Repactuação Rio Doce: atos em BH marcam repúdio dos atingidos às negociações sem participação popular
Mobilização reuniu 150 atingidos de 16 municípios da Bacia do Rio Doce, em Minas Gerais
Publicado 18/06/2024 - Atualizado 18/06/2024
Nesta segunda-feira (17), atingidos de 16 municípios da Bacia do Rio Doce realizaram atos em Belo Horizonte (MG) para denunciar os rumos das negociações sobre o acordo de reparação ao crime socioambiental cometido pelas mineradoras Samarco (Vale e BHP Billiton). As mobilizações começaram na porta do Tribunal Regional Federal da 6º Região (TRF-6), que sedia a mesa de negociação sobre o acordo.
No local, foi entregue um ofício solicitando à presidência do Tribunal e à presidência da mesa de negociação uma audiência em caráter de urgência para discutir o caso. No documento, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) reforça também a preocupação com o sistemático rebaixamento dos valores propostos. Inicialmente, o governo federal estimou a reparação em R$126 bilhões, e após as recusas das empresas apresentou uma nova proposta orçada em R$109 bilhões. Em resposta, as mineradoras propuseram um montante real de R$ 82 bilhões, parcelados em 20 anos.
“Não podemos permitir que o acordo siga sendo rebaixado e que as negociações avancem sem participação popular. Os atingidos desconhecem os detalhes sobre em quais programas estes valores serão aplicados, como será a participação da população na gestão dos recursos, qual será a divisão dos valores entre os governos e quais os critérios de acesso. Mais uma vez, são as empresas criminosas que ditam os rumos do processo, enquanto as vítimas ficam fora das decisões”, denunciaram em documento.
Letícia Oliveira, integrante da coordenação nacional do MAB, reforça ainda que o modelo de reparação sem participação dos atingidos já foi colocado em prática através do Termo de Ajustamento de Conduta, firmado em 2018 entre governos e mineradoras “É um modelo falho, que não repara e só atende aos interesses das criminosas. E por causa da falta de participação na elaboração de uma proposta que, até hoje, inúmeros direitos seguem violados e ignorados”, pontua.
A mobilização dos atingidos do Rio Doce seguiu para a sede do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), onde foi recebida pelo superintendente regional do órgão, Sérgio Domingues. O representante ouviu as denúncias dos atingidos, como a permanência – mesmo após quase nove anos – de rejeitos na calha do rio e a permanente preocupação dos atingidos com o revolvimento da lama tóxica, causado pelas enchentes.
Além da oitiva, os atingidos também pautaram com o órgão do governo federal, uma audiência com a Secretaria Geral da Presidência da República para tratar sobre os rumos da reparação. Em agosto do ano passado, a entidade se comprometeu em garantir a participação dos atingidos nas negociações “Nós acreditamos que não há repactuação sem participação social. Com o povo, a gente faz melhor e mais rápido”, declarou à época Kelli Mafort, Secretária Nacional de Diálogos Sociais e Articulação de Políticas Públicas da Secretaria Geral da Presidência.
Quem não deve, não teme
Ainda na sede do Ibama, o MAB denunciou a articulação orquestrada pelo Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), que tenta, via Supremo Tribunal Federal, barrar as ações de indenização individual sobre os crimes socioambientais de Mariana e Brumadinho que tramitam nas cortes internacionais. Na avaliação do Movimento, a ação impetrada no STF se trata de uma manobra para proteger as empresas criminosas. “Acionar as cortes internacionais para garantir os direitos violados em nosso país tem se tornado um instrumento fundamental para a reparação aos crimes ambientais, isso se trata de justiça, uma vez que elas exploram nosso país, violam nossas leis e tentam sair ilesas de seus crimes”, critica Joceli Andriolli, integrante da coordenação nacional do MAB.
Águas e saúde: direitos que não tem preço!
Se para debater o acordo os atingidos não são ouvidos, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) as denúncias de violações enfrentadas pelas comunidades foram acolhidas em audiência pública realizada na tarde da segunda (17). O debate, requerido pela deputada Beatriz Cerqueira (PT), integrou a agenda de lutas com a mensagem: água e saúde: direitos que não tem preço!
Participaram da audiência pública Itamar Coelho Maciel (representante da Comissão de Atingidos/as de Perpétuo Socorro), Henrique Lacerda Arruda (coordenador do Programa Médio Rio Doce da Associação Estadual de Defesa Socioambiental – Aedas), Braulio Santos Rabelo de Araujo (defensor público de Minas Gerais), Sérgio Augusto Domingues (superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama – Superintendência em Minas Gerais), Alessandra Gonçalves da Fonseca (assessora jurídica do Ministério Público Federal), Beatriz Cerqueira (deputada estadual PT/MG).
Passados quase nove anos do crime, ainda hoje há atingidos que não tem fornecimento de água regular e a maioria não confia na qualidade da água que chega às torneiras. É o caso, por exemplo, de Maria Aparecida Souza, moradora da comunidade de Quatituba, no distrito de Itueta. Ela conta que a cidade não foi reconhecida como atingida pela Fundação Renova, e por isso não tem direito ao Auxílio Água. Com a renda prejudicada pelo crime e sem direito à indenização garantido, a atingida consome a água amarela e fétida que chega à sua caixa d’água.
“Meu filho mergulhava no Rio Doce para jogar areia para fora. Agora ele está cego. Ele perdeu um olho e a doença se espalhou para a outra vista”, desabafa a atingida de São José do Goiabal, Efigênia Ramos. Ela conta que pelo contato com a água contaminada, não só o filho, mas a nora também está com a saúde debilitada.
Apesar de ter sido convidada com antecedência para o debate, a Companhia de Abastecimento e Saneamento de Minas Gerais (COPASA) compareceu apenas remotamente, com uma presença de quatro minutos, em uma audiência que durou quase quatro horas. O que gerou indignação dos atingidos e autoridades. “Foi muito constrangedor como a Copasa não achou que ela precisava se dedicar à essa audiência. Por isso nós vamos requerer outra audiência para ela se explicar sobre as demandas apresentadas aqui”, declarou a deputada Beatriz Cerqueira (PT).
Em Caratinga, atingidos sobrevivem com um galão de água por semana
Outra situação preocupante é da comunidade de Ilha do Rio Doce, município de Caratinga. Por uma solicitação da Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) e do Ministério Público Estadual, a comunidade – que era abastecida por poços artesianos – conquistou o direito ao fornecimento de água por caminhões pipa, uma vez que não há segurança hídrica nas captações domésticas desde o rompimento da barragem de Fundão. No entanto, durante a audiência os atingidos denunciaram que o fornecimento tem sido insuficiente.
A prefeitura de Caratinga explicou que houve uma impossibilidade do fornecimento por caminhões e passou a abastecer as famílias atingidas com um galão de água mineral por semana. “Não foi possível por falta de depósitos familiares e nós decidimos disponibilizar galões”, pontuou o Secretário de Meio Ambiente de Caratinga, José Carlos de Souza. O representante do executivo destacou ainda que a responsabilidade do abastecimento deve ser das mineradoras e não da prefeitura. “A gente entende que é um fornecimento deficitário, mas essa obrigação deveria ser da Fundação Renova, inclusive a prefeitura já recorreu dessa decisão sugerindo que a responsabilidade seja transferida”, reforça.
Próximos passos
Além de nova audiência sobre o tema da água, as mobilizações dos atingidos também resultaram em encaminhamentos destinados à Copasa, Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM) e outras entidades do setor sobre os estudos realizados pela Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (AEDAS) – assessoria técnica independente (ATI). Nos levantamentos e análises, a ATI solicita uma investigação sobre a qualidade do abastecimento fornecido às comunidades. Já para o Comitê Interfederativo da Bacia do Rio Doce (CIF), as recomendações da AEDAS são para que se verifique a inclusão de comunidades ainda não atendidas com a indenização pelo dano água, garantia de estudos sobre o risco toxicológico aos atingidos e mais transparência na implementação dos recursos e programas destinados à garantia da qualidade da água e do fortalecimento dos programas de saúde aos atingidos.