Do quintal do império à solidariedade internacional
Seria apenas um momento místico na Florestan Fernandes, no dia 21 de fevereiro. Mas não foi! O poema inicial começa cantando que ela é mais bela que isso e que […]
Publicado 03/03/2014
Seria apenas um momento místico na Florestan Fernandes, no dia 21 de fevereiro. Mas não foi! O poema inicial começa cantando que ela é mais bela que isso e que aquilo. Não se diz quem é ela. Ao final se revela que é quase tão bela quanto à revolução cubana. Nessa hora, todos os olhares se encontram e brilham de contentamento e utopia.
Tanta coisa vem à cabeça!
A onda de espionagem dos Estados Unidos no alto escalão dos governos, inclusive no Brasil, e em empresas, como Petrobrás, faz parte dessa ação orquestrada para a dominação dos países estratégicos do ponto de vista do capital em qualquer parte do mundo.
Na Ucrânia, o governo é taticamente desinstalado e deposto porque tendia para a Rússia ao invés de integrar-se de vez à União Européia, numa clara disputa econômica e ideológica. Não é à toa que um grupo de manifestantes derruba a estátua de Lênin no dia 8, em Kiev, na Praça Bossarabia. Busca-se varrer toda cinza na intenção de apagar qualquer sonho de liberdade que possa persistir no substrato social, esfriando as brasas latentes.
Em nossa América, as garras do imperialismo campeiam. Criam-se fatos e semeia-se o caos, principalmente através da grande mídia, porta-voz de seus comparsas. Ela se comporta como o maior partido de direita. Depois se convocam eleições democráticas, e o pé do império fica atolado ali, sugando bens naturais e trabalho dos trabalhadores. Foi assim em Honduras e Paraguai, tentou-se isso em El Salvador e Bolívia, com acusações genéricas do tipo ele é incompetente ou falou mal de mim. Lembra a famosa fábula do lobo e do cordeiro: todas as acusações são meras desculpas para saltar-se sobre a vítima e transformá-la num alimento apetitoso.
Cada vez mais os destinos dos povos são definidos fora dos Estados nacionais.
Agora a Venezuela é a bola da vez! Quem são os grandes opositores do governo de Nicolás Maduro? Não é o povo! É uma direita ultraconservadora que, servindo-se de contradições normais de qualquer governo, e de alguma desatenção, manipula o povo.
Dois nomes têm aparecido na mídia como grandes heróis: Leopoldo López e Henrique Capriles. Lopez é direitista da ala radical de oposição ao governo Maduro e formou-se nos Estados Unidos, desde o ensino médio até os estudos universitários em Harvard. Capriles tem no seu currículo a participação na TFP Tradição, Família e Propriedade, um movimento ultraconservador e extremamente reacionário. No Brasil, a TFP está associada a uma corrente católica moralista e antiquada, contrária à Teologia da Libertação e às CEBs e, no nível social, defende a mesma bandeira dos ruralistas e do agronegócio, contra o povo.
Nesse contexto, o exemplo de Cuba é mesmo belo, mexe com o sentimento e alimenta a esperança, pois mostra que o socialismo não são apenas palavras de ordem nem é abstração.
Uma comparação se impõe. Sob a liderança de Fidel Castro, revolucionário líder do Movimento 26 de julho, o povo cubano derrotou a ditadura de Fulgêncio Batista no dia 1º de janeiro de 1959, comemorando-se 50 anos de processo revolucionário em janeiro de 2009. A revolução cubana torna-a solidária e internacionalista. No Brasil foi diferente! Derrotado pelo golpe militar, cujo cinqüentenário é lembrado no dia 31 de março deste ano, encerra-se o governo de João Belchior Marques Goulart, o Jango, do Partido Trabalhista Brasileiro, eleito democraticamente, num ambiente de acúmulo de força popular.
Não são apenas pessoas que foram perseguidas e mortas. É todo um projeto de nação! O trauma da colonização somado à escravidão somado à ditadura militar é forte demais, e deixou marcas de profundo medo na alma do povo.
A democracia representativa não é suficiente para superar esse trauma, e seus grilhões. Ela é lerda demais com a ditadura econômica. Um caso típico é o setor elétrico brasileiro. Ele é centralizado, ditatorial e funciona segundo a demanda do capital. Belo Monte, Santo Antônio, Jirau são enfiadas goela abaixo. Quando agora o Madeira sobe quase 19 metros (por causa da barragem) e inunda tudo, as famílias se manifestam e levam bala de borracha. Quando as enchentes invadem as ruas de Altamira e as pessoas vão às ruas, com a cabeça quente de tantos problemas de Belo Monte, policiais reprimem com balas de borracha.
Ah! O Site da Norte Energia noticia que foi renovado o convênio com a Força (opressora) Nacional, que se instalou nos canteiros de obras de Belo Monte. São resquícios da ditadura, nas mentes e na força repressiva do Estado brasileiro.
Carlos Drummond quis intuir na sua poesia: somos filhos do medo (…). Um dia morreremos de medo e em nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Não há de ser assim! Somos filhos do medo, é verdade. Mas poderemos parir a liberdade com a rebeldia criativa do povo organizado. Há que se romper com o medo! Há que se organizar o povo! Há que se lotarem as ruas como o foi em junho, de forma ainda mais organizada.
A semana de 14 de março, que já está chegando, lembra o Dia Internacional de Luta Contra as Barragens e pelo Direito dos Atingidos. O povo não vai se calar diante da omissão do governo e da ditadura econômica. A melhora real da qualidade de vida do povo é a premissa inarredável para qualquer desenvolvimento.
Voltando à vaca fria, as músicas, os abraços, a dança, tudo foi muito especial naquela mística-homenagem ao povo socialista da Ilha caribenha, no dia 21 de fevereiro.
O momento era o mesmo de todos os dias, entre o café da manhã e o início das atividades. O cenário também! O gramado, duas bandeiras hasteadas, três cuidadosamente dobradas ao chão. Um pequeno arbusto, que vai crescendo a cada ano e se alastrando, espalha flores puxadas a roxo que, embora varridas diariamente, persistem. São feito sonho de liberdade, teimosas, perfumadas, abertas aos desafios.
As pessoas se colocam em volta. Noruegueses, cubanos e brasileiros das cinco regiões do país, militantes do MAB, e a Brigada Permanente Apolônio de Carvalho, que coordena a Escola Nacional Florestan Fernandes.
Poderia ser uma torre de babel. Mas não é!
O coração da Florestan é todo particularmente singular. Ele carrega e guarda um quê de memória subversiva na perspectiva da unidade internacionalista dos povos e da classe trabalhadora.
A começar pelo nome da Brigada permanente. Apolônio de Carvalho, personagem Apolinário no livro Subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado, é chamado pelo escritor baiano de herói de três pátrias. Isso porque ele participou da Revolta (Intentona) Comunista de 1935; da guerra civil espanhola, na resistência francesa contra o nazismo; e da guerrilha contra o regime militar brasileiro.
A pequena placa alusiva à sua inauguração da escola informa que ela fora construída em mutirão, um esforço conjunto de camponeses organizados e aliados. Gente teimosa e corajosa, que transforma sonhos em realidade.
À porta da biblioteca, lêem-se palavras tipo silêncio, cuidado, atestando-se a consciência da importância do saber na tomada do poder. O estudo e a reflexão têm a força terna de um fuzil apontada para a liberdade. Quando a cabeça não pensa os sonhos não andam, as mãos não se juntam e o corpo todo, de povos inteiros, padece a mítica do destino ingrato: a naturalização da opressão.
A biblioteca refletida lembra que não é só toda a riqueza material do mundo que é produzida pela classe trabalhadora. O conhecimento também! A energia que alimenta cada neurônio de estudantes e intelectuais, de cientistas, orgânicos ou não; que possibilita ao dedo teclar ou tomar a caneta e deslizá-la sobre uma folha de papel, tudo é movido pela força do trabalhador, e traz o cheiro do seu suor e sangue.
Do lado, na grande plenária, Rosa Luxemburgo conta, em quadros, a sua história.
No piso da plenária, em semicírculo, destaca-se a palavra socialismo, cujas letras se formam de grãos de feijão.
Além de alimento, ali se semeiam outras sementes, latentes, rebeldes, fecundas. Além de alimento, os movimentos populares do Brasil e na América Latina plantam sementes de liberdade.
Mas a gente tem fome de quê? A gente tem sede de quê? É certo que a gente não quer só comida!. É certo que uma ração diária, do tamanho da esmola da acumulação capitalista, que é exorbitante, não é suficiente para a soberania de qualquer país.
Ninguém melhor para decifrar o sentido da pergunta do que Patativa do Assaré e Florestan Fernandes, muito presentes ali, na escola. Patativa, poeta sertanejo de Assaré, Ceará, dá nome ao auditório do lado. Filho de agricultores, aprende cantar a vida do sertanejo, com seus desafios e esperanças. Florestan, de corpo inteiro, fica perto da sala de internet. Sociólogo marxista, ele publicou mais de 50 obras e construiu um caminho inovador, afastado tanto do dogmatismo quanto da exagerada concessão de esquerda.
O velho e terno Florestan! Com justeza ele dá nome à escola, e segue sua trincheira. Suas mãos trêmulas sobre a bengala, que lhe apóia as pernas, e um olhar sereno e firme, que indica o Caminho: o socialismo se impõe cada vez mais como uma necessidade.
Esse sonho só é arroubo da juventude nos becos do pensamento titubeante, que leva ao adesismo e ao esquerdismo, que se encontram na mesma estrada como as pontas-extremos de um mesmo novelo.
O adesismo, exageradamente pragmático, fanático, compõe com cobras e lagartos. O esquerdismo, preconceituoso, foge do governo como o diabo foge da cruz. Em ambos, mora a falta de esperança na mudança estrutural e real da sociedade. Em ambos, mora a fragilidade ideológica.
É fácil ser a favor do desenvolvimentismo de cunho neoliberal. É fácil ser apenas contra também. Desafiante é entrar nesse jogo intrincado de forças ora totalmente opostas ora apenas conflitantes ora aliadas e fazer dele um passo além, aproveitando as brechas e contradições como verdadeiras alavancas de mudança.
A revolução cotidiana de Cuba escolheu esse caminho. Permanecem por toda a Ilha os Comitês de Defesa da Revolução. Espalha-se, pelo mundo todo, a solidariedade internacional de Cuba. Internamente, revolucionaram-se a saúde e a educação. Fez-se a revolução energética para garantir luz elétrica a todas as famílias. Propugna-se agora a revolução econômica para vencer o boicote covarde dos Estados Unidos e os aliados do imperialismo. Nesse aspecto, é salutar a construção do Porto Mariel na ilha caribenha com o apoio do governo brasileiro. E a participação grandiosa dos médicos cubanos no Mais Médico. Pessoas simples de Brasil Novo, Vitória do Xingu e Altamira, no Pará, têm comentado da forma diferenciada como atendem o povo.
O socialismo cubano quer avançar! Por isso aquele grupo está ali, na Florestan, e tantos outros estão em diferentes partes do mundo. Querem trocar saberes sobre as diversas experiências de associativismo ao redor do mundo e impulsionar a economia na Ilha.
Avançar não significa embarcar na canoa furada e carcomida do capitalismo, sistema em que as coisas ficam mais belas que as pessoas. E por isso não presta! Avançar significa aprofundar ainda mais o socialismo. Discretamente, a revolução cubana segue no seu cotidiano, do quintal do império para a América Latina e para o mundo.