PERFIL | “Ninguém luta sozinho contra uma barragem, nem contra o mundo”: a história de Erika Mendes

De Moçambique ao Brasil, Erika narra como a destruição tem passaporte global e a resistência também precisa ter

Na capital moçambicana, Erika Mendes cresceu consciente da urgência da luta contra as elites políticas locais e as empresas transnacionais. Foto: Marcelo Aguilar / MAB
Na capital moçambicana, Erika Mendes cresceu consciente da urgência da luta contra as elites políticas locais e as empresas transnacionais. Foto: Marcelo Aguilar / MAB

Erika Mendes vem de Maputo, Moçambique, mas carrega nos gestos a memória de outros lugares: comunidades engolidas por barragens, rios desviados, minas a céu aberto, mulheres que resistem com as mãos na terra. 

A infância foi marcada por um cheiro que atravessa décadas: o odor químico dos pesticidas empilhados numa fábrica de cimento, na cidade da Matola. Eram resíduos tóxicos trazidos da Dinamarca para serem incinerados em território africano, destino comum dos venenos do Norte global. Erika, ainda criança, caminhava com a avó, Anabela Lemos, batendo de porta em porta; entregava panfletos, explicava o perigo. Era o começo da maior mobilização ambiental em Moçambique nos anos 1990. Ganharam. Os pesticidas voltaram para onde vieram. “Ali eu aprendi que quando a gente se junta, as coisas mudam”, lembra.

Foi dessa vitória que nasceu a LIVANINGO, primeira organização ambiental do país. Mas a alegria inicial logo esbarrou em dilemas maiores: havia quem quisesse seguir um caminho entendido como neutro, sem enfrentar os grandes poderes; e havia quem, como a família de Erika, quisesse denunciar o modelo por trás da destruição – o pacto entre elites políticas locais e empresas transnacionais. A divisão foi inevitável. Assim nasceu a Justiça Ambiental, organização da qual Erika faz parte até hoje.

Moçambique ensaiava sua recém-conquistada liberdade. A independência de Portugal tinha apenas duas décadas. A guerra civil terminou há pouco. O país saía de um projeto socialista para mergulhar numa economia neoliberal. Os rios deixaram de ser apenas rios, viraram energia, lucro, corredores de exportação. Chegaram as mineradoras, as empresas de gás, as plantações de monocultura para exportação. Vieram também as promessas de desenvolvimento, estradas, escolas, hospitais – quase sempre só no papel.

Entre as bandeiras fincadas no território moçambicano, estava uma bem conhecida dos brasileiros: a da Vale. A mineradora instalou-se na província de Tete para explorar o carvão. Em troca, deixou poeira, casas rachadas e rios poluídos. “Depois que tiraram tudo que interessava, foram embora dizendo que era por causa da mudança climática. Mas a gente sabe: foi porque já não dava lucro”, diz Erika. 

Ela fala da Vale com a naturalidade de quem conviveu com o barulho das dinamites. E é nesse ponto que sua história cruza o Atlântico. “O Brasil e Moçambique têm feridas parecidas”, diz. Lembra do Rio Doce coberto de lama, do Rio Zambeze represado por barragens. “O mapa muda, mas a lógica é igual: riqueza vai embora, destruição fica.”

Erika integra a ong moçambicana Justiça Ambiental e denuncia que o país africano vive em cheio a crise climática. Foto: Juan Carlos Gallego

A primeira vez que ouviu falar do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Erika ainda era adolescente. Anos depois, ela estaria dividindo plenárias com camponeses brasileiros, trocando metodologias de organização, cantos de luta, mapas de rios sequestrados.

“A língua portuguesa, que muitas vezes nos isola na África, virou ponte com o Brasil”, diz. Hoje, Moçambique e MAB compartilham mais do que o idioma: compartilham estratégias de resistência, intercâmbio de jovens, formação política de mulheres atingidas.

Mas Erika não romantiza a luta. Fala de tratados internacionais que amarram governos do Sul global. Explica que empresas podem processar estados inteiros se políticas públicas ameaçarem seus lucros futuros. O mecanismo tem nome: Investor-State Dispute Settlement (ISDS). “É o colonialismo com assinatura e advogado”, resume. “Um país pode decidir proteger seu rio, mas se isso afetar os lucros projetados de uma mineradora, ele é levado a tribunais internacionais e condenado a pagar bilhões.”

Enquanto os direitos se esfarelam em fórmulas jurídicas, o clima colapsa. Moçambique é um dos países mais atingidos por ciclones no mundo. O Idai, em 2019, matou mais de mil pessoas. O Kenneth chegou um mês depois. Chuvas que arrastam tudo, secas que duram meses, comunidades à beira do mar engolidas por erosão. “Vivemos no olho do furacão da crise climática e somos os que menos contribuíram para ela acontecer”, diz.

A moçambicana acompanha de perto o Brasil. Soube das enchentes no Rio Grande do Sul; da seca no Amazonas, que deixou barcos encalhados no meio dos rios. “Os extremos climáticos já não são notícias excepcionais, são rotina”, afirma. E é nesse cenário, entre rios barrados e florestas em chamas, que ela defende uma aliança internacional dos povos atingidos. Não por romantismo internacionalista, mas por estratégia concreta. “O capital é global. Se a resistência não for, a gente perde.”

Em novembro, Erika viajou para o Brasil para participar de uma articulação com movimentos populares na Amazônia. Do avião, viu os rios recortando a floresta, sinuosos como veias. Quando pousou, soube que queriam dragar um deles para escoar soja e minério. “Os rios também estão virando estradas para o lucro”, observa. No Pará, conversou com quilombolas, pescadores, indígenas e militantes do MAB. A sensação foi de espelho. “Muda o sotaque, o bioma, mas a pergunta é a mesma: quem manda no território?”

No fim da nossa conversa, ela afirma: “Há uma coisa que nós aprendemos desde cedo: ninguém luta sozinho contra uma barragem. Ou a comunidade toda se levanta ou a água cobre tudo”. Faz uma pausa. “Acho que isso vale para o mundo também”.

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