O homem do bar

O bar estava cheio, lembrava o Brasil, e o calor da juventude presente contrastava com o friozinho das ruas de Barcelona. Era sábado, 17 de novembro. Um senhor alto, moreno, […]

O bar estava cheio, lembrava o Brasil, e o calor da juventude presente contrastava com o friozinho das ruas de Barcelona. Era sábado, 17 de novembro. Um senhor alto, moreno, paletó comprido, óculos, boina na cabeça, mochila nas costas, um colchonete enrolado – escondido pela metade com a outra parte de fora -, aproximou-se de nossa mesa e pediu uma ajuda.

A garçonete, que servia o jantar, veio para perto e o abordou, dizendo que ali, dentro do bar, não se podia pedir esmolas, e trocaram meia dúzia de palavras, não se sabe exatamente sobre o quê. O pedinte a mirava bem nos olhos, por baixo dos óculos.

Do nada apareceu outra garçonete, essa mais determinada, falando rápido, gesticulando, e, colocando-lhe a mão levemente no peito, mas sem empurrá-lo, buscava convencê-lo a sair;  com a outra mão, apontava-lhe a porta. Tudo se passou em um minuto, se muito, o homem se foi, pela rua, e as garçonetes voltaram aos seus trabalhos de rotina, sorridentes.

Cristina, que nos acolhera em sua casa, depois de tantas noites em hotéis – desde o dia 8 de novembro -, observara atentamente o fato e, num meio sorriso constrangido, disse que ‘essas coisas começaram a acontecer a partir de 2008. Os governos cortam benefícios do povo. O desemprego cresce a cada dia. Há milhares de famílias metidas em hipotecas, na chamada bolha imobiliária. Em Barcelona, cidade com de 3 milhões de pessoas, 80% das famílias estão nessa situação’. E acrescentou: ‘os políticos aqui da região da Catalunha falam de independência, as eleições ocorrem no dia 24 de novembro, mas cortam nossos direitos. É uma contradição’.

Confirma-se o ditado de que onde há fumaça há fogo. Os pequenos sinais, vistos e sentidos nos pedintes e nas falas das pessoas as quais, pelo senso comum, culpam os governos, revelam a gravidade da crise capitalista, cujas primeiras vítimas se fazem sentir entre o povo. Em particular nos mais empobrecidos.

 É chocante ver um jovem que, no canto da rua, encostado à parede, de cabeça baixa, deixa apenas um escrito no papelão falar por si: ‘ajude um pai desempregado’. São mulheres que pedem na escadaria da imensa catedral, enquanto o padre celebra missa para meia dúzia de pessoas e os turistas, na praça, cantam e dançam sob o toque de uma banda.

As contradições são claras. A cada rua se acham pessoas pedintes, com o rosto mais sombrio. Essa situação é nova na Europa. Por isso, também, parece mais humilhante. Ao menos quatro pessoas suicidaram por conta das hipotecas. Um empresário falido simulou um assalto por casa e comida na prisão.

O caso de um trabalhador em Zaragoza chamou particularmente a atenção. Seus filhos estavam na universidade e seus pais na pensão. Vivia bem. Agora perdeu o emprego, os filhos foram obrigados a abandonar os estudos, os pais foram retirados da pensão. Todos voltaram para a antiga residência, e sobrevivem da aposentadoria do casal idoso.

Aliás, a crise somente não está ainda mais visível porque os idosos, que são muitos aqui, e cujos salários não sofreram cortes – pois são os que mais comparecem às eleições – acolhem os seus parentes em dificuldade.

Apesar desses sinais, a normalidade do dia a dia se impõe, ao menos por enquanto. Persiste uma espécie de cotidianidade quase mórbida como se nada estivesse mudando. A crise chegou nos discursos, na TV, na barriga de muitos, mas ainda não na cabeça. É como se o risco fosse abstrato, ou atingisse apenas o outro. É como se a pessoa não percebesse que ‘o seu telhado (também) é de vidro’.

Quem trabalha na Holanda, por exemplo, continua indo e voltando de avião toda semana. O tempo é de uma hora e meia e os valores são salgados. A obra da sagrada família, imenso templo idealizado e iniciado por Galdí, fincado no centro de Barcelona, é retomada. A Torre de Agbar, da Companhia das Águas de Barcelona, faz-se imponente, com seus 142 metros de altura, acesa aos finais de semana. Maior que ela só a da gigante Iberdrola – uma das donas de hidrelétrica de Belo Monte -, com seu prédio em Bilbao, de 165 metros.

Aqui o tempo de crise é, numa aparente contradição, o tempo das grandes torres. Há que se mostrar poder. Mas é, também, hora de apropriação de bens naturais em qualquer parte do mundo com legitimação dos governos nacionais.

A crise poderá ser força popular se houver uma intencionalidade que a faça passar do desmonte do estado de bem estar social, como se fora um fenômeno climático, à redescoberta da consciência de classe, esquecida nos últimos períodos de brilho europeu; brilho que revela o operário como parte da empresa, escondendo o fato de que ele é trabalhador. Tirar esse véu é a nossa tarefa. 

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