Pela orla
Esse local escondido, graças aos mecanismos de invisibilidade adotados pela Norte Energia, é a face mais autêntica do que ela deixa na cidade. Por Antônio Claret Fernandes, militante do MAB […]
Publicado 18/01/2018
Esse local escondido, graças aos mecanismos de invisibilidade adotados pela Norte Energia, é a face mais autêntica do que ela deixa na cidade.
Por Antônio Claret Fernandes, militante do MAB e padre da Arquidiocese de Mariana.
A mensagem chega à noite, à véspera, por celular. A reunião será no Ministerio Público, no dia 16, às 11h, em Altamira (PA). O companheiro convidado leva seus dois amigos de Minas Gerais. A participação, no fundo, é uma oportunidade de atualização das informações sobre condicionantes de Belo Monte, principalmente referente aos indígenas.
Já em Altamira, por volta de 10 horas, no dia 16, a surpresa: a equipe da reunião está completa! São apenas cinco pessoas previamente escolhidas.
O ditado diz: há males que vêm para bem. Com o tempo livre, e tendo que esperar carona de volta a Vitória do Xingu, os amigos avaliam a melhor forma de aproveitar esse momento e, dialogando, dentre as várias possibilidades, decidem rever Altamira ou parte dela a partir da Orla.
Essa opção pelo Xingu, cartão postal, é quase automática. Sua beleza atrai. Mesmo barrado, ele é especial!
A olha nu, visto na superfície, parece o mesmo Rio de sempre. Difícil crer que não seja mais um rio. Quase impossível aceitar que, por trás daquela belezura, nas águas azul-esverdeadas, está o lago da hidrelétrica de Belo Monte.
Como chamá-lo? Em frente Altamira, a aparência é rio, mas a realidade é lago, então será rio-lago.
Ao longe, avista-se uma de suas muitas ilhas, na saltada para Assurini. Aquela Ilha, antes floresta, depois desmatada, agora coberta apenas por um verde forte rasteiro por causa das chuvas de inverno.
Na Orla, algumas pequenas obras cuja visão de cima apresenta uma estética bonita. Porém, é mais estética mesmo que estruturante. Asbarracas, o parapeito, tudo recebe pintura nova ou alguma reforma.
A Orla é dividida em três partes. A primeira é praia artificial. A Norte Energia coloca areia entre o muro da Orla e as águas do rio-lago, num espaço amplo, talvez chegue a 100 por 300 metros. Além da areia, a área de lazer se estende por mais uns 50 metros pela água, até onde estão as boias, umas ligadas às outras, sinal de que dali para dentro não é aconselhável presença de banhistas.
A segunda parte é o Porto, separado da praia por um muro apenas, de pedra com terra, empurrado na água.
O Porto tem uma pequena estrutura, o básico do básico: espaço coberto, tudo muito modesto; passarela de cimento com guarda mão de ferro, escada e rampa; local de atracar os barcos, escadas íngremes, de cimento, que vão até dentro da água, para embarque e desembarque.
Atracadas no Porto, há embarcações dos mais variados tipos, desde rabetas e voadeiras até barcos maiores. Dois se destacam: o Isadora Santos, pelo seu tamanho, e o Catamarã Brisa do Xingu, pelo seu formato.
O Catamarã é comprido, com uma parte mais estreita e outra larga, em curva, semelhante a um violão. Nessa parte larga, embaixo, há um bar no centro, nesse momento fechado, com cadeiras e mesas no entorno. Na parte de cima, uma caixa de som grande com dezenas de cadeiras empilhadas perto do parapeito, à meia parede, de ferro. O segundo andar é um salão de festas, com pista de dança.
Esse barco é um espaço ambulante de diversão. Pode desatracar-se e dirigir-se a qualquer parte do rio-lago, aonde se queira ir, no meio das águas ou num ponto especial da margem e, aí, ser espaço de festa.
A terceira parte da Orla, ao lado do Porto, se estende enormemente pela margem sem nenhuma intervenção nem da Norte Energia nem de nenhuma autoridade. O que se vê ali é iniciativa do próprio pescador. É a porta dos fundos, o contraste da Orla estética, pensada para banhistas e, talvez, um que outro turista. Ali, a realidade de abandono é nua e crua, sem véus, sem tinta, sem dó nem piedade.
O muro, que separa a Orla do lago, nesse trecho, é muito alto. Então os pescadores ou moradores, que se escondem ali, nalgum buraco de barco velho, fazem duas escadas. Cada uma delas com dois paus roliços, compridos, e os degraus de madeira fina e inteiriça, também roliça. Difícil imaginar que se desce e se sobe por ali. Quase impossível subir e descer carregando uma coisa qualquer.
Esse local escondido, graças aos mecanismos de invisibilidade adotados pela Norte Energia, é a face mais autêntica do que ela deixa na cidade.
O mato, um capim alto, toma conta de tudo e, por entre as touceiras de capim, formam-se trilhas; parecem de bichos que andam por ali, mas são das pessoas. Misturadas ao mato, há muitas embarcações, algumas abandonadas, umas cobertas de folhas e outros debaixo da água. Deve estar difícil o ganha-pão pelas embarcações. Sem peixe, sem trabalho.
As que ainda funcionam acham-se atracadas precariamente, num pneu jogado no chão ou numa corda, com pedaço de pau fincado no barro, bem diferente do Porto ao lado.
Nos trilhos, forma-se uma meleca, com marcas de rastros humanos; não se sabe se a umidade vem só da água por causa de seu odor forte.
Entre os barcos abandonados, uns funcionam como casa. É o melhor que o atingido, invisível, abandonado, encontra. Ali ele mora, ajeitando-se como pode. O lucro da energia que segue em linhão para o Sudeste do Brasil não lhe serve para absolutamente nada; nem para uma lâmpada que lhe ilumine a noite para saber onde pisa ou onde vai sua cabeça.
A limpeza humana das áreas alagadiças – hoje imensos espaços verdes onde eram casas – não foi, ali, naquela parte da Orla, tão exitosa. A ferida das áreas alagadiças, com a retirada de milhares de pessoas que poderiam continuar lá, às vezes se esconde, mas ali, naquela pequenez, a ferida está aberta e viva, sangrando.
Independente da diferença brutal dos três espaços da Orla, todos eles, exceto a praia artificial, estão comprometidos com a sujeira dos esgotos. Os equipamentos de tratamento dos dejetos, a despeito de importados do primeiro mundo, não funcionam. O sistema até foi ligado, mas houve vazamentos em diversas ruas, e, então, pronto! Fica parado! Certamente obra malfeita na periferia do conjunto de obras prioritárias de Belo Monte.
Ao longo da Orla, existem manilhas que despejam, diuturnamente, de distância em distância, os esgotos no rio-lago. E o mau cheiro, claro, é intenso, quase insuportável.Nos pontos de saída das manilhas – muro abaixo e por entre o mato ou embarcações -, forma-se aquela nata, típica de água muito poluída.
Pela Orla, indígenas continuam, como à época da construção de Belo Monte, circulando, empobrecidos. Expulsos de suas aldeias, não voltam mais. Quando na parte da Orla que leva pintura ou reforma, a miséria deles torna-se ainda mais visível. Se não aumentou o número, ao menos contraste é muito maior.
Os indígenas andam quase sempre em grupos, cabeça baixa, olhar triste, feito estrangeiros na própria terra. Geralmente a mulher, rodeada de filhos, com mais um bebê amarrado do lado, na escadeira, vai à frente e o homem vai atrás, acompanhando, quase sempre de mãos vazias.
Toda a Orla e a cidade respiram clima de ressaca. Os barcos, enfileirados, parados, aguardam quem os contrate. As placas de aluga-se esperam um inquilino. O trânsito, embora caótico, tem menos carros, menos barulho, menos pressa. A violência continua crescente. Muitos buracos, bastante sujeira, e os urubus, fiéis escudeiros da limpeza, continuam aos bandos.
Não é nenhuma novidade, mas Belo Monte é um engodo e toda a região foi enganada.
O Ministério Público, com a reunião de ontem e tantos outras iniciativas, que ainda virão, continua buscando cumprir seu papel. Mas os desafios são enormes.
Uma informação é que Belo Monte pode abrir as comportas por inviabilidade da obra e por descumprimento de condicionantes. Pretensão pouco provável! São tantos negócios envolvidos nessa hidrelétrica, desde o controle de território até a água e a energia. Implantada pela força do capital, somente esse deus poderia deter esse mostro. E o capital não tem nenhuma razão importante para desejar isso.
Comenta-se também de possível ação de indenização dos Araras pelo cruel impacto da Transamazônica. Não se questiona a justeza da Causa, mas não é razoável. Seria (quase) o mesmo que cobrar indenização de Portugal por ter invadido e colonizado o Brasil.
Por fim, iniciativas e sonhos são válidos. Mas não há outra saída. O único caminho decisivo para estancar a gula do deus-cifrão é a organização do povo. Tudo o mais pode contribuir, mas não é decisivo.