Estudo revela novos impactos do desastre em São Sebastião (SP) e pressiona por mudança na reparação
Porque a tragédia não acabou para as famílias atingidas, e como o MAB tenta reverter uma decisão judicial que desresponsabiliza a prefeitura
Publicado 27/11/2025 - Actualizado 28/11/2025

Dois anos após o maior desastre climático da história de São Sebastião, cidade do litoral norte de São Paulo – o deslizamento provocado por chuvas que ultrapassaram 650 mm em um único dia e deixaram 65 mortos -, centenas de famílias seguem sem qualquer garantia de segurança, saúde ou reconstrução digna. A situação ganhou novo capítulo em setembro, quando o juiz Victor Hugo Aquino de Oliveira, responsável pela ação civil pública movida pela Defensoria Pública, isentou a prefeitura de responsabilidade por falhas na prevenção e comunicação do risco, afirmando que a força das chuvas teria sido “imprevisível”. A ação foi movida pelo Ministério Público e a Defensoria Pública de São Paulo. As duas entidades alegaram omissão do município em adotar medidas de prevenção e, na ação, pediam R$ 20 milhões em indenização por dano moral coletivo, além de outros R$ 10 milhões por dano social e indenizações individuais às famílias.
Para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), porém, a sentença ignora tanto evidências técnicas quanto o vivido pela população. Arthur Macfadem, integrante da coordenação do movimento no Litoral Norte, lembra que havia alertas oficiais de 250 mm de chuva, além de falhas reconhecidas no plano de contingência, ausência de alerta às famílias e nenhuma ação preventiva durante o feriado de Carnaval. “No nosso entendimento, a tragédia não foi imprevisível. Ela foi provocada pela ausência do poder público, que durante anos não promoveu regularização fundiária e não efetuou políticas públicas habitacionais, mesmo diante de estudos que apontavam as áreas de alto risco”, afirma.
Enquanto a Defensoria prepara recurso, um novo elemento entrou em cena: um estudo qualitativo realizado pela Clínica de Acesso à Justiça da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em parceria com o MAB, que ajuda a dimensionar o que está em jogo. Foram ouvidas 94 famílias, entre novembro de 2024 e julho de 2025. Os dados, inéditos, revelam impactos profundos, prolongados e invisibilizados nos processos de reparação.
“O desastre não começou na chuva e não terminou no dia seguinte”
Segundo os responsáveis pelo estudo, a pesquisa buscou compreender o desastre em três dimensões – moradia, direitos sociais e acesso à informação – seguindo a literatura de sociologia dos desastres, que distingue fases de reprodução da vulnerabilidade, ruptura e reconstrução. Para a pesquisadora Luiza Antunes, o objetivo não foi produzir estatística, mas qualificar o impacto multidimensional do desastre a partir da escuta direta das famílias.

Redes de cuidado destruídas e ignoradas pela reparação
Quase todas as famílias relataram que viviam muito próximas de parentes, vizinhos e pessoas que compunham suas redes de apoio, fundamentais para cuidados com crianças, idosos, trabalho informal e a reprodução da vida cotidiana, especialmente em contextos vulneráveis. Essas redes foram desfeitas com os reassentamentos compulsórios e não foram consideradas pelo poder público na distribuição de moradias. Muitas mulheres ficaram isoladas, sem ter com quem deixar os filhos para trabalhar. “As formas coletivas de cuidado foram completamente interrompidas e simplesmente não entraram no radar da reparação”, explica Luiza.
O abandono estatal também aparece nas falas de quem viveu a tragédia. Liamar Siqueira, antiga moradora da Vila Sahy, lembra com clareza da madrugada em que tudo aconteceu:
“A lama entrou até a porta da minha casa, que virou abrigo pra pessoas que perderam tudo. Eu ajudei a tirar gente lá de baixo, e nada, absolutamente nada me foi oferecido. Nem reassentamento, nem melhorias na comunidade.”
Saúde mental em colapso
O eixo da saúde foi um dos mais chocantes: depressão, ansiedade, uso de medicamentos psiquiátricos após o desastre e interrupção de tratamentos já existentes apareceram de forma recorrente e muito marcantes.
Nos abrigos temporários, as famílias enfrentaram superlotação, condições sanitárias precárias e agravamento de doenças físicas e psíquicas. “Uma chuva que começa, já vem carregada de medo. Qualquer gota vira um pesadelo. Tratamentos de saúde foram interrompidos e agravados, e nenhuma assistência psicológica foi oferecida”, resume Luiza.
Famílias mais distantes do trabalho e da cidade
A maioria das famílias reassentadas foi enviada para dois condomínios construídos longe dos bairros onde viviam – um na Baleia Verde e outro em Maresias -, quando a maior parte das famílias atingidas vivia em Juquehy, Vila Sahy e Boiçucanga, há 30 km de distância um do outro. São Sebastião é um município que corre ao longo da costa. Cada bairro está espremido entre a serra e o mar, e dividido um do outro por serras.
Na prática, a mudança de bairro significou uma mudança de cidade. Esse deslocamento teve como consequência aumento expressivo de gastos com transporte e alimentação, perda de vínculos de trabalho, ruptura com escolas e creches e acesso mais difícil a serviços básicos.
Liamar confirma a perda profunda da renda familiar: “Eu perdi muitos trabalhos, porque ficamos sem acesso, e os restaurantes se mudaram; os turistas pararam de vir para essa região, e não há qualquer auxílio. Eles nem sabem o que aconteceu com as nossas vidas.”
“São Sebastião não é uma cidade convencional. Mudar de bairro significa mudar a vida inteira”, diz Luiza. Há casos de mães que deixaram de trabalhar porque não conseguiam mais chegar às casas onde prestavam serviço, como relatado por Arthur: trabalhadoras domésticas que atuavam em Juquehy, mas foram enviadas para Maresias, tornando o deslocamento inviável.
“Os bairros que receberam as famílias atingidas não possuem infraestrutura decente de saúde. No caso da Baleia Verde, carece de unidade de saúde, tendo que se deslocarem para as bases da Vila Sahy, que possui uma estrutura pequena para o tamanho da população, sofreu com o aumento das demandas. E no caso de Maresias, a USF local, que já possuía precariedade na sua estrutura, se mostra insuficiente diante do aumento da população”, afirma.
Insegurança alimentar aprofunda a vulnerabilidade
O município não possui uma política de segurança alimentar e a única medida que existia era um auxílio eventual, baseado em uma cesta básica para famílias em vulnerabilidade social. Esse auxílio foi cortado há quatro meses. Para os atingidos, que vivem em processo de reconstrução de suas vidas, com rendas afetadas desde a tragédia, o corte representa mais uma violação de direitos e um aprofundamento da vulnerabilidade, especialmente diante do aumento de gastos provocado pelo reassentamento forçado.
O estudo identificou que um dos condomínios entregues, o CDHU Baleia Verde, foi construído em área alagadiça, percebida pelos moradores como insegura. “Não é uma área de deslizamento, mas também não é considerada segura, isso gerou desconfiança, medo dos moradores, que acabaram de passar por uma tragédia”, explica a pesquisadora.

A CDHU firmou um contrato temporário com as famílias, com validade de 18 meses até a posse definitiva. Entretanto, muitas pessoas que tinham direito ao contrato em setembro, até agora não receberam qualquer contato ou definição sobre sua situação, vivendo meses de incerteza. A indefinição tem ampliado a insegurança jurídica e emocional das famílias, configurando mais uma violação de direitos no processo de reparação.
Animais: perdas emocionais e gastos inesperados
Quase todas as famílias tinham cães ou gatos, aponta a pesquisa, parte essencial da composição familiar. Muitas perderam animais durante o desastre; outras foram impedidas de levar seus companheiros aos abrigos e às novas casas. Isso gerou sofrimento emocional profundo; gastos com abrigos pagos do próprio bolso e famílias que preferiram não aceitar as casas novas para não abandonar seus animais.
Falhas graves de comunicação e ausência de alerta
O levantamento confirma um ponto central: a maior parte das famílias não recebeu qualquer alerta da Defesa Civil no dia da tragédia. As informações sobre a chuva chegaram tarde, ou não chegaram.
Para Arthur, o caso de São Sebastião escancara o limite das políticas atuais de resposta a desastres climáticos no Brasil: “A reparação parou no apartamento. Foram entregues 704 unidades, mas longe da vida que essas famílias tinham. O resto segue em área de risco, com medo, sem perspectiva”.
A denúncia de Arthur encontra lastro no que a prefeitura tem feito (ou deixado de fazer) de lá para cá. O município recebeu valores expressivos em repasses emergenciais. Em um balanço da própria prefeitura, em maio de 2023, havia recebido R$ 14,5 milhões em recursos do Estado e da União, e aguardava a liberação de mais R$ 19 milhões. Mas pouco se sabe sobre sua aplicação: obras de contenção e drenagem seguem atrasadas (como nas comunidades Lobo Guará, Areião e Pantanal); a política de aluguel social tornou-se precária e permanente (sem perspectivas sobre o que irá acontecer após o encerramento, daqui há um ano), sem garantir segurança; bairros inteiros continuam vulneráveis, com risco de deslizamento, como Tropicanga e Pantanal.
Porque o estudo é chave para o recurso da Defensoria
Todo o material produzido pela Clínica de Acesso à Justiça já foi repassado à Defensoria Pública, que deve utilizá-lo no recurso contra a decisão de primeira instância. O estudo mostra, segundo os pesquisadores, que o desastre é processo e não evento; que a violação de direitos é prévia e posterior à chuva; que a reconstrução feita até agora é insuficiente, limitada e injusta.
A tragédia de São Sebastião segue em curso, não porque a chuva continua, mas porque o Estado não garantiu o direito básico à reconstrução digna. A pesquisa expõe essa continuidade da dor e da precariedade,. E o MAB tenta, mais uma vez, fazer com que o Judiciário enxergue aquilo que as famílias vivem todos os dias.
A decisão do recurso será mais que um posicionamento jurídico: será um teste para saber se o Brasil está preparado para reconhecer a justiça climática como política pública, e não como exceção.
