ARTIGO | Mulheres Atingidas por Barragens em defesa dos Direitos Humanos e da vida

Apesar de duplamente atingidas pelos crimes e projetos energéticos, as mulheres ainda são invisibilizadas no processo de reparação

                

II Encontro das Mulheres em Defesa da Vida reuniu mulheres atingidas pelos crimes da mineração em Minas Gerais. Foto: Patrícia Sousa

No último dia 14 de agosto, a Justiça reconheceu que há discriminação de gênero praticada contra as mulheres atingidas, no caso do crime na Bacia do Rio Doce. Segundo as Instituições de Justiça, a Fundação Renova adotou uma forma de cadastro que dificultava o reconhecimento das mulheres como pessoas atingidas, resultando em uma realidade onde apenas um terço dos registros tinham mulheres como titulares. Outra desigualdade apontada pela ação judicial é que somente os homens foram reconhecidos como pescadores profissionais, o que invisibiliza e ignora as trabalhadoras pescadoras. Essa foi a primeira vez que as Instituições de Justiça (IJs) reconheceram que existe um agravamento da desigualdade de gênero em razão do crime socioambiental. No entanto, há muito que se avançar para que estas mulheres não sejam mais inviabilizadas e tenham a garantia da reparação integral dos seus danos de forma especifica.

Já no caso das atingidas pelas barragens de hidrelétricas, estudos comprovam que existe uma forte violação dos direitos das mulheres. A primeira confirmação está no relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos, à época Conselho de Defesa e Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), publicado em dezembro de 2010.

“As mulheres são atingidas de forma particularmente grave e encontram maiores obstáculos para a recomposição de seus meios e modos de vida; […] elas não têm, via de regra, sido consideradas em suas especificidades e dificuldades particulares”, destaca o documento.

Jornada de Lutas do MAB em setembro de 2024. Foto: Arquivo MAB

Mesmo com a aprovação da Política Nacional de Segurança das Barragens e a Lei de Lama Nunca Mais, que criaram regras específicas a serem seguidas pelos empreendimentos de mineração, as mineradoras seguem atuando sem a fiscalização necessária das suas barragens e dos empreendimentos. Exploram, assim, cada vez mais os recursos naturais sem pensar na vida das comunidades afetadas e no meio ambiente. No Vale do Jequitinhonha (MG), assistimos às mineradoras, com aval do governo, destruir a caixa d’água do semiárido mineiro. A situação já traz consequências graves, como o aumento do adoecimento respiratório e mental e o superaquecimento da região. Em 2023, por exemplo, a cidade de Araçuaí registrou uma das temperaturas mais altas do mundo.

Além das barragens, essa superexploração traz outra situação que também recai duplamente sobre a vida das mulheres: o agravamento das mudanças climáticas e eventos extremos intensificados, como o caso recente do Rio Grande do Sul. Nessas situações, mais uma vez, são as mulheres, sobretudo as mais pobres, que têm sua condição de vida massacrada, enquanto as empresas capitalistas buscam formas de se reorganizar para manter seus lucros,  sua imagem e ganhar dinheiro com as tragédias.

Cenário de destruição após as enchentes do Rio Grande do Sul. Foto: Francisco Proner

Reparação justa para mulheres atingidas pelo crime da empresa Vale em Brumadinho

As pessoas atingidas estão vivendo a insegurança hídrica e alimentar no território. A Vale não cumpre o prazo da limpeza do rio, não garante o direito à água em quantidade e qualidade e a população não tem informações concretas sobre exposição de risco à saúde em relação aos metais pesados. Não há participação da população atingida no Plano de Reparação Socioambiental que está no Anexo II do acordo entre empresa e órgãos de Estado. No acordo, a Vale tem a obrigação de reparar os danos ambientais – com recurso inicial orçado em R$5 bi, mas sem teto de gastos.

Passados cinco anos do crime, os Estudos de Avaliação de Risco à Saúde Humana e Risco Ecológico – ERSHRE, realizados pelo grupo EPA, não tiveram nem a sua primeira fase finalizada. Demandados pelos órgãos públicos de saúde e de meio ambiente de Minas Gerais, em parceria com as instituições de justiça, estres estudos serão desenvolvidos por consultorias especializadas, com custeio da Vale S.A. O objetivo é, ou deveria ser, identificar os riscos potencias à saúde humana e ao meio ambiente devido a presença do rejeito que ainda se encontra na região – solo, ar e as aguas do rio Paraopeba – e definir ações. Os atingidos relatam descaso e uma metodologia duvidosa da empresa, sem respaldo científico. Até o momento, não há previsão de outros estudos como contraprova. Em maio deste ano, as Instituições de Justiça comunicaram que a partir de 2025 uma nova entidade será contratada para dar continuidade a estes estudos. Reforçamos que é inadmissível que esta nova empresa tenha qualquer tipo de vínculo com a criminosa responsável pelo rompimento da barragem e também que os estudos sejam realizados sem participação dos atingidos.

As pessoas não têm a quem recorrer ao apresentar sinais e sintomas de contaminação e, por desassistência, continuam a usar a água que têm. Os recursos do Acordo para a saúde são direcionados principalmente às estruturas físicas, que estão longe das comunidades atingidas e, até o momento, não houve ampliação das equipes ou investimento na atenção especializada para atender à população.

A Vale precisa garantir esclarecimentos para os atingidos/as sobre a contaminação da água, do ar e do solo, ser responsabilizada para fazer ações efetivas sobre os danos ambientais, garantindo a participação dos atingidos (as) nesse processo. Para ter reparação integral, a empresa que praticou o dano, ou seja, a Vale, tem a obrigação de recuperar e revitalizar o rio Paraopeba! A Vale tem que devolver para os atingidos (as) o acesso à água limpa, ao ar puro e ao solo descontaminado, à vegetação e ao patrimônio cultural.

Implementação de projetos sociais para mulheres

Encontro Nacional das Mulheres Atingidas em Defesa da Vida. Brasília, junho de 2019. Foto: Marcelo Aguilar

Antes do rompimento, as mulheres atingidas tinham uma gama de ocupações informais, de geração de renda e sustentação do âmbito familiar, como a agricultura e a pesca. A independência financeira para as mulheres é fundamental, tanto para que possam sustentar a família, quanto para se livrar de situações de violência. É muito importante nesse processo de definição das atividades de reestruturação produtiva – ao analisar a possibilidade de aprendizado de uma nova atividade econômica ou a manutenção de atividades mais relacionadas às experiências das mulheres de cada local – pensar como serão garantidas as condições para as mulheres para continuarem participando e lutando pela reparação integral e tendo acesso aos projetos específicos para elas. As mulheres precisam ser público-alvo prioritário nos programas de reparação e nos projetos de reestruturação produtiva.

Por isso, as mulheres reivindicam um fundo específico destinado para a execução dos projetos que tenham resultados materiais voltados para mulheres no Anexo 1.1. Que seja garantido um valor reservado especificamente para atividades produtivas protagonizadas por mulheres e que sejam consideradas em suas atividades como parte central do núcleo familiar.  Os projetos das comunidades para o Anexo 1.1 devem garantir a plena participação dos atingidos/as e que as mulheres sejam tratadas com equidade na pauta estrutural do plano de desenvolvimento da bacia do Paraopeba.

Além disso, é fundamental pensar em investimentos de recursos a título compensatório para mulheres: fortalecimento da Rede de Atendimento à Mulher no estado de Minas Gerais, com enfoque nos municípios atingidos; prioridade de atendimento às mulheres nos programas de transferência de renda, e que as questões das mulheres sejam vistas nas políticas públicas executadas através do poder publico municipal, quais sejam atendimento à violência contra a mulher, acesso à educação para mulheres, e direitos à criança e do adolescente assegurados por meio de creches e cursos profissionalizantes; financiamento de projeto de formação de mulheres atingidas em direitos humanos e com produção de Arpilleras, que é uma técnica de artesanato utilizada pelas atingidas para expor os desafios e as conquistas que vivenciam.

O MAB tem lutado para melhorar as condições das mulheres para estarem na luta em defesa dos direitos da população atingida, em qualificar seu entendimento e lutar por suas especificidades ocupando espaços de decisão. As mulheres atingidas são vítimas e ao mesmo tempo são as principais sujeitas que tocam a luta, seja na vida concreta da população atingida, seja na vida concreta diária da comunidade.

Arpillera retrata luta coletiva das mulheres contra violação de direitos. Foto: arquivo MAB

Além disso, o Movimento assume o compromisso de continuar fazendo a luta por todos os direitos da população atingida. Para isso, vamos continuar denunciando a violação dos direitos humanos cometidos contra as mulheres, diagnosticando as suas realidades enquanto atingidas, garantindo visibilidade e prioridade no processo reparatório, avançando na garantia da participação das mulheres cada vez mais na organização, para que elas possam ocupar os espaços de decisão e, por fim, construir e cobrar mecanismos de defesa da vida das mulheres. Avançaremos nas lutas para as conquistas concretas para vida das mulheres!
Abaixo as pautas e demandas apresentadas pelas mulheres no último dia 14, durante o II Encontro das Mulheres em Defesa da Vida. Além das pautas, as atingidas também entregaram um ofício às Instituições de Justiça, cobrando das IJ’s a execução imediata do Anexo 1.1. Confira aqui a íntegra do documento.

Pautas e demandas das mulheres atingidas pelo crime da Vale em Brumadinho

  • Aplicabilidade da Política Nacional de Direitos da População Atingida por Barragens – PNAB. Nessa lei está prevista a construção de programas específicos destinados a mulheres.
  • Reconhecimento e visibilidade por parte das Instituições de Justiça aos danos e às formas de agravamento vivenciadas pelas mulheres. Que as Instituições de Justiça garantam a reparação diferenciada, o direito à indenização individual justa, diferenciada e proporcional para as mulheres;
  • Anexo 1.1 aprovação já da proposta definitiva da Entidade Gestora com todas as resoluções aprovadas durante o processo participativo das pessoas atingidas! Divulgação da proposta definitiva para os atingidos com linguagem popular e transparência em todo o processo com divulgação também das outras propostas, se necessário.
  • Plano de Desenvolvimento e Reparação para a população atingida da Bacia do Paraopeba e Lago de Três Marias, sendo garantido também “Plano das Mulheres Atingidas”, com condições para executa-lo, aprovação de um Fundo para Mulheres no Anexo 1.1., como cotas para projetos específicos para mulheres em todas as linhas temáticas e estímulo para projetos liderados por organizações e grupos de mulheres.
  • Reivindicamos uma reparação socioambiental, que tenha informação, transparência, participação dos atingidos na escolha da próxima entidade que irá realizar os estudos socioambientais,  durante a implementação dos estudos e na divulgação de seus resultados e em todo o processo de reparação socioambiental.
  •  Aprovação da Política Estadual de Atendimento à Saúde da População Atingida em Minas Gerais, saúde das mulheres com reconhecimento do Ministério da Saúde. Maior atenção à saúde das mulheres nos municípios atingidos, principalmente em relação à saúde mental.
  • Aprovação imediata e aplicabilidade do Protocolo de atendimento à Saúde da População Atingida, de modo a atender de forma emergencial as demandas das comunidades. Deve ser garantido o atendimento gratuito e de qualidade à população atingida na área da saúde, com a realização de exames especializados, atendimento e tratamento por médicos e profissionais especialistas, quando houver necessidade, por meio custeio da empresa Vale.
  • Que a Vale S.A seja responsabilizada pela garantia do acesso à água, em respeito aos pedidos feitos pelas comunidades e atuação em juízo para cobrança da Vale em relação à obrigação de fornecimento de água .

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