Rojão, terrorismo e liberdade
São sete horas em Altamira! Da sacada da casa se avista o Xingu, imponente, sonolento, deitado ao lado do cais, abraçado às ilhas, no seu leito. Lâmpadas ainda se encontram […]
Publicado 13/02/2014
São sete horas em Altamira! Da sacada da casa se avista o Xingu, imponente, sonolento, deitado ao lado do cais, abraçado às ilhas, no seu leito.
Lâmpadas ainda se encontram acesas nos postes, inseguras, pois, com o inverno, e o chuvisco matutino, sabe-se lá a que horas o dia amanhece completamente. Sabe-se lá, também, como amanhece a pouca democracia. Ela anda tão aviltada!
A via do cais começa a movimentar-se. Apenas começa! A cama é muito convidativa nesse fresquinho do inverno amazônica.
Em Belo Monte, porém, o tempo é quente! O terrorismo é (pré) potente: no arroto de pura arrogância da Norte Energia, na omissão reincidente dos governos, no confinamento do operário em canteiros de concentração de obras, na repressão da Força Nacional, na imposição de casa de concreto, na expulsão do indígena que agora anda na rua sem eira nem beira, no abuso de autoridade do delegado que joga o papel na cara da conselheira tutelar, no interdito proibitório para inibir as mobilizações, na limpeza social dos alagados de Altamira e no extermínio dos empobrecidos.
O setor elétrico brasileiro é terrorista: ditatorial, centralizado, planejado segundo a fome insaciável e violenta do capital. E vem dando certo. Então não seria mau para os ricaços espalhar esse método para outros setores. Precisariam de uma ocasião. E a ocasião faz o ladrão.
Lá fora, também, o calor é grande! A partir de outro Rio, o de Janeiro. Pode-se notar pelo noticiário da TV.
É lamentável o incidente que tirou a vida do cinegrafista Santiago Andrade, atingido por um rojão na quinta-feira (6) durante manifestação naquela cidade. Uma fatalidade! Somamo-nos às expressões de carinho aos seus familiares e colegas de profissão.
Mas outros rojões potentes e perigosos agora se levantam e se acendem lá no Senado brasileiro; esses, sim, com alvo certeiro, mirando as manifestações populares. Há que se perpetuar a vocação pacífica do povo brasileiro.
De onde o Congresso Nacional olha o Brasil? Ele olha de onde vêm os congressistas, dos grupos que representam. Dos 594 parlamentares (513 deputados e 81 senadores) eleitos em 2010, 273 são empresários, 160 compõem a bancada ruralista, 66 são da bancada evangélica e 91 da bancada sindical.
Poucos, muitíssimo poucos, olham o Brasil a partir do povo brasileiro. A maioria deles olha o país com os olhos dos que se apropriam dos bens naturais e do trabalho da classe trabalhadora. Por isso os seus discursos são tão nervosos e suas práticas tão violentas contra os indígenas, contra os camponeses, contra a melhora de vida dos empobrecidos e contra a organização do povo.
Num clima de comoção social em torno do incidente que vitimou um trabalhador, os parlamentares querem aprovar a PL 499 que inclui o crime de terrorismo na Constituição brasileira.
Insuflados por impérios econômicos e interesses inconfessos, os debates no Senado e na Câmara dos Deputados ficam cada vez mais acalorados. Como em outras ocasiões, colocando jovens e adolescentes como os responsáveis pela violência e buscando forçar a aprovação da redução da maioridade penal. Agora a bola da vez são os mascarados.
Isso é recorrente: tratar questão social como caso de polícia. O povo vai às ruas, reivindica políticas públicas, mas dá-lhe cassetete e privação da liberdade.
A PL 499 prevê até 30 anos de detenção para quem for condenado por crimes entendidos como de terrorismo. Entre os casos de enquadramento, está o previsto no seu artigo 4º: provocar ou difundir terror ou pânico generalizado mediante dano a bem ou serviço essencial.
O que se entende por bem ou serviço essencial?. Uma barragem, uma central elétrica, uma linha de transmissão de energia, aeroporto, porto, rodovia, ferrovia, estação de metrô, meios de transporte coletivos, ponte, plataforma e outros. Ou seja: com essa PL aprovada, quem triscar no interesse do capital, ainda que de longe, já é terrorista.
Abriu-se a caça aos mascarados, os Black-blocs e, de tabela, a toda e qualquer manifestação. Por que eles vendam o rosto? Fazer uma associação direta entre rosto vendado e bandidagem é no mínimo uma insensatez. E o que dizer de quem esconde o corpo todo por trás da gravata e do paletó? E o que dizer de quem aparece de quatro em quatro anos financiado por empresas do agronegócio, do minério, da energia, das quais é porta-voz? O que dizer de impérios da comunicação que escondem a verdade do povo? O que dizer de quem recebe remessas bilionárias, resultado da pilhagem dos nossos bens naturais e da exploração da maior riqueza do Brasil, o povo.
Quando será mesmo o amanhecer? Quando? Quando a liberdade vai clarear o tempo fechado, dessas nuvens espessas que cobrem o céu de Altamira, e teimam em retroceder o Brasil? Quer-se calar, a todo tempo, de todo jeito, a voz de junho ecoada das ruas, borbulhante, persistente. Quer-se extirpar a raiz das históricas lutas do povo, e de suas conquistas.
A verdadeira vocação do povo brasileiro, e do povo do mundo inteiro, não é ser pacífico, é ser livre!
Bem faz o Xingu, esse velho guerreiro, que sabe ser singelamente terno e bravamente rebelde. Quando descansa, é todo sonolento, lento, quase parado. Mas quando acorda suas águas balançam, se agitam, e destroçam novas e velhas formas de opressão. Os indígenas o mostraram diversas vezes, e recentemente.
O Xingu carrega muita semelhança com a fonte do poder: o povo!
Ainda não sou tão íntimo do Xingu! Ribeirinhos e indígenas é que fazem amor com ele, um caso mais que milenar. Nesse pouco tempo, porém, dois anos e meio, já notei que a coisa que ele detesta é a traição e o oportunismo.
Ah quando souber o que estão aprontando na Volta Grande!
Ah quando vir que o índio foi enganado!
Ah quando notar que o carroceiro, o pescador, os camponeses, os urbanos, todos seus amigos de longa data, foram ludibriados!
Ah quando terminar o anestésico da operação Belo Monte!
Ah quando sentir sua espinha dorsal quebrar-se no tombo da cachoeira!
Ah quando o corpo ferir-se de tanto rolar na planície e a dor for doída!
Ah quando a comporta fechar-se, a água subir, o terrorismo revelar-se mais fortemente!
Ah quando as ruas do Brasil virar um mar de gente de novo!
Ah! O Xingu vai acordar!
Ah! O poder vai ser popular!
Ah se vai!