Bordado da Resistência
Projeto de resistência à ditadura no Chile inspira engajamento político de mulheres atingidas pela construção de barragens Por Laís Januzzi, da Revista Radis A trajetória é bonita, transformadora e feita […]
Publicado 13/07/2015
Projeto de resistência à ditadura no Chile inspira engajamento político de mulheres atingidas pela construção de barragens
Por Laís Januzzi, da Revista Radis
A trajetória é bonita, transformadora e feita à mão. Essencialmente voltado para a população feminina, o projeto Arpilleras: bordando a resistência é uma extensão do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e utiliza a subjetividade artística como ferramenta para o engajamento político e reivindicação de direitos. Em mais de 100 oficinas entre 2013 e 2014, o bordado possibilitou a discussão de temas relacionados às violações sofridas pelas mulheres, população mais afetada pelas construções de represas . Aproximadamente novecentas mulheres deixaram de se enxergar apenas como vítimas de um processo de exclusão e passaram a desenhar, com agulhas e linhas, uma luta por justiça.
A ideia é transgredir o papel da costura, que historicamente serviu para reforçar o lugar imposto às mulheres, dentro de casa, diz a definição do projeto, em sua página na internet. A inspiração veio da técnica de bordado conhecida como arpillera, que nasceu na resistência à ditadura militar chilena (1973-1990), e pretende registrar em documentário a história de cinco mulheres de diferentes regiões do Brasil que, apesar das singularidades geográficas, culturais e pessoais, carregam algo em comum: vidas radicalmente afetadas pela construção de barragens.
De acordo com o relatório publicado em 2000 pela Comissão Mundial de Barragens (CMB), a violência contra o sexo feminino aumenta vertiginosamente nas regiões que recebem os empreendimentos, devido ao inchaço populacional nas regiões. Casos de assédio sexual, estupro, tráfico de mulheres e prostituição compõem a trágica realidade nos assentamentos. O problema se agrava também na esfera produtiva, onde os direitos das mulheres que trabalham no mercado informal e no ambiente doméstico são totalmente ignorados.
A coordenadora do projeto, Esther Vital, afirma que a luta das Arpilleras é também contra outro tipo de opressão, que acontece dentro do próprio MAB: a resistência e a consequente ausência de participação feminina nos espaços deliberativos. As mulheres internalizam a linguagem do opressor. É nesse aspecto que o bordado se torna extremamente importante no processo: a conscientização através de uma linguagem feminina própria, que trabalha a perda e sensibiliza o outro, explica a coordenadora. Integrante do projeto, Maria Suerda de Almeida é uma das muitas mulheres atingidas pela construção do Castanhão, maior açude público do Ceará. Ela comprova a reforça a importância do projeto Arpilleras como meio de combater a falta de espaço para a expressão das mulheres nos assentamentos. Sua família morava na zona rural de Jaguaretama, mas teve que ser realocada para outro lugar, no mesmo município, após a construção do açude. Com a inundação da área onde viviam, sua mãe foi obrigada a se aposentar e seu pai teve que vender parte do rebanho, já que o espaço onde produziam alimentos e criavam o gado foi reduzido. Como as novas moradias não foram projetadas para reproduzir o cotidiano dos moradores ou preservar seus antigos vínculos, muitas pessoas não se adaptaram e abandonaram o local. Foi exatamente o que aconteceu com a família de Suerda, separada após a mudança: ela, sua mãe e os quatro irmãos foram morar na zona urbana; o pai permaneceu, resistindo à mudança para cidade grande. A separação foi inevitável e os laços enfraquecidos.
Além dos problemas no espaço produtivo e as consequências nas relações afetivas, os assentamentos apresentam uma geografia de coletividade forçada, entre pessoas que não possuem qualquer tipo de vínculo. As Arpilleras, assim como o MAB, foram extremamente importantes para entendermos todo esse processo. Não tivemos quem nos orientasse durante esse período de transição tão dramático. As famílias começaram a se mobilizar, a fazer pressão, lembra Suerda. A partir da conscientização, promovida pelo projeto das bordadeiras, conquistas como a construção de moradias que atendessem às exigências da população e projetos produtivos para as famílias (apicultura, criação de galinhas caipiras e pequenas obras) foram alcançadas. Quando os boatos [sobre os assentamentos] chegaram, já era tarde demais, conta Marina Calisto, 19 anos. Militante do MAB e integrante das Arpilleras, ela afirma que a maior participação feminina gerou novas pautas, como a construção de creches, que foram incorporadas às reinvindicações e melhoraram a infraestrutura das famílias.
Sensibilizada para a importância das discussões propostas pelo projeto, a equipe de comunicação do MAB busca financiamento coletivo para produção de um documentário sobre o assunto. Dirigido por Adriane Canan, o filme apresentará relatos de mulheres das cinco regiões do Brasil e contará a luta da população atingida pelas barragens sob o olhar feminino. Uma tentativa de tecer uma narrativa onde cada história contribui para o retrato de um grupo de mulheres que resiste à opressão e à violência com delicadeza e arte. Um bordado de muitas cores que pretende dar um novo fôlego para as vozes registradas com agulhas e linhas.