia, sem levantar qualquer reflexão sobre a soberania.

Do ponto de vista da engenharia, outro pesadelo socioambiental ameaça voltar à cena: os grandes lagos. Mesmo que hidrelétricas como Belo Monte tenham causado enormes danos, seu reservatório é relativamente pequeno. Para efeitos de comparação, seu lago tem 516 km², enquanto de sua vizinha Tucuruí, construída na ditadura militar, é cinco vezes maior, com 2.850 km². Os empresários e seus porta-vozes vêm anunciando repetidamente que esses reservatórios grandes são necessários para dar mais “segurança” contra o risco de secas (para os acionistas, claro).

Hoje, o licenciamento ambiental dessas hidrelétricas se dá em várias etapas ao longo de anos e as empresas precisam realizar uma série de medidas (“condicionantes”) para receber as licenças. A proposta agora é mudar a legislação para conceder a licença de uma só vez. E os atingidos perderão esse importante instrumento de pressão e denúncia.

Para tornar o cenário ainda pior, cabe lembrar que estamos vivendo um momento de profundos ataques aos direitos humanos e perseguição política aos movimentos sociais, em especial na Amazônia, que já é palco de inúmeros conflitos. Segundo a ONG Global Witness, em 2016 o Brasil foi o país com o maior numero de assassinatos de defensores do meio ambiente (foram 49 assassinatos de 200 notificados em todo o mundo). Na Amazônia está a maioria das vítimas, como Nilce de Souza Magalhães, a Nicinha, militante do MAB assassinada em janeiro de 2016.

Como já reconheceu o Conselho Nacional dos Direitos Humanos, existe um padrão de violação de direitos humanos na construção de barragens no Brasil. Na Amazônia, onde historicamente predomina a lógica do saque e do abandono, essa situação se agrava ainda mais. Os projetos de barragem mudam ao longo dos anos para driblar a resistência e atender aos diversos interesses. Foi assim com Belo Monte, que voltou “repaginada” 30 anos depois. Seu maior legado é conhecido: transformou Altamira no município mais violento do Brasil e deixou 41% de sua população na pobreza (com renda de até meio salário mínimo mensal). Enquanto vivermos num sistema em que o lucro vale mais do que a vida, essas obras estarão sempre no horizonte. Cabe aos atingidos por barragens estarem cada vez mais organizados para lutar por seus direitos – inclusive o de dizer não a esses projetos.

*Elisa Estronioli é jornalista especialista em energia pela UFRJ e coordenadora nacional do MAB

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