A onda por dentro

Havia que se equilibrar nessa corda bamba, entre o espontâneo e o dirigido Por Antônio Claret A Concha Acústica, na Orla do Cais, cartão postal de Altamira, foi entrando no […]

Havia que se equilibrar nessa corda bamba, entre o espontâneo e o dirigido

Por Antônio Claret

A Concha Acústica, na Orla do Cais, cartão postal de Altamira, foi entrando no clima do ânimo juvenil. No início eram uns gatos pingados. A concentração, marcada para três e meia da tarde, aconteceu por volta de cinco horas, com em torno de 1000 participantes descontraídos, barulhentos. Aqui, em geral, as pessoas se atrasam, e quase ninguém se importa com isso.

Formavam-se grupos diversos, uns tímidos, outros desconfiados e, muitos, exaltados. A maioria estava na rua pela primeira vez. Os comentários eram os mais diversos. Uma garota, com seus 15 anos, de câmera na mão,  dizia: ‘as melhores vão para o face’. Um senhor contava da queda de Dilma com um ar preocupado. Outro, matuto, dizia que muita gente, agora, quer surfar na onda.

O batuque, a cantiga… Artistas populares improvisaram músicas, com refrão e coreografia. Quando a equipe de animação assume o microfone, a gritaria foi geral. Repartiram-se assovios. Todos, juntos, acompanhavam ao menos o refrão das letras distribuídas num pedaço de papel. Uma dizia assim: ‘Para ter direitos já, vamos nos mobilizar, se o povo se unir condicionante vai sair (3X)’. A repetição da última parte trazia algo de persistência. A onda deve ir longe!

Os mais animados pulavam e dançavam, enquanto cantavam. Além do carro de som, havia megafones por entre os presentes, numa espécie de bagunça organizada. Não havia dúvida! A onda espumante, iniciada, segundo alguns, pelos indígenas Munduruku e Terena, encorpada a partir de São Paulo, espraiada Brasil afora, tinha, definitivamente, chegado a Altamira.

Jonas, um estudante secundarista, do Maria Matias, estava ali, radiante. Ele contara discretamente, com uma ponta de orgulho, ter sido o mentor do Ato. Vira as manifestações pela TV. Pensara em trazer aquilo até sua cidade. Conversara com seu amigo, o qual o animara e pedira que reunisse ao menos 20 pessoas, através de mensagens eletrônicas. Arranjado esse grupo, marcaram o Ato para o dia 29. Depois anteciparam para 27. ‘Havia em média 6 confirmações por minuto, em pouco tempo mais de duas mil pessoas tinham confirmado participação’, disse. Agora estava ali, feliz da vida, com quase 1.500 pessoas reunidas. Em Altamira, no último período, as atividades maiores reuniram 500 pessoas.

Jovens com frascos de tinta na mão circulavam em meio ao povo pintando o rosto dos presentes de verde e amarelo. Veio a convocação do som para que todos se colocassem na rua em duas filas. Impossível! Ali não eram ‘manifestantes’ de carteirinha, acostumados a Marcha e coisa semelhante, com aquela disciplina chamada consciente.

A lógica dessa manifestação, assim como das outras do Brasil, é outra. Nada a partir das mediações costumeiras. Influenciado pela conjuntura nacional, um jovem dera o pontapé inicial. Conversara com um amigo, articulara-se com um pequeno grupo. Só depois passaram a compor-se com militantes de movimentos sociais – Levante popular da Juventude, Movimento dos Atingidos por Barragens, e outros -, cujo objetivo fora ajudá-los, mas com o máximo de cuidado, como alguém a pisar sobre ovos, para não descaracterizar aquela iniciativa tão bela, tão promissora, que vinha dando certo no país inteiro. Havia que se equilibrar nessa corda bamba, entre o espontâneo e o dirigido.

 Houve momento das ruas ficarem tomadas por completo, com mais de 3 mil pessoas. Em meio a gritos de ordens ensaiados e aos cantos, com letras criativas, fora escorrendo pela cidade aquele rio de gente, no movimento denominado DIREITOS JÁ.

Conceição, da área alagadiça atingida por Belo Monte, comentou no ouvido da companheira: ‘nosso povo não veio!’.

A partir desse comentário, enquanto a onda ia seguindo, levantaram-se diversas hipóteses para esse comportamento das pessoas mais lascadas.  Na região de Belo Monte, o trabalho de convencimento dos governos, nos vários níveis, e da Norte Energia é invejável. Cada qual procura resolver seu problema de forma individualizada, ou prefere esperar para ‘ver como é que fica’. Alguns colocam a chave do problema em militantes que, sendo de tradição camponesa, não teriam o traquejo de processos organizativos urbanos. Moradora, membro do MAB, residente em área extremamente empobrecida, disse que a questão de fundo é o vício crônico do povo, e colocou a culpa nas lideranças: políticos, presidentes de associações, alguns religiosos. ‘O assistencialismo é uma doença!’, desabafou.

Outro elemento a considerar-se é a interferência direta das condições do ambiente na vida da pessoa. Uma área de miséria com água contaminada, com esgoto a céu aberto e empoçado pelas ruas, lixo espalhado, com escassez de alimento cria corpos doentes e cansados. Doente não é apenas quem está internado! Essa carência material, resultado do completo abandono, sem as políticas públicas elementares, afeta, diretamente, o ânimo do empobrecido. Por vezes, o espírito teimoso e rebelde quer mover-se, mas esbarra na fraqueza e cansaço. Nesse aspecto, o elemento material precede o ideológico, moral e cultural.

Muita coisa, durante a onda, passava pela minha cabeça. Os relatos de carência absoluta e desrespeito ao empobrecido cortam o coração. As baixadas de Altamira estão cheias deles. Os reclamos são honestos e justos. Muitos acabam, porém, adquirindo um caráter heróico às avessas. Há quase uma disputa para se ver quem tem a pior história, a mais cruel, a vida mais sofrida. É como o herói que, ao invés de juntar taças de vitória, e cantá-las, conta, a quatro ventos, as suas derrotas. Talvez justamente por que a sobrevivência ‘derrotada’ por condições tão adversas seja a grande vitória.

Essa situação questiona a aplicação do método popular de trabalho de base. Reclamos não servem de combustível para a nova ordem social, a não ser quando eivados de indignação. Como semeá-la? Como não ficar distante do dia a dia do empobrecido? Como não ser presença apenas assistencialista, quando ele precisa do carro para ir até ao hospital? Como o (a) militante pode tornar-se próximo pela questão humanitária e, aí, realizar o trabalho de base como intervenção política na realidade?

A pauta local, as necessidades concretas, aparentemente pequenas, e, às vezes, menosprezadas, têm muito mais importância do ponto de vista revolucionário do que se possa imaginar. Se debatidas apenas nos seus limites geográficos ganham ar de picuinhas. Mas se encaradas com toda seriedade no nível local, dentro de uma reflexão e ação mais amplas, adquirem força de mudança. Rasquem-se as palavras de ordem decoradas e repetidas sem a cumplicidade com a vida real, concreta e localizada. Internacionalismo não é abstração! Queimem-se as fotos bem feitas, divulgadas mundialmente, sem incidência nas bases. A disponibilidade de água saudável diária e de duas boas refeições por dia pode valer mais do que dezenas de textos, fotos, argumentos belamente preparados. Um corpo sem a energia material do alimento, em qualquer parte do mundo, não consegue refletir e experimentar a magia da mística, que alimenta a luta.

A onda seguia. Vez por outra aparecia a entoação entusiasta do Hino Nacional. Ou a música ‘Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor’. Ouviam-se, também, reivindicações sobre pontos específicos, através de cantos, grito de ordem, ou nos cartazes. Cada qual parecia ter sua pauta, embora a caminhada tivesse uma mensagem unitária: direitos! Um professor escrevera numa folha de papel ofício seu protesto: ‘minha escola custava 800 reais, hoje custa 3 mil’. Uma mulher gritava: ‘Maninha, Maninha, vem pra rua, vem pra luta, baixar o preço da farinha!’. Com razão: farinha boa em Altamira chega a custar, hoje, 12 reais o Kg.

 Saindo da Orla, indo por áreas afetadas por Belo Monte, tomando a Djalma, as pessoas, nas portas de suas casas, nas janelas, por trás das vidraças dos comércios chiques com ar condicionado, ou do lado de fora, se mostravam favoráveis às manifestações. Alguns sorriam, outros ofereciam água, outros ainda batiam palma.

Diante de boatos de risco de violência, vários comerciantes fecharam mais cedo. Depois comentaram que o Ato fora pacífico, ordeiro e bonito. Uma TV local ajudou a espalhar os falsos boatos da quebradeira no programa Rota Livre, comentando que os jovens eram violentos. Apresentador de Programa veio de cidade vizinha exclusivamente para esse fim. Uma repórter fora enviada à Polícia para perguntar-lhe se estava preparada. Fonte fidedigna dera conta, na véspera, de que a Polícia tinha recebido 30 bombas de gás e 500 balas de borracha, e estava pronta para repressão a qualquer sinal de desordem.

Grupos supostamente ligados ao Prefeito de Altamira, Domingos Juvenil, fizeram de tudo para boicotar a manifestação. O pessoal do DEMUTRAN e professores tiveram aumento na véspera. Diretores das escolas passaram nas salas de aula afirmando que os estabelecimentos escolares não se responsabilizavam pela participação dos estudantes no Ato. E que estavam expressamente proibidos de ir com a farda escolar. Como não dava tempo do estudante ir trocar de roupa em casa, boa parte dos secundaristas, segmento entusiasta, não pode comparecer.  Também a atividade organizada por sindicatos e outras entidades do Oeste do Pará, reunidos desde o dia 25, prometeu se juntar à caminhada, mas não foi. Parece que em avaliação interna se preferiu o caráter pragmático da pauta econômica e eleitoral à ação Política. Sem esses pequenos incidentes, o número de pessoas nas ruas teria sido, seguramente, ainda muito maior.

Essa onda, num país ‘deitado eternamente em berço esplêndido’, nos últimos 20 anos, acossada pelo ‘em teu seio, ó liberdade, desafia o nosso peito a própria morte’, particularmente o peito da juventude, respingou em Altamira. Isso é um fato inarredável! Espraiou-se pela Orla, pelas ruas, pela cidade, chegando até Brasil Novo: 30 pessoas do Acampamento Novo Horizonte, iniciado no dia 6 de janeiro por causa da carestia de Belo Monte, e tendo já resistido a duas ameaças de despejo, participaram do Ato.

Muito semelhante às outras partes do Brasil, a onda não teve fôlego para chegar às baixadas e aos morros, áreas ocupadas pelas principais vítimas do sistema capitalista. Os empobrecidos não foram pedreiras, onde as ondas batem, dobram-se, e voltam. Ao contrário, acolheram muito bem a manifestação, gostaram, mas, na sua grande maioria, não se incorporaram como sujeitos nesse processo.

Esse é um dos grandes desafios! Soprar a onda, alimentá-la, nesse mar de gente, até envolver os mais lascados do sistema, mas sem jogá-la em igarapés estreitos de mediações caducas. Aos jovens, o protagonismo! 

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| Publicado 21/12/2023 por Coletivo de Comunicação MAB PI

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