Remoção de barragens restaura rios e multiplica peixes nos EUA

Cerca de 800 represas foram removidas nos últimos vinte anos no país, 65 apenas em 2012; retorno ao fluxo natural da água recupera ecologia fluvial e favorece reprodução de espécies […]

Cerca de 800 represas foram removidas nos últimos vinte anos no país, 65 apenas em 2012; retorno ao fluxo natural da água recupera ecologia fluvial e favorece reprodução de espécies nativas, como o salmão

por Juliet Grable, do Opera Mundi

A cerca de 200 km da costa do Pacífico, a água rápida e gelada do rio Rogue avança pelas margens, divide-se ao redor de uma grande árvore submersa e segue avante. Na margem sul, Craig Tuss para e inspeciona um grupo de salgueiros que cresce em meio ao cascalho. Há três anos, esta área, onde antes ficava a barragem Gold Ray, parecia um pântano drenado. Algumas das árvores mais jovens começaram como pequenos brotos, plantados pela população local; outras cresceram por conta própria. De qualquer forma, os salgueiros são um bom sinal: plantas nativas mantêm espécies invasoras à distância. A nova vegetação capta sedimentos, dissipa a energia das águas durante as cheias e abriga pássaros e insetos.

Tuss trabalha para o Conselho dos Governos do Vale do Rogue, agência que coordena um programa abrangente de restauração e monitoramento no local da antiga represa. A demolição da Gold Ray marcou a retirada da última das três barragens ao longo do rio Rogue, desde 2008. Com 11,5 metros de altura e 109,7 metros de comprimento, construída inicialmente como uma barragem de madeira em 1904 e, em seguida, reconstruída em 1941, a Gold Ray gerava energia hidrelétrica. Em 1972, quando a prefeitura do Condado de Jackson, no estado norte-americano do Oregon, assumiu a estrutura, as turbinas pararam de funcionar. Desde então, a represa já não tinha nenhuma utilidade, exceto desviar a água para um pequeno lago usado pela população local para recreação. Para os salmões nativos do rio, a represa era apenas outro obstáculo que bloqueava o acesso até as áreas mais altas, onde os peixes se reproduzem.

Por um lado, destruir uma represa é simples. Assim que a barreira é removida, os peixes podem nadar por todo o rio, o sedimento pode escorrer e o rio reassume seu curso natural. No entanto, embora os rios sejam resilientes, a remoção da barragem é apenas o primeiro passo na restauração de sua ecologia natural, diz Scott Wright, engenheiro civil do RDG (sigla em inglês para Grupo de Design Fluvial), empresa especializada na restauração de rios. Entre os problemas está a ausência de vegetação ribeirinha, resíduos vegetais e pedregulhos necessários na criação de um habitat complexo, por exemplo.

O RDG supervisionou a estabilização das margens nos arredores da Gold Ray. O grupo também teve de limpar o lixo acumulado no rio ao longo de cem anos, incluindo pneus, carros abandonados e equipamento agrícola. Em seguida, foram plantadas árvores e plantas nativas da área, a fim de impedir o avanço de espécies não nativas. Ao longo do tempo, outros arbustos e gramíneas preencheram os espaços. Observando o local hoje, você jamais imaginaria que uma estrutura de concreto maior do que um campo de futebol já atravessou o rio.

O Inventário de Represas mantido pelo Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA lista 79 mil represas com mais de 1,82 metro de altura e milhares de barragens menores bloqueando o fluxo dos rios no país. “Praticamente todos os rios e riachos nos EUA já foram represados em algum momento”, diz Thomas Ardito, diretor do Centro de Restauração do Ecossistema, sediado no estado norte-americano de Massachusetts. “Vejo isso como parte de um processo de desenvolvimento pelo qual passa a maior parte dos países”. Barragens eram construídas para controlar alagamentos, fornecer água às fazendas e cidades, obter energia hidrelétrica e para fins recreativos. Em determinado momento, as represas eram necessárias, mas muitas já não possuem mais utilidade alguma.

A necessidade de remover represas em áreas onde os custos são maiores do que os benefícios cresceu muito nas últimas décadas. Os objetivos da remoção são vários: restaurar o fluxo dos rios para a fauna aquática, possibilitar o reacúmulo de sedimentos e o fluxo de nutrientes ou eliminar riscos à segurança. Muitas represas construídas nos anos 50 e 60 estão chegando ao fim de sua vida útil, especialmente na região nordeste do país. As represas mais antigas apresentam riscos – foi identificado risco de colapso em mais de quatro mil represas nos EUA – e muitas não cumprem os requerimentos para o trânsito de peixes determinados por leis estaduais e federais. Em geral a remoção é mais barata do que a reconfiguração das rotas de reprodução dos peixes e do que a manutenção de rotina, a fim de atender aos regulamentos vigentes. De acordo com o grupo de conservação American Rivers, mais de 1.100 represas foram removidas no país nos últimos cem anos. Quase 800 destas represas foram removidas nos últimos vinte anos – 65 apenas em 2012.

A remoção de represas está se tornando cada vez mais recorrente, e o mais ambicioso projeto do gênero na história dos EUA está ocorrendo atualmente: a demolição de duas grandes represas do rio Elwha, no estado de Washington. A maior remoção da Califórnia está ocorrendo no rio Carmel, já que a obsoleta represa San Clemente está sendo retirada a fim de liberar espaço para a reprodução da truta-arco-íris.

Ainda assim, as propostas de remoção das represas são quase sempre contenciosas, opondo a comunidade local – que valoriza as oportunidades recreativas e a estética das represas, bem como o patrimônio histórico – a cientistas, ambientalistas e povos nativos, que priorizam a restauração da hidrologia, ecologia e fauna dos rios. Soluções conciliatórias são frequentemente difíceis; a decisão de remover ou manter a represa sempre resulta em um lado sendo prejudicado. “Os problemas técnicos podem normalmente ser superados; o maior desafio tende a ser de ordem social”, diz Denise Hoffert-Hay, diretora-associada da American Rivers.

Estudos exaustivos de impacto devem ocorrer antes que agências federais, estaduais ou locais concedam a permissão necessária para a desconstrução de uma represa. No entanto, são poucos os estudos de longo prazo posteriores à remoção. “Há dois momentos em que é difícil levantar fundos: o início e o fim”, diz Hoffert-Hay. “Qualquer coisa após a remoção já não é mais considerada restauração”. Os projetos de monitoramento custam apenas uma pequena fração da retirada da represa, e podem ajudar cientistas a entender os efeitos imediatos e de longo prazo da remoção. “Para compreender realmente o processo de recuperação de um rio ou área pantanosa, você precisa de cerca de dez anos de monitoramento, mas este tipo de trabalho dificilmente recebe financiamento”, diz Ardito.

Serena McClain, diretora de restauração de rios na American Rivers, diz que os locais que recebem monitoramento exaustivo podem servir como referência, fornecendo informações para futuros projetos. Estudos de longo prazo que mostrem como a remoção de uma represa pode beneficiar tanto a ecologia regional quanto a economia podem ajudar a despolarizar a questão política em torno das desconstruções. No Oregon, uma coalizão de agências estaduais, federais e ONGs está medindo os efeitos da remoção da represa em um segmento do Rio Rogue, tendo em vista estes propósitos. Enquanto isso, o Observatório de Pássaros de Klamath tem pesquisado aves e vegetação, a fim de determinar sua reação diante das mudanças na composição ambiental das áreas pantanosas, florestas ribeirinhas e áreas replantadas. “Os pássaros são um bom indicador, já que sabemos muito sobre eles”, diz Jaime Stephens, diretor de monitoramento do observatório. “Ainda que vejamos uma mudança na frequência de espécies [na área], o retorno a processos ecológicos naturais terá um efeito positivo sobre o sistema”.

Mesmo aqueles que se mostram a favor da remoção de uma represa às vezes se preocupam quanto à quantidade de sedimentos contida pela estrutura. Será que o material liberado enterraria habitats, ameaçaria a infraestrutura, prejudicaria a qualidade da água ou liberaria contaminantes, como metais pesados? Desiree Tullos, professora de engenharia biológica e ecológica na Universidade Estadual do Oregon, mediu as mudanças na forma e na elevação da via fluvial, rastreando o movimento de sedimentos por meio de pesquisas realizadas quando do desmantelamento das represas Gold Ray e Savage Rapids. Ela descobriu que, em Gold Ray, o nível de sedimentos diminuiu na parte anterior à represa, aumentando logo após seu local original; a maior parte da erosão das margens ocorreu na parte imediatamente anterior à represa, e o depósito de resíduos ocorreu a cerca de 2.800 metros de distância, no sentido contrário.

Tullos também mediu a resposta dos peixes e insetos aquáticos às mudanças geofísicas no período de um e dois anos após a remoção da Savage Rapids, bem como no local da antiga represa de Brownsville, no rio Calapooia, também no Oregon. “A questão é: a remoção das barragens age como um distúrbio detectado pelo ecossistema?”, diz Tullos. Com base em sua pesquisa, a resposta seria: na verdade, não. O trabalho de Tullos pode ajudar nas remoções futuras, diz Hoffert-Hay, da American Rivers. “A pesquisa descobriu que várias das coisas que se temia quanto à remoção das represas – incluindo uma liberação descontrolada de uma grande quantidade de sedimento, com efeitos na parte inferior do curso do rio – não acontecem.”

Do ponto de vista socioeconômico, Eva Skuratowicz, socióloga do Centro de Pesquisas do Sul do Oregon, investigou o impacto da remoção da Gold Ray por meio da contagem de visitantes à área, entrevistando turistas e guias de pesca e rafting do sul do Oregon. Atividades recreativas – pesca, rafting, nado e piqueniques – aumentaram ao longo da margem. Alguns guias de pesca reclamaram da turvação das águas do rio após a remoção da represa, mas observaram também uma tendência ao aumento dos lucros. Skuratowicz observa que a saúde da economia turística também é um fator. A maioria dos guias diz ter expandido sua área de atuação, notando melhorias tanto na frequência dos peixes, quanto em sua aparência. “Já que não vimos muitos resultados negativos, este estudo poderá ajudar a aliviar o receio quanto a remoções futuras”, diz Skuratowicz.

A remoção das represas do rio Rogue significou também outra coisa: mais salmões. A liberação de 252 km de rio foi benéfica para cinco levas de peixes migratórios que se reproduzem no rio e em seus tributários, inclusive o salmão prateado, reconhecido como espécie ameaçada no país. As represas bloqueiam a movimentação dos peixes nativos. Às vezes, os peixes conseguem transpor as barreiras, mas o esforço adicional lhes custa muita energia. “Um dos maiores benefícios deste projeto é passar das águas paradas para o rio em fluxo constante, ambiente em que estes animais evoluíram”, diz Dan Van Dyke, biólogo do Departamento de Peixes e Vida Selvagem do Oregon. Os reservatórios podem concentrar os peixes e torná-los mais suscetíveis a predadores e invasores. As condições nas represas também tendem a favorecer peixes que preferem águas profundas e calmas. Estas espécies, em geral, foram deliberadamente introduzidas e não são nativas. Resultados preliminares de um estudo medindo os números e proporções entre peixes nativos e não-nativos  em vários locais ao redor das antigas represas de Savage Rapids e Gold Ray demonstraram uma proporção crescente de salmões.

No fim do ano passado, a primeira geração de salmões nascidos em um rio Rogue livre de represas voltou às suas águas originárias. À medida que nadavam contra a corrente, encontravam um rio muito mais livre do que ele jamais havia sido em mais de um século. Não havia barreira alguma. Apenas o rio, redefinindo-se a cada nova estação.

 

Tradução: Henrique Mendes

Matéria original publicada na revista Earth Island Journal, que se dedica a temas relacionados ao meio ambiente.

Conteúdos relacionados
| Publicado 21/12/2023 por Coletivo de Comunicação MAB PI

Desenvolvimento para quem? Piauí, um território atingido pela ganância do capital

Coletivo de comunicação Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Piauí, assina artigo sobre a implementação de grandes empreendimentos que visam somente o lucro no território nordestino brasileiro