Afinal, caras ou baratas?

Talvez em função das denúncias no senado e do foco na questão do pré-sal, a sociedade não se dá conta que a Camara Federal abriu uma CPI sobre as tarifas […]

Talvez em função das denúncias no senado e do foco na questão do pré-sal, a sociedade não se dá conta que a Camara Federal abriu uma CPI sobre as tarifas elétricas. Praticamente a imprensa não dá notícias sobre essa comissão que está discutindo uma questão fundamental para um país como o Brasil. Muitos consideraram um exagero a instalação da CPI, mas, pelo que se pode perceber nas audiências, só pelo desacordo sobre o adjetivo “caro” para a energia brasileira, a comissão já se justifica. O que poderia ser um entrave à busca por melhorias, é a enorme complexidade do atual sistema que dificulta bastante o entendimento por parte dos componentes da comissão.

Quando se examinam preços dos mercados de energia elétrica de outros países, o que chama a atenção é a fantástica diversidade de valores. Por exemplo, o que faria a Dinamarca ter uma tarifa residencial três vezes maior do que a média dos Estados Unidos[1]? Um problema cambial? Mas, é justificável o triplo? E entre estados americanos, com a mesma moeda, o que explicaria 1 kWh em New York ou em Connecticut custar o triplo do kWh de Idaho ou de West Virginia? Será que as empresas desses dois estados baratos estariam tendo fortes prejuízos?

Muitos fatores podem influenciar a heterogeneidade. Apenas para citar alguns, a tarifa pode ser afetada pela incidência de impostos, por uma política de subsídio cruzado, pelo custo de capital ou mesmo por uma política inibidora de consumo. Entretanto, dada essas diferenças, é bastante improvável que não haja uma razão estrutural. Assim, dois aspectos merecem destaque: A matriz energética daquele mercado e a política de remuneração dos investimentos adotada.

O que diferencia a hidroeletricidade de outras fontes energéticas, mesmo outras renováveis, é a longa vida útil das usinas. O conceito de energia “velha” surge dessa singularidade. Durante sua existência, uma usina hídrica pode devolver à sociedade até 100 vezes a energia necessária à sua construção[2]. Isso porque o conceito de vida útil, puramente econômico, é fortemente afetado por gasto com combustível, que, para as hidráulicas, é nulo. Ao contrário, uma térmica, usa combustível que, contabilizados, limitam a vida útil econômica em 20 anos. Portanto, um provável fator determinante de tarifas módicas em um sistema é o simples reconhecimento dessa durabilidade das hidráulicas[3]. Se o período de concessão é de 30 anos, após esse ciclo, teoricamente, a tarifa deveria cair drasticamente. Se a política regulatória reconhece essa excepcionalidade, há chance de se ter preços baixos. Se não reconhece, há o risco de tudo virar energia nova, mais cara.

O sistema de preços capaz de distinguir essa singularidade das hidráulicas é conhecido como de “serviço pelo custo”, “remuneração garantida” ou simplesmente serviço público. Nenhuma relação com o fato de ser estatal ou privado. Apesar dos defeitos advindos da possibilidade de se praticar custos exagerados e da imerecida fama de ideologia “estatizante” que ganhou aqui, muitos países ainda o adotam.

O Canadá é um bom exemplo porque, tendo matriz elétrica predominantemente hídrica, resistiu parcialmente às reformas mercantis. Duas províncias, Alberta e Ontário, adotaram a privatização e o modelo de mercado. Outras permanecem com empresas estatais, mas principalmente mantiveram o regime de serviço pelo custo (Quebec e British Columbia)[4]. Um morador de Toronto, Ontário paga R$ 0,215[5] por kWh. Um morador de Montreal, Quebec paga quase a metade, R$ 0,13/kWh. Quem mora em Vancouver, British Columbia paga R$ 0,133 por kWh. Não por acaso, essas duas últimas províncias são as mais bem servidas de fontes hidroelétricas. Uma visita ao site da BC Hydro e Hydro Quebec mostra que essas empresas estão sólidas, apesar das módicas tarifas[6].

Os Estados Unidos também são um “desconcertante” exemplo para quem ainda acredita que o sistema competitivo conseguiu cumprir o que prometia, ou seja, menores tarifas[7]. O estado de New York ainda tem 23% da energia de hidráulicas, mas, preferiu adotar o modelo de mercado. Lá, um morador paga R$ 0,34/kWh[8]. Já no estado de Washington, no noroeste americano, 64% de sua eletricidade é de origem hídrica e, talvez por isso, rejeitando o modelo mercantil, um americano desse estado paga menos da metade, R$ 0,14/kWh[9].  Enfim, dos 50 estados, apenas 15 desregulamentaram seu setor elétrico. Coincidentemente, com raríssimas exceções, têm preços 50% superiores aos regidos pelo antigo serviço pelo custo.

Examinando o caso brasileiro, a constituição de 1988, ironicamente considerada por alguns como “estatizante”, já tinha eliminado o princípio da justa remuneração, constante na constituição anterior. Propôs apenas que “o poder público disporia sobre a política tarifária”. Em 1993, a Lei 8.631, livre do princípio constitucional, dá o primeiro golpe no conceito de remuneração garantida. Termina também com a equalização tarifária entre distribuidoras. Apesar das gritantes diferenças dos mercados, a tarifa passa a ser regulada pelos próprios custos de cada concessionária, o que resultou na enorme assimetria atual [10].

Posteriormente, a lei 8987/95 das concessões, deu o tiro de misericórdia no conceito de serviço público e abriu as portas para a mercantilização. No seu Art. 9º, dispõe que:

A tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato.

§ 1º A tarifa não será subordinada à legislação específica anterior.

Observe-se a inusitada e exagerada preocupação de garantir o fim da tarifa pelo custo no § 1º. Já que o princípio não era mais constitucional e o Art. 9º da lei já elimina qualquer regra anterior que estabelecesse o contrário, o parágrafo é quase como um “ato falho” revelador da absoluta necessidade da alteração conceitual.

Desse modo, com raízes constitucionais, o Brasil, apesar da liderança absoluta nos recursos hídricos, seguindo a onda “modernizante” da década passada, preferiu adotar uma mudança regulatória que nem era consenso entre sistemas com matrizes energéticas semelhantes.

Segundo dados oficiais, a tarifa residencial média no Brasil de 1996 até 2008, subiu 47% acima da inflação no período[11]. Atenção: Exclusive impostos! A tarifa da indústria no mercado cativo, no mesmo período, subiu 87% acima da inflação. Para demonstrar o contínuo encarecimento, basta comparar a renda média da população acima de 10 anos (dado do IBGE) e a tarifa (dado da ANEEL). Em 1996 essa renda equivalia a aproximadamente 6.800 kWh. Em 2007, a mesma renda só “compra” 3.100 kWh. Isso, em um período onde houve irrefutável aumento real do salário mínimo.

Apesar da dificuldade de se comparar preços internacionais em função das variações cambiais, seria no mínimo muito estranho não cotejar nossos preços com países ou sistemas cuja matriz elétrica é semelhante à brasileira.  Até porque, alguns, ainda regulados sob o regime de serviço pelo custo, demonstram um enorme diferencial de preço.

É indiscutível o exagerado peso dos impostos sobre a tarifa brasileira. O ICM, que é cobrado pelos estados, atinge em média 35%. Além disso, há o PIS/COFINS que taxa a tarifa em mais 6,5 %. Nas discussões sobre o setor é comum culpar a carga tributária, mas, como se pode ver a seguir, mesmo sem impostos, a energia elétrica brasileira é muito cara quando comparada a de mercados com matriz energética semelhante. Isso não quer dizer que não se deva rever essa carga de impostos.

Um morador do Rio paga, impostos excluídos, R$ 0,30 por kWh, muito próximo ao que paga um novaiorquino e o dobro do que paga um morador da cidade de Seatle em Washington, ambos com impostos. O que dizer então do consumidor do Maranhão, ainda impostos fora, que é cobrado a R$ 0,41/kWh, 20% a mais do que um habitante de New York incluídos impostos?

A comparação com o Canadá, país com matriz energética semelhante é ainda mais espantosa. Sem impostos o carioca gasta 50% a mais que um morador de Toronto com impostos e quase três vezes o que paga um morador de Montreal com as taxas. Um morador do Maranhão, um dos estados brasileiros mais pobres, paga R$ 0,41/kWh, quase o dobro do que paga um cidadão de Toronto e 300% da tarifa de Quebec. O que é lamentável é que, nessa conta, podemos nos dar ao “luxo” de nem precisar incluir nossos impostos. Certamente, alguns argumentarão que tudo depende do câmbio, mas dada as absurdas diferenças, não há desvalorização plausível do real que aproxime as tarifas. Outros dirão que a razão está na amortização das usinas canadenses. Mas essa é exatamente uma das diferenciações das políticas adotadas no Brasil que precisam ser examinadas. Imagine-se quando se faz uma comparação que leve em consideração a renda da população.

Os encargos setoriais, que, ironicamente, proliferaram após 1995, marco zero da reforma mercantil, poderiam ser os vilões. Entretanto, não se pode expurgar tudo da tarifa, pois, afinal, também há encargos em outros sistemas. Além disso, o que se está examinando aqui é o resultado global de uma política onde o modelo competitivo implantado se insere. Os encargos são parte. Mas, vamos fazer uma reflexão sobre esses custos.

A Parcela A das distribuidoras é composta de energia comprada e encargos. Em 2008 ela correspondeu a 64% da receita. Nesses 64%, 9% são associados à custos de transmissão e 11% são os chamados encargos “setoriais”. Ou seja, 44% são relativos à energia comprada[12]. Olhando apenas a parcela da transmissão, praticamente 75% correspondem à rede básica. O uso da transmissão de Itaipu corresponde a 13%. Os restantes 12% são custos de conexão, ONS e uso do sistema de distribuição. São todos custos do sistema.

Os encargos setoriais (11% da receita) tem como componentes: CCC (34%), CDE (29,5%), PROINFA (10%), RGR (8,9%), P&D (8,6%), ESS (6,6%), TFSEE (2,3%), CFRUH (0,1%). Nesse caso, é importante diferenciar o que seria um “peso extra” sobre a tarifa. Nessa categoria, estaria a CCC que já existia antes das mudanças do modelo, a CDE que financia o programa Luz para Todos, o PROINFA e P&D. A RGR que é fonte de financiamento do setor, a TFSEE da ANEEL, e CFRUH de royalties para os estados, não parecem ter a mesma natureza dos outros, Portanto, nos encargos, que respondem por 11% da tarifa, 82% são “subsídios” . Ou seja, cerca de 9% (11% x 82%) seriam “custos extras” que o consumidor carrega e que nada tem a ver com o sistema de produção[13]. Se fossem expurgados da tarifa, os diferenciais em relação aos preços cheios dos países citados ainda seriam significativos[14].

O artigo não tem a pretensão de fechar questão sobre nada. Muito ao contrário, é preciso iniciar o debate. Muito menos se visa alterar a base ideológica das atuais regras do setor, até porque, como explicitado, a modelagem atual tem raízes constitucionais. Entretanto, imaginar que esse tema não entre na pauta de debates pode afastar a possibilidade de se discutir aperfeiçoamentos. O que é importante enfatizar é que, ao contrário do propalado, sistemas de predominância hidráulica são uma minoria no planeta. Os que dispõem de grandes reservatórios, que possibilitam “guardar” a energia de um futuro, são ainda mais raros, não são em nada semelhantes a sistemas de base térmica e poucos adotaram o modelo mercantil. Considerados esses pontos, a experiência brasileira foi uma aventura arriscada.

As disposições constitucionais e legais vigentes exigem a realização de licitações para novas outorgas para as usinas existentes. Cerca de 20.000MW vencem até 2015.  Evidentemente, não se pretende aqui discuti-las e muito menos reformá-las. Entretanto, a realidade se impõe acima das normas e talvez revele que as escolhas feitas no passado sob a pressão de cativantes paradigmas, agora, se mostram bastante contestáveis.


[1] Fonte: www.iea.org – Key World 2007

[2] Fonte: Hydropower and the Environment:Present Context and Guidelines for Future Action IHA May 2000

[3] Esse efeito também pode ocorrer em outras fontes energéticas, mas é mais acentuado nas hidráulicas.

[4] Fonte: http://www.hydro.mb.ca/regulatory_affairs/energy_rates/electricity/utility_rate_comp.shtml.

[5] 1 $ Canadense = R$ 1,87, impostos incluídos.

[6] www.bchydro.com  e www.hydroquebec.com

[7] O Public Holding Act, legislação criada em 1935 ainda é adotada em vários estados americanos. Recentemente várias tentativas de reformas dessa legislação foram levadas ao congresso. Entretanto, ainda há intenso debate e resistência quanto à sua rejeição. Para uma amostra, consultar www.citizen.org.

[8] Fonte: Energy Information Administration – www.eia.gov. “Annual Electric Power Industry Report.”

[9] 1 US$ = R$ 2. Valorizações do Real pioram ainda mais a situação.

[10] Um morador do Maranhão chega a ter uma tarifa cerca de 85% mais cara do que um morador de Brasília.

[11] Os dados de 1996 a 2002 estiveram no site da ANEEL até recentemente. Infelizmente e sem explicações sobre os motivos, hoje só constam as tarifas a partir de 2003. Outros documentos incluem essas informações hoje ausentes. Ver DIEESE – As tarifas de energia elétrica no Brasil – sistemática de correção e evolução dos valores – 2007

[12] Fonte: 4ª edição do Informativo Tarifário, elaborado pelo Departamento de Gestão do Setor Elétrico – DGSE, que integra a Secretaria de Energia Elétrica – SEE, do Ministério de Minas e Energia – MME.

[13] Na realidade, pelo menos parte desses recursos volta ao setor, pois financia eficiência energética, aumento de mercado e energia alternativa. A política de superávit primário e de contingenciamento pode represar uma parcela desses recursos.

[14] Mesmo descontando todos os encargos, 11% da tarifa, sem impostos, a tarifa brasileira é mais alta do que as tarifas de sistemas semelhantes com todos os impostos e encargos.

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