O cunho ideológico da tarifa branca

A ANEEL, em suas denominadas audiências “públicas”, está indicando que a partir de março de 2014 os consumidores de eletricidade em baixa tensão – residenciais, comerciais, e rurais com fornecimento […]

A ANEEL, em suas denominadas audiências “públicas”, está indicando que a partir de março de 2014 os consumidores de eletricidade em baixa tensão – residenciais, comerciais, e rurais com fornecimento de eletricidade em voltagem menor que 2.300 volts – poderão optar pela modalidade tarifária branca. Esta modalidade tem como característica preços diferenciados do custo da eletricidade (R$/KWh) durante as horas do dia. Como os consumidores de baixa tensão, em geral, consomem mais eletricidade a partir de 18 até às 23 horas, e, entre 23 horas até às 17 horas utilizam menos, a defesa da tarifa branca pela ANEEL fundamenta-se no argumento de que a institucionalização de preços altos de eletricidade nos horários de maior consumo e preços baixos nos de menor consumo beneficia tanto os consumidores de baixa tensão quanto as distribuidoras. Pois, segundo a ANEEL, aqueles consumidores que podem mudar as suas características de utilização da eletricidade serão beneficiados pela redução do custo da eletricidade ao transferir o consumo dos horários de maior preço para as horas de menor preço. E, com o deslocamento do consumo do horário de ponta, as distribuidoras obtém melhor perfil de utilização de suas instalações, possibilitando o benefício de maior venda de eletricidade por unidade de instalação. Então, diante dos argumentos da ANEEL, como compreender a proposta da tarifa branca?

Ideologicamente alinhado com o campo do trabalho, entendo que a ANEEL, enquanto instituição de Estado surgida no bojo da reestruturação produtiva capitalista dos anos 1990, segue o preceito político estabelecido na “missão” da Agência, cujo objetivo é o de “proporcionar condições favoráveis para” o desenvolvimento do “mercado de energia elétrica”. Pois, a proposta da tarifa branca, do lado da produção, organiza politicamente a sustentabilidade da manutenção/ampliação da lucratividade das empresas de distribuição, e, do lado ideológico, estrutura uma representação que procura legitimar a exploração dos trabalhadores que participam da produção, bem como aqueles que compram a eletricidade.

No campo da produção, a implantação da tarifa branca implica a substituição dos medidores de energia elétrica. Os atuais medidores apenas registram a quantidade consumida de eletricidade e a tarifa branca exige um medidor que registre simultaneamente quantidade e o horário em que a quantidade de eletricidade foi consumida. Neste sentido, a tarifa branca está articulada com a decisão tomada pela ANEEL em agosto de 2012, quando através da resolução n. 502 regulamentou a medição de energia elétrica para os consumidores de baixa tensão através de medidores com os atributos exigidos pela tarifa branca, independente da opção de medição dos consumidores, bem como, o prazo de implantação em até 18 meses após a data de sua publicação. Isto é, concomitante ao início da opção da modalidade tarifação branca, indicada para março de 2014, os consumidores de baixa tensão já estarão com os denominados “medidores inteligentes”. Por isso, em 29 novembro de 2011, quando a ANEEL iniciava suas “audiências públicas” para definição de novas regras para a medição de energia elétrica em baixa tensão, os porta-vozes da indústria de equipamentos de medição já comemoravam afirmando: “Vem aí o medidor digital e com ele uma pequena revolução em como se usa a energia elétrica no país. A mudança adiante não é um negócio trivial. Somente o plano nacional de substituição dos 65 milhões de medidores instalados no país, cujo padrão ainda não foi definido pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), vai criar um negócio de pelo menos R$ 13 bilhões”.

Assim, os encaminhamentos da ANEEL – “medidores inteligentes” e tarifa branca – abrem o caminho no campo da produção para a incorporação das inovações tecnológicas de medição, comando e controle – estou falando das tecnologias de smart grid – nas redes de distribuição. Esta nova onda, de um lado, acolhe os interesses de expansão de vendas das indústrias destes equipamentos elétricos e, do outro lado, atende os interesses de aumento da produtividade do trabalho dos trabalhadores das empresas de distribuição de eletricidade.

 

Beneficiados

Com a introdução dos novos “medidores inteligentes”, um enorme mercado de outros produtos será criado para a indústria elétrica em geral. A resolução ANEEL n. 502/2012 – medição de energia elétrica em baixa tensão – tem em seu conteúdo os elementos institucionais para a ampliação do mercado de produtos para a indústria de equipamentos elétricos. Ela – a resolução n. 502 – prevê a possibilidade do acoplamento de tecnologias de medição remota. Estas tecnologias proporcionam a conexão a sistemas de transmissão de dados, fato que possibilita a inclusão de tecnologias de instalações elétricas residenciais e equipamentos elétricos inteligentes, que podem ser interligados a sistemas computacionais com capacidade de gerenciar a operação e o consumo doméstico de eletricidade. Estas, combinadas ao apelo da tarifa branca de oferta de eletricidade com horários de menor preço, estimularão os consumidores à compra de novos aparelhos domésticos inteligentes. As residências também serão incentivadas à implantação de sistemas de autoprodução, por exemplo, o caso das tecnologias fotovoltaicas. Portanto, empresas como a General Electric, a Siemens, a IBM, a CISCO, a Google, entre outras indústrias ligadas à produção de equipamentos elétricos hardware e software, vislumbram neste mercado um enorme potencial de realização de lucros.

A metodologia empregada para a definição da tarifa branca, associada à utilização dos medidores inteligentes e combinada a outras tecnologias de medição e controle e programação de dados, possibilitam às empresas distribuidoras rigoroso controle em tempo real de suas instalações. Esta supervisão técnica dos trabalhadores e dos meios de produção empregados na manutenção e operação das instalações criam muitos resultados que concorrem para o aumento da produtividade do trabalho dos trabalhadores. Entre os principais, dois resultados destacam-se. O primeiro diz respeito à possibilidade de que os preços diferenciados – segundo os horários de consumo – podem deslocar os consumidores dos horários de ponta com o consequente resultado de intensificar o uso das instalações. O segundo está ligado à supervisão remota das unidades consumidoras com os medidores inteligentes, permitindo a medição e o controle – ligação ou desligamento – das unidades a distância, fato que implica a eliminação dos postos de trabalho relacionados à medição e à ligação ou desligamento das unidades inadimplentes. A partir destes resultados, um menor número de trabalhadores será suficiente para produzir mais unidades de serviços de eletricidade com menor número de unidade de instalação por unidade de serviço de eletricidade produzida. Assim, neste novo cenário, as distribuidoras obtém maior lucratividade através do aumento da produtividade do trabalho dos trabalhadores que permanecem nas empresas.

 

Consequências

Ao invés de avaliar os resultados para os consumidores, vamos à análise das consequências aos trabalhadores. Os que trabalham nas distribuidoras e aqueles que compram eletricidade destas empresas. Deste modo, perdem os trabalhadores das empresas, pois o aumento da produtividade do trabalho nestas empresas não tem levado a uma maior participação dos trabalhadores nos resultados da produção. Ao contrário, os balanços destas empresas mostram produção crescente com massa salarial decrescente. Por isso, os trabalhadores que permanecem nas empresas são cada vez mais em menor número, produzindo muito mais e recebendo menores salários.

Quanto aos trabalhadores que compram eletricidade para utilização em suas moradias, as suas características de consumo confirmam o embuste das afirmações da ANEEL de que a tarifa branca permite“ao consumidor a escolha da modalidade tarifária que melhor se aplica ao seu perfil de consumo, ou ainda, que ele possa alterar seu perfil de consumo ao longo do dia para usufruir de reduções na sua fatura de energia”.Recorrendo às informações da ANEEL apresentadas na Nota Técnica n° 1/2013–SRC/ANEEL, que trata da regulamentação da tarifa branca, temos uma tabela que permitem caracterizar o perfil de consumo das residenciais brasileiras. Da referida Nota Técnica destacamos alguns dados colocados na tabela a seguir.

Intervalos de consumo das moradias

(KWh/mês)

Números de moradias contidas nos intervalos de consumo

(Unidades de moradias – UM)

Média de consumo das moradias contidas nos intervalos (KWh/mês)/UM

0 a 30

6.557.728

27,34

31 a 50

4.379.788

44,11

51 a 100

13.948.389

77,29

101 a 220

21.558.444

151,78

> 220

12.941.842

401,69

Os dados da tabela mostram que as moradias contidas nos intervalos de consumo de 0 a 30 KWh, 31 a 50 KWh e 51 a 100 Kwh têm, respectivamente, um consumo médio mensal de 27 KWh, 44KWh e 77 KWh. São moradias cujas reduzidas médias de consumo revelam não possuir nenhuma margem para a mudança do perfil de consumo. Isto é, a média baixa de consumo revela que nestas moradias são ligados alguns aparelhos essenciais e por muito pouco tempo. Ou seja, destes dados podemos afirmar que mais de 42 % do total das moradias brasileiras não têm qualquer possibilidade de mudar o seu perfil de consumo. As moradias que estão no intervalo de consumo entre 101 a 220 KWh têm uma média de consumo de 151 KWh e correspondem a cerca de 36 % das moradias brasileiras. Nestas, considerado o baixo consumo médio de 151 Kwh das moradias, é possível inferir que a margem de deslocamento de consumo é muito pequena. Isto é, pode-se estimar que cada unidade de consumo tem condição de deslocar o seu perfil de consumo no horário de ponta de no máximo 10 a 20% do seu consumo (entre 15 a 30 KWh). E isto só deve acontecer naquelas que os moradores revelarem uma enorme disposição para a mudança nos hábitos de consumo, por exemplo, terão que reduzir o uso dos aparelhos de TV e, em hipótese alguma, poderão tomar banho usando chuveiro elétrico nos horários de ponta. Daqui se depreende que estas residências, que correspondem a 36 % das moradias brasileiras, se adotarem a tarifa branca, serão penalizadas com profundas mudanças em seus hábitos de consumo e insignificante redução em suas contas de energia elétrica. As demais moradias, as compreendidas no intervalo de consumo maior que 200 KWh, cuja média mensal de consumo está situada em torno de 400 KWh, correspondem a 22 % das moradias brasileiras. Pode-se inferir que nestas moradias duas reações devem predominar. Uma procurando mudar o perfil de consumo, mas com resultados pouco significativos em suas contas, e outra que não mudará o seu perfil de consumo em função do poder de compra destes consumidores. Estes 22 % de moradias constituem os grupos que criarão mais benefícios aos setores empresariais, pois, apesar destes consumidores terem poucos benefícios pela reduzida margem de mudança por unidade de moradia, estas, quando adicionadas, produzem nas redes das distribuidoras uma melhora substantiva do perfil de carga das redes, produzindo excelentes benefícios econômicos às empresas. Já as moradias cujos consumidores têm maior poder de compra beneficiarão diretamente as empresas distribuidoras pois, como não deslocarão o seu consumo habitual dos horários de ponta, terão um aumento nas suas contas de eletricidade beneficiando diretamente a receita das distribuidoras. Este segmento também será o principal potencial mercado da indústria elétrica para incorporação de tecnologias em direção a denominadas “casas inteligentes”.

Além destes potencias benefícios econômicos aos setores empresariais, a tarifa branca também se destaca pelo cunho ideológico ao evitar o debate sobre os motivos de explicar como uma cadeia produtiva de eletricidade que tem por base a geração hidráulica que possibilita o menor custo de produção, entre todas as modalidades de geração de energia elétrica, tem suas tarifas entre as mais caras mundialmente? Assim, estas medidas encaminhadas reforçam a ideologia da ANEEL de que a questão dos elevados preços da eletricidade é responsabilidade do usuário, que insiste em permanecer como consumidor perdulário ou porque resiste em não modificar os seus hábitos de consumo. Deste modo, continuam ocultos os enormes lucros extraordinários apropriados pelos agentes empresariais participantes da cadeia de produção, transmissão, distribuição e comercialização de eletricidade no Brasil.

Ao final, cabe esclarecer que, apesar de mostrarmos que as inovações tecnológicas associadas aos denominados “medidores inteligentes”, bem como as medidas institucionais relacionadas à tarifa branca, não geram benefícios aos trabalhadores, isto não significa que os argumentos anteriormente apresentados tenham qualquer conotação contrária às inovações tecnológicas. O entendimento aqui é de que as tecnologias são empregadas pelas empresas como meio para a finalidade de aumentar a taxa de exploração dos trabalhadores. Portanto, o aumento da produtividade do trabalho através das inovações tecnológicas continua sendo uma questão fundamental enquanto meio para as finalidades de satisfação das necessidades dos trabalhadores. O problema central não está nas tecnologias aqui discutidas, mas sim no conteúdo ideológico do discurso dos burocratas da ANEEL, que no caso da tarifa branca, ocultam o domínio político da classe capitalista, como questões ligadas ao domínio da “ciência e da tecnologia”, reduzindo os grandes problemas políticos e sociais decorrentes dos conflitos de classe – capital e trabalho – a singelos problemas que podem ser solucionados pelo domínio de tecnologias e técnicas sociais, a exemplo da inserção dos “medidores inteligentes” e da tarifa branca.

 

Dorival Gonçalves Junior é Engenheiro Eletricista e especialista em Sistema de Potência pela UFMT; especialista em PCH’s pela UNIFEI; especialista em Regulação da Indústria de Gás e Energia Elétrica pela UNICAMP/UNIFEI/USP; e mestre/doutor em Energia pela USP. Atualmente leciona na UFMT.

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