Por detrás da pichação

Os guardas municipais de BH fizeram no dia 20/11, uma abordagem, no mínimo, curiosa, que teria sido pitoresca se, quase, não tivesse sido dramática. Eles interditaram os ônibus de trabalhadores […]

Os guardas municipais de BH fizeram no dia 20/11, uma abordagem, no mínimo, curiosa, que teria sido pitoresca se, quase, não tivesse sido dramática. Eles interditaram os ônibus de trabalhadores que faziam protestos na área central da capital mineira, quando iam sair da Praça da Estação de volta às suas casas, com a acusação de que um suposto pichador estaria entre os manifestantes. As acusações eram contraditórias, ora afirmando que tinham a filmagem do suposto ‘crime’ ora dizendo que tinham testemunha. Mas o que valia mesmo era a demonstração da força, e os ônibus estavam interditados.

Uma coisa simples, vinda do nada, foi ganhando proporções inimagináveis. Os quatro guardinhas acionaram outros, que imediatamente se fizeram presentes, dispostos a prender, de qualquer maneira, o suposto pichador infiltrado no Movimento. Eles afirmavam de pés juntos que o viram entrar em um dos ônibus, e ficavam ali, rodeando o carro feito um cão acuando a presa.

Sem sucesso, acionaram a Polícia Militar, que também, pelo grau do suposto ilícito, chegou muito rapidamente ao local. Já eram, então, em torno de dez guardas da Prefeitura de Belo Horizonte e três viaturas da PM. O caldo ia engrossando. Os policiais, informados pelos guardas municipais, já chegaram acusando os manifestantes de que estavam cerceando a ação da polícia, pois os estavam proibindo de entrar no ônibus para vistoriar e prender o suposto criminoso, que se escondera ali. Avisados de que não havia nenhum impedimento, e acompanhados por um manifestante, entraram no ônibus, mas não encontraram ninguém: estava completamente vazio.

O tempo continuou esquentando. De um lado, os policias empacaram querendo o pichador. De outro lado, os manifestantes, indignados, gritavam palavras de ordem, articulavam seus apoiadores e ameaçavam fechar o trânsito em frente à Praça da Estação, caso os ônibus não fossem liberados.

Uma comissão dos manifestantes foi negociar com os policiais. O Comandante, alto e forte, estava calado, e um soldado, aparentemente muito irritado, conduzia as conversações, com o argumento de que ele era o chefe da área onde ocorrera o incidente. Primeiro insistia em saber quem havia contratado o ônibus. Depois, teimava em ter o nome do líder da manifestação. Agarrado pelo braço por um dos soldados e arrastado à parte, onde cochicharam, voltou em segundos. Os manifestantes lhe jogavam na cara que, ali, eram todos trabalhadores, e alguns ainda teriam que viajar 700 km para chegar às suas casas; e que já eram, naquele momento, dezessete horas e trinta minutos.

Via-se no rosto o soldado uma mistura explosiva: insegurança e brio ferido. Argumentara, seguidas vezes, que temia ser acusado de  crime de prevaricação. E, por isso, insistia em ter um nome, qualquer quer fosse, para registrar um boletim de ocorrência. Isso era a sua defesa, pois mostrava aos superiores que tinha cumprido sua obrigação. O seu desespero era tanto que até um cachorro, devidamente identificado, teria servido para registrar o boletim.

Além da insegurança, porém, se via que o episódio tinha se transformado, em sua cabeça, numa questão de honra. O soldado precisava mostrar-se capaz no frontispício do seu superior. Ele estava ali presente, e acompanhava tudo. Uma honra que lhe poderia, quem sabe, render até uma promoção futura na carreira militar.

Diante dessa mistura explosiva, insegurança e interesse, os manifestantes, mesmo conscientes de que não cometeram nenhum crime, resolveram ceder, e disponibilizaram um nome para que o soldado registrasse o boletim de ocorrência e, em menos de 3 minutos, os ônibus, e os mais de duzentos manifestantes, estavam todos liberados e puderam, enfim, seguir viagem.

Esse curioso episódio se deu justamente ao final de uma marcha bonita, criativa e corajosa, que percorrera a região central de Belo Horizonte. Realizada pela Via Campesina, com a presença do MAB, do MST, e das organizações de estudantes – com seus batuques e sua arte -, ela teve como objetivo denunciar o massacre na cidade de Felisburgo, ocorrido no dia 20 de novembro, dia da consciência negra, no ano de 2004. Cinco trabalhadores do Movimento Sem Terra foram barbaramente assassinados pelo fazendeiro, que se considerava dono da propriedade. Os criminosos até hoje estão soltos, os parentes das vítimas não tiveram seus direitos constitucionais garantidos, e as terras da fazenda, desapropriadas à época por crime ambiental, ainda não foram repassadas, depois de seis anos, aos trabalhadores acampados por causa de disputa judicial.

Uma Marcha tão bonita, por uma causa tão nobre, denunciando um crime tão bárbaro – impune até hoje por clara omissão do Estado – experimenta, no seu encerramento, um misto de prepotência e insegurança desse mesmo Estado.

Belo horizonte é cheia de pichações por todo lado; com isso não se quer dizer que um erro justifique o outro, mas tão somente se quer mostrar que é arrogância e prepotência – ou perseguição política – segurar mais de duzentas pessoas por quase duas horas acusadas de um ilícito, que se apresenta aos milhares em toda a capital.

O mais grave ainda, talvez, é que verdadeiros crimes ambientais, todos comprovados, se cometem aos montes em todo o imenso Minas Gerais. A começar do próprio Estado Brasileiro, que incentiva e libera geral nossos bens naturais às empresas como Vale, Cemig, Furnas, Codevasf, Brascan, Gerdau, e tantas outras. É vergonhoso e nojento o que ocorre no projeto de irrigação do Gurutuba, no Norte Mineiro, onde a Codevasf cobra água de camponeses pobres, que acumulam dívidas impagáveis de até 16 mil reais. E vão aumentando as barragens, fazem dos rios de Minas águas mortas, e os minérios, que deixam as crateras gerais, e muita miséria.

Um exemplo dessa destruição em curso é o que vem acontecendo na região da histórica cidade de Congonhas. Castigada pela mineração, essa situação poderá piorar com por causa dos mega projetos privados, com previsão de investimento da ordem de 18 bilhões de reais, com grande aporte dos governos estadual e federal. Tudo isso para ampliar a exploração de minério, construir minerodutos, barragens e siderurgias.

O caso mais emblemático é o da cidade de Jeceaba, na mesma região, onde já se acha em fase final de construção a siderurgia das empresas Valorec e Sumitomo, francesa e japonesa respectivamente, para produção de tubos sem costura, menina dos olhos do mercado em tempo de pré-sal por causa de sua peculiar resistência. Além do impacto nas dezenas de minas de água e nos rios Paraopeba e Camapuã, foram quase totalmente destruídos pelas máquinas sítios arqueológicos, últimas marcas, talvez, dos povos nativos e de sua cultura naquela localidade. Agora esses cacos, um resto que sobrou, são juntados e colocados em pequeno museu, e as empresas, de destruidoras, aparecem como aquelas que investem em cultura. Nessas Minas, os papéis se invertem e as leis se torcem à vontade.

O caso dos guardinhas em BH, à procura do suposto pichador numa cidade de tantos e de tantas pichações, como a procurar um pingüim entre milhares, e o de Congonhas e região são apenas pequenos exemplos do que a política nefasta do Governo Aécio Neves, e seus sequazes, está fazendo no Estado de Minas Gerais.  Seus sonhos vão agora do Senado, onde se encontra, ao Planalto, para pesadelo da classe trabalhadora desse país. Anastásia, seu sucessor, um tecnocrata, mentor do choque de gestão e de outras farsas, deve imprimir ainda mais o rumo neoliberal em nosso Estado. Cada vez mais, Minas é menos dos mineiros e do Brasil.

Voltando ao episódio da Marcha, graças ao bom senso – que permite saber a hora de recuar e avançar – e à criatividade dos manifestantes, todo o aparato montado terminou num boletim de ocorrência. O pichador, se é que ele existiu, escafedeu-se na multidão. Como o ditado: “Os montes estão parindo, vai nascer um ridículo ratinho”.

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