Audiência em Sento Sé (BA) recoloca os atingidos pela Barragem de Sobradinho no centro do debate por reparação

A iniciativa se baseia em estudos realizados pelo MAB em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que identificaram uma série de impactos do empreendimento na vida das populações dos municípios atingidos

Foto: Vitor Reis / ASCOM PMSSE
Foto: Vitor Reis / ASCOM PMSSE

Em Sento Sé (BA), concretiza-se, enfim, uma cena aguardada há 50 anos pelos atingidos pela Barragem de Sobradinho: uma audiência pública federal dedicada a ouvir – de forma direta – aqueles que tiveram suas vidas profundamente transformadas pela construção da barragem.

Realizada na quinta-feira (27), a audiência foi coordenada pela Secretaria Nacional de Diálogos Sociais e Articulação de Políticas Públicas (SNDSAPP/DAPP), da Secretaria-Geral da Presidência da República, e organizada em parceria com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a prefeitura de Sento Sé e a Associação de Moradores e Povos Atingidos pela Barragem de Sobradinho no município (AMOPOABS). Mais do que um ato pontual, o encontro é resultado de décadas de organização popular e de um acúmulo político e técnico construído pelo MAB junto às comunidades do Velho Chico.

“Esta audiência é uma oportunidade concreta de dar visibilidade institucional e nacional a uma dívida histórica, obrigando o Estado a reconhecer responsabilidades, mapear perdas e apresentar uma agenda efetiva de recuperação e de políticas públicas para os atingidos”, afirmou Marcos Souza, da coordenação nacional do MAB.

Durante a abertura do evento, a prefeita Giselda Carvalho destacou a relevância e o impacto que a audiência pública representa para Sento-Sé, ressaltando a importância da reparação às famílias atingidas no passado. “Para Sento Sé, receber uma Audiência Pública Federal é motivo de profunda emoção e esperança. Nosso passado de perdas não pode ser desfeito, mas o futuro pode finalmente ser reconstruído com justiça. Que esta audiência marque o início de ações reais que melhorem a vida do nosso povo.”, disse.

Sobradinho: uma ferida aberta há cinco décadas

A construção da Barragem de Sobradinho, concluída na década de 1970, atingiu os municípios de Sento Sé, Remanso, Pilão Arcado, Casa Nova, Sobradinho, Barra, Xique-Xique e Itaguaçu, além de provocar o deslocamento forçado de cerca de 70 mil pessoas – em sua maioria pequenos agricultores, pescadores e ribeirinhos – que tinham no Rio São Francisco a base da vida econômica, social e cultural.

Lavouras de vazante, criações de animais, casas, cemitérios, igrejas e espaços de sociabilidade desapareceram sob as águas. Em troca, milhares de famílias receberam reassentamentos precários, lotes mal estruturados, ausência de políticas públicas e uma longa trajetória de empobrecimento e violação de direitos.

É essa dívida social que o MAB vem denunciando em marchas, ocupações, estudos e articulações institucionais. A audiência em Sento Sé é um marco nesse caminho: pela primeira vez, o governo federal sentou para ouvir, em um espaço oficial, o conjunto dos atingidos de Sobradinho com participação direta de suas organizações.

“Não se trata de um ato simbólico, mas de um registro real das violações de direitos e da resistência das populações que carregam, até hoje, as marcas desse processo. Que o Governo Federal reconheça a dívida social com os atingidos pela barragem de Sobradinho, não como algo do passado, mas como uma violação contínua de direitos, e que esta audiência abra, enfim, o caminho para reparações concretas”, reforçou Marcos.

Giselda Carvalho, prefeita de Sento Sé, ao lado do integrante da coordenação nacional do MAB, Marcos Souza, e de representantes do governo federal e atingidos do município. Foto: Jefferson Elias / ASCOM PMSSE

Base técnica construída com o MAB: os estudos que revelam a dívida social

A iniciativa da audiência se fundamenta em estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), elaborados em parceria com o MAB, que identificam de forma sistemática os impactos da barragem na vida das populações atingidas. 

Os relatórios apontam, entre outros elementos,  o deslocamento forçado em massa de dezenas de milhares de pessoas, com fragmentação de comunidades inteiras; empobrecimento e perda de modos de vida, com o fim da agricultura de vazante, da pesca tradicional e de atividades ligadas ao ciclo natural do rio; precariedade dos reassentamentos, com acesso limitado à terra adequada, água, infraestrutura básica e serviços públicos; violações de direitos sociais em áreas como moradia, trabalho, educação, saúde e previdência.

A partir desses estudos, o movimento insiste em uma agenda de reparação integral: não apenas indenizações pontuais, mas um conjunto de políticas estruturantes capazes de reconstruir as condições de vida dos atingidos e garantir futuro digno às novas gerações às margens do lago.

A audiência como espaço de fala e organização

Em Sento Sé, esse acúmulo se traduziu em forte participação popular. A audiência reuniu caravanas saindo de Sento Sé, Remanso, Pilão Arcado, Casa Nova, Sobradinho, Xique-Xique, além de atingidos que hoje vivem em Juazeiro e Petrolina. Os moradores relataram perdas familiares, terras inundadas, deslocamentos forçados, o rompimento de laços comunitários e a precariedade dos reassentamentos. Muitas lembranças remetem ao tempo em que “a vida era mais simples” antes da barragem, quando as famílias tinham terra, roça, criação e sustento garantido às margens do Velho Chico.

Entre eles estava Maria do Rosário Moreira, que saiu de Juazeiro em uma caravana de mais de 70 pessoas para participar da audiência. Ela relembrou sua história: “Morávamos no Remanso Velho, quando a vida era mais simples. Meus pais tinham terra, tinham sustento. Hoje, não tenho mais meus pais e não temos mais nossas terras. Estamos aqui buscando reparação por tudo que perdemos lá atrás”.

Para o MAB, esses relatos não são apenas testemunhos do passado: são provas vivas de que a tragédia de Sobradinho não ficou na década de 1970. Ela se prolonga na falta de condições de trabalho, na ausência de políticas específicas, na juventude sem perspectivas e na memória de uma terra que foi tomada sem que houvesse reparação justa.

Durante o encontro, o Movimento dos Atingidos por Barragens reforçou pontos centrais defendidos há décadas pelo movimento em todo o país, como: o reconhecimento amplo de quem é atingido por barragens; a garantia de política nacional específica para os atingidos – com orçamento -; programas e participação social, reparação que vá além de indenizações individuais, abrangendo direito à terra, moradia, trabalho, memória, cultura e meio ambiente equilibrado.

“Para nós, do MAB, este momento representa uma possível virada histórica, na qual o Estado pode finalmente assumir suas responsabilidades e promover reparações reais em um dos maiores casos de deslocamento forçado e injustiça socioambiental do Brasil”, concluiu Marcos Souza.

A audiência contou com representantes de diversos ministérios e órgãos federais, entre eles: Desenvolvimento Social (MDS), Educação (MEC), Minas e Energia (MME), Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), além de INCRA, Codevasf e outros.

O Ministério de Minas e Energia reconheceu publicamente a contradição histórica da região. “Para mim, é muito importante estar aqui com vocês. Porque em Brasília lidamos com números, não vemos os rostos das pessoas atingidas. Sabemos que aqui, nessa região, há 4 mil famílias com problemas de energia (ou sem), com qualidade baixa, e os atingidos por barragens estão nas nossas prioridades. Das 30 mil ligações novas que faremos na Bahia, 2,5 mil serão para cá”, afirmou o representante do MME, Fabrício Gonçalves.

Segundo a própria Secretaria-Geral da Presidência, o objetivo é fortalecer a presença do Estado no território e avançar na construção de medidas concretas, para enfrentar a dívida histórica com os atingidos de Sobradinho.

Ao final, foi anunciado que as demandas apresentadas seriam sistematizadas e encaminhadas aos ministérios competentes, que deverão propor encaminhamentos e acompanhar a execução das ações pactuadas.

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