Arpilleiras: uma metodologia latina de educação popular

por Tchenna Maso, via Assessoria Jurídica Popular Nascer mulher latino-americana é um exercício constante de deglutição e ruptura, esse caminho o feminismo vem ensinando à nós. A todo momento tem […]

por Tchenna Maso, via Assessoria Jurídica Popular

Nascer mulher latino-americana é um exercício constante de deglutição e ruptura, esse caminho o feminismo vem ensinando à nós. A todo momento tem que esfregar-se uma bucha e tirar o patriarcado da pele.  Retirar de nossos imaginários o padrão de poder global eurocêntrico, fazendo necessário reinventar nossos lugares para superar essa colonialidade. Ato constante de descolonizar nossos corpos.

No exercício desta tarefa de repensar os lugares, resgata-se à Violeta del Carmem Parra Sandoval, uma mulher, latino-americana, pobre, através da qual se pode compreender a mais profunda insurgência expressa nas mais diversas formas canções, poesia, artes plásticas e cerâmica. Como ela mesma se define em seus versos Décimas Autobiográficas:

 

Eu não protesto por mim

Porque sou muito pouca coisa,

Denuncio porque para a sepultura

Vai o sofrimento do mendigo.

Ponho Deus por testemunha

Que não me deixe mentir,

Não é preciso sair

Um metro fora de casa

Para ver o que aqui nos passa

E a dor que é o viver.

 

Violeta não terminou o segundo ano primário. Abandonando para acompanhar o pai e os irmãos no trabalho e nas canções, levando consigo toda a sua origem camponesa. Toda a sua trajetória marcada pela sua postura autodidata. Essa é a primeira característica marcante de Violeta, sua disponibilidade e coragem de enfrentar os mais diversos espaços sem para tanto ter recebido uma educação formal.

 Por volta dos anos trinta se empreende na tarefa de resgatar o folclore chileno, que começava a se perder em meio aos processos político-sociais de “modernização” do Chile. Violeta começa a realizar inúmeras viagens pelo Chile em busca de resgatar uma identidade camponesa, ao retomar o sujeito indígena, reconstruindo essa história através de canções. Assim, adota uma postura comprometida com a arte popular, sobretudo de crítica social, segundo ela: “A obrigação de cada artista é colocar o seu poder criador a serviço dos homens. Já é arcaico cantar aos riozinhos e às florzinhas. Hoje a vida é mais dura e o sofrimento do povo não pode ser ignorado pelo artista”.

Um dos trabalhos que Violeta resgata é a técnica têxtil das arpilleiras. Uma forma de bordado originária das Islas Negras, no litoral chileno, na qual através de panos e retalhos as mulheres contavam suas histórias em grandes construções têxtis. Estes panos são aniagens, ou seja, pedaços de saco de batatas, de farinha, materiais muito rústicos, nos quais com linhas, fios e lã elas iam tecendo sua realidade.

Acometida por uma hepatite em 1964, vivendo num país estrangeiro, a França, Violeta começa a tecer suas arpilleiras. Segundo ela, eram como canções que se pintavam. Em seus trabalhos era possível reconhecer uma rica história popular, de crítica aos colonizadores espanhóis, de exploração indígena, de contato com a natureza.

No seu trabalho de dar visibilidade ao folclore chileno, Violeta traz uma arte marginalizada com as Arpilleiras, situado no espaço doméstico feminino para o espaço público. Fazendo da narração do cotidiano, própria desta técnica, um instrumento de enfrentamento cultural. As Arpilleiras representam ainda uma importante técnica para trabalho com as mulheres que vivem em situação de conflitos sociais, porque lhes permitem representar sua vida, seu cotidiano. Em cada linha e bordado se coloca a dor, a alegria, permitindo depois ao final observar que ali está uma obra bonita, feita de calos e machucados, a ser apreciada. Tal trabalho é no plano psicológico uma forma muito importante de trabalhar a subjetividade, sobretudo a negada, como a da mulher.

Baseadas nesta experiência de “Nuestra América” o Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragem ( MAB) em 2013 começou um projeto de realização de oficinas em mais de 11 estados brasileiros. Levando o debate do feminismo e a técnica das Arpilleiras. Foram realizadas oficinas em mais de 11 estados brasileiros, nas quais se intercalava a formação da técnica com o debate do feminismo. Temas como violência doméstica, prostituição, invisibilidade do trabalho doméstico, acesso aos espaços decisórios, acesso a políticas públicas, saúde da mulher, permeavam os encontros.

Mais de 400 mulheres atingidas confeccionaram por volta de 30 peças, em verdade a técnica continua reverberando pelas comunidades, porque se tornou exercício constante de empodeiramento e debate. Essas mulheres estão denunciando as violações aos seus direitos através das Arpilleiras, em cada linha está o debate sobre seu lugar enquanto mulher afetada pelo modelo energético brasileiro.

Da costura às ruas. Elas estão levando suas telas para manifestações, universidades, espaços públicos, como instrumento de denúncia, atrelando fortemente a sensibilização possibilitada pelo arte com o trabalho político. E chegarão ao Memorial da América Latina em outubro para contar essa história.

As mulheres atingidas de todo o Brasil, de Jirau e Santo Antonio/RO, passando por Itá/RS, Castanhão/CE, Estreito/TO, até Vale do Ribeira, estão contribuindo para pensarmos em uma nova metodologia de trabalho com educação popular feministas. À medida que ao se debruçar para pensar a tela a ser costurada as mulheres se percebem como sujeitas históricas, levantando temas geradoras, imprimem as mais diversas dimensões do conflito nos seus retalhos. E ao final, tem o primeiro produto do seu protesto a Arpilleira, que tem dado condições concretas para inserir a luta política em novos espaços.

Sempre buscamos pensar saídas para América Latina na compreensão de duas  categorias insurgência/resistência. A insurgência é dada pelo enfrentamento ao que está posto, trazendo um elemento novo a luta de classes, no caso, está colocada a Arpilleira. Além disso a resistência, que é marcada pelo resistir a colonialidade do poder, não se vender a lógica do capital. Neste sentido fazer do ato de costurar em casa um instrumento político para enfrentar a dicotomia publico/privado, resistindo naquilo que tem de próprio. Além disso, a Arpilleira é algo muito genuíno do nosso lugar geopolítico, é algo cultural da América Latina, é algo a ser lembrado:

 

As bordadeiras de Santiago, de Eduardo Galeano:

“As crianças, que dormem três na mesma cama, estendem seus braços na direção de uma vaca voadora. Papi Noel traz um saco de pão, e não de brinquedos. Aos pés de uma árvore, mendiga uma mulher. Debaixo do sol vermelho, um esqueleto conduz um caminhão de lixo. Pelos caminhos sem fim, andam homens sem rosto. Um olho imenso vigia. No centro do silêncio e do medo, fumega um caldeirão popular.

O Chile é este mundo de trapos coloridos sobre um fundo de sacos de farinhas. Com sobras de lã e velhos farrapos bordam as bordadeiras, mulheres dos subúrbios miseráveis de Santiago. Bordam arpilleras, que são vendidas nas igrejas. Que exista quem as compre é coisa inacreditável. Elas se assombram:

– Nós bordamos nossos problemas, e nossos problemas são feios.

Primeiro foram as mulheres dos presos. Depois, muitas outras se puseram a bordar. Por dinheiro, que ajuda a remediar; mas não só pelo dinheiro. Bordando arpilleras as mulheres se juntam, interrompem a solidão e a tristeza e por umas horas quebram a rotina da obediência ao marido, ao pai, ao filho macho e ao General Pinochet…”

 

Não queremos o feminismo burguês! Queremos o feminismo latino-americano! Viva a luta das mulheres atingidas!

Aproveito para divulgar a campanha para arrecadação de fundos para produção do documentário das Arpilleiras do MAB : https://www.catarse.me/pt/arpilleras . É só clicar e contribuir. Vamos contribuir para contar mais essa história de luta das mulheres brasileiras, para poder replicar pelo país a técnica.

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| Publicado 21/12/2023 por Coletivo de Comunicação MAB PI

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