Mais de uma década após catástrofe de 2011 Petrópolis não criou um plano de emergência para desastres naturais
Movimento dos Atingidos por Barragens iniciou atuação na região em 2022 para apoiar moradores que sobreviveram a essa e outras tragédias e seguem em risco por conta da falta de políticas habitacionais
Publicado 28/04/2022 - Atualizado 28/04/2022
“Tenho muito medo ainda das chuvas. Se aqui é seguro não sei, mas fico com meu coração apertado sempre que chove. Não é fácil lembrar do que eu passei: perder sua família inteira cheia de vida”.
A camareira Monalisa L., 36 anos, atualmente moradora do bairro Quitandinha, foi a única sobrevivente de sua casa durante uma enxurrada que afetou Petrópolis em 2003. No dia 11 de janeiro daquele ano, ela estava com sua mãe, dois irmãos e seu marido – todos juntos na sala, esperando a chuva passar, quando resolveu ir à cozinha tomar um copo de água. Nesse minuto, a construção desabou e a única parte que ficou em pé foi o cômodo onde ela estava.
Anos depois, a moradora reviveu o sofrimento vendo amigos e conhecidos enfrentarem um drama parecido na emblemática catástrofe de 2011, que matou mais de mil pessoas na região serrana do Rio.
De lá pra cá, pouco se avançou em políticas públicas em relação ao planejamento urbano, uso e ocupação do solo, ou políticas habitacionais que pudessem reduzir a vulnerabilidade de pessoas que vivem em áreas de morro.
No dia 15 de fevereiro deste ano, uma das casas do bairro de Monalisa foi afetada pela enxurrada, mas, felizmente, não chegou a desabar. Outras comunidades de Petrópolis, como o Morro da Oficina, a Vila Felipe e a Rua Teresa, porém, viveram um dia de terror. Ao todo, 232 pessoas morreram na ocasião. Um mês depois, um novo temporal matou mais cinco moradores e deixou outras centenas sem casa.
“Muitos constroem em área de risco por falta de opção”, ressalta Monalisa, explicando o que pode parecer óbvio, mas não para o presidente Bolsonaro que, em entrevista na tv após o episódio, disse que muitos cidadãos de Petrópolis foram afetados pela chuva porque não tiveram “visão de futuro” ao construir em áreas de morro.
Roberto Oliveira, coordenador do MAB, que integrou a Brigada de Solidariedade às famílias atingidas pelas catástrofes de Petrópolis, afirma que o que aconteceu no município foi uma tragédia anunciada devido à falta de obras de segurança nas áreas que já haviam sido atingidas por outros desastres. “Os deslizamentos são previsíveis por razões topográficas e históricas, mas poderiam ter seu impacto minimizado caso as autoridades locais tivessem implantado um pacote de medidas de segurança e prevenção, ou investido em políticas de moradia adequadas para o território”, enfatiza o militante.
Depois do momento de comoção nacional, em que muitas organizações e personalidades políticas se mobilizaram em ações de ajuda humanitária para os atingidos (doando alimentos e roupas), a mídia deixou de dar visibilidade para a situação do município. “Apesar de Petrópolis ter saído do noticiário, a grande maioria das famílias afetadas segue sem casa, sem amparo do poder público e sem acesso ao benefício do aluguel social. Nesse momento, muitos voltaram a morar nos mesmos locais de risco de onde escaparam por não terem nenhuma outra perspectiva de moradia digna”, explica Roberto.
“Não houve nenhuma obra aqui para aumentar a segurança do morro. Além disso, estamos sem luz e sem água. Meu irmão fez uma calha e enchi uma caixa com água da chuva pra usar. Mas a gente paga imposto, paga todas as contas e está a assim. E não veio nenhum funcionário da Prefeitura ou da Enel falar com a gente. Só interditaram a área e só. Tem que fazer muro de contenção e obra de canalização pra proteger essas 46 casas que ainda estão de pé no morro. Porque a gente custa muito a conseguir algo na vida, um teto pra morar e agora a prefeitura quer demolir e pronto. E a gente vai pra onde? Isso ninguém diz”, denuncia Lina Brandão, moradora do Bairro Caxambu contando a situação depois do segundo deslizamento na Morro do Ponto..
Diante deste contexto, Isabela Souza, que também é integrante do MAB e colaborou com a Brigada de Solidariedade em Petrópolis, afirma que é muito importante apoiar a organização das famílias e fazer o debate sobre a reparação dos danos e a segurança desses moradores.
“As doações são muito importantes, principalmente pra quem perdeu tudo, mas, nesse momento, é preciso garantir os direitos fundamentais das famílias, como, por exemplo, o direito à moradia, já que muitos não conseguiram acessar o aluguel social”, ressalta Isabela.
Por isso, Roberto Oliveira explica que o MAB vai continuar dialogando com a comunidade para criar coletivamente um plano de organização e luta por direitos. “As violações contra essas famílias são históricas e, se nada for feito efetivamente, no próximo ano veremos a situação se repetir”, afirma.
Plano de Emergência
Conforme relatam os moradores que sobreviveram à última enxurrada, apesar do histórico cíclico de tragédias, a única orientação da Defesa Civil para as situações de ameaça de deslizamento é procurar escolas que servem como abrigo.
Angélica Domingas Pacheco, que é militante do Movimento das Comunidades Populares (MCP) e diretora da Escola Leonardo Boff, na comunidade do Contorno, explica, porém, que as equipes destas escolas não recebem nenhum tipo de treinamento ou plano de ação para as situações de desastres.
“Não tem um plano de emergência. Quando tocam as sirenes de alerta (que indicam risco de deslizamento), as pessoas não sabem o que fazer, porque, muitas vezes, o caminho pra escapar já foi inundado, porque a água já entrou dentro de casa, porque elas não sabem se é melhor fugir e correr o risco de serem carregadas pela enxurrada, ou se proteger dentro de casa com medo de serem soterradas”, afirma a diretora.
“Mesmo quando chegam a um abrigo, o que encontram? Diretores com boa vontade que abrem a escola e recebem pessoas que estão com a roupa do corpo e só. Aí têm crianças que precisam de fralda, idosos que precisam de remédios, famílias inteiras que precisam minimamente comer e dormir. Aí depois que as pessoas chegam vai se pensar numa logística: onde conseguir colchão, cobertor, cesta básica, como vai fazer comida? Mas isso deveria ser pensado antes. Nas cidades em que há problemas com terremotos, existem abrigos preparados para receber os moradores e protocolos que ajudam a proteger a vida dessas pessoas. Aqui, a gente não tem nada. Todo ano tem deslizamentos e enchentes e não temos um plano para lidar com ele”, afirma a militante.
Centro de Monitoramento emitiu alerta dias antes da tragédia de 2022
Apesar das enchentes serem chamadas pelo poder público de desastres “naturais”, cientistas do campo da meteorologia defendem que essas tragédias decorrem de uma combinação de diversos fatores, incluindo a falta de política pública de moradia e segurança.
Dois dias antes das fortes chuvas que atingiram Petrópolis no último mês de fevereiro, um alerta de “evento meteorológico muito intenso” foi emitido pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). O órgão foi criado após a tragédia de 2011 para o monitoramento e a emissão de alertas sobre condições meteorológicas que oferecem risco à população.
Segundo o diretor do Cemaden, Osvaldo Moraes, o aviso foi enviado ao Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad) que, por sua vez, alertou a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, responsável por fazer a comunicação com as Defesas Civis estaduais e municipais.
Apesar do funcionamento do sistema de monitoramento, o poder público não criou um plano de emergência para quando houvesse o aviso sobre a eminência de novas tempestades, nem conseguiu executar todas as obras de segurança que foram previstas para evitar o risco de novas mortes em Petrópolis a partir de 2011.
Por isso, de acordo com Moraes, a tragédia de Petrópolis em 2022 aconteceu em decorrência de dois fatores: ameaça da natureza e ameaça social. Ele considera que – embora o país tenha avançado consideravelmente nas condições de monitoramento de eventos meteorológicos, a vulnerabilidade e exposição de pessoas às áreas de risco ainda é intensa.
Governo do Rio de Janeiro não usou verba destinada a ações de prevenção
O governo do Estado do Rio de Janeiro – em balanço realizado no ano passado, nos dez anos da tragédia de 2011 – reconheceu que um terço da verba (cerca de R$ 500 milhões) destinada à construção de moradias, contenção de encostas e limpeza do leito dos principais rios não havia sido ainda aplicada.
Segundo declaração de Cláudia Renata Ramos, integrante da Comissão das Vítimas da Tragédia da Região Serrana, Petrópolis deveria ter recebido 3.250 unidades habitacionais, mas apenas 1.025 foram entregues até agora. Além disso, pelo menos 700 pessoas afetadas pela tragédia de 2011 ainda dependem do aluguel social (benefício do governo do Rio de Janeiro para realocar pessoas desabrigadas nessa situação), pois não tiveram acesso a novas moradias. Já as cerca de 3 mil pessoas afetadas pela catástrofe de 2022 seguem há dois meses esperando o benefício, morando de favor em casas de vizinhos ou amigos.
O agravante é que – mesmo quando acessam o valor do aluguel – essas pessoas não conseguem se mudar para áreas mais seguras, porque o valor não é suficiente para alugar um imóvel em bairros mais estruturados. Segundo Angélica Domingas, a área plana de Petrópolis não comportaria toda a população que hoje vive em áreas de morro e mesmo que comportasse, essa área não está livre de riscos, porque está entre os rios e a serra e acaba inundando.
O que são áreas de risco?
Angélica questiona o conceito de áreas de risco. Para a prefeitura de Petrópolis, área de risco é uma área íngreme com uma escala de altitude e um conjunto de tipo de solo, tipo de rocha, tipo de vegetação e passagem da umidade que favorecem o deslizamento. “Existe um relatório do IBAMA que mostra que toda a cidade de Petrópolis está em área de risco”, afirma a moradora. Para a militante, se toda o município está em um relevo muito íngreme com picos de morro não faz sentido a Defesa Civil condenar apenas as casas dos moradores das áreas marginalizadas.
“Os condomínios da parte alta não foram atingidos porque houve um investimento na estrutura de segurança nesses lugares, mas o valor da moradia nesses condomínios é caríssimo e só uma parte privilegiada da população pode estar protegida lá”, afirma Angélica.
A militante explica que, por isso, atualmente, as pessoas de baixa renda ficam migrando de uma área insegura para outra área igualmente insegura tentando escapar da morte e de todos os riscos que as catástrofes naturais oferecem.
“O que precisamos é depolíticas para uso do solo em terreno íngreme que garantam a segurança das pessoas nesses lugares, já que não há como realocar uma população inteira de uma cidade. Não adianta tirar as pessoas de um lugar e colocar em outro lugar igual, sem investir em segurança. O poder público precisa investir na periferia com saneamento básico adequado, olhar a canalização pluvial e a rede de esgoto, porque temos uma rede de esgoto que é da época do império”, ressalta.
“Então, qual o maior risco que temos? O maior risco não é o morro, mas o modelo capitalista de uso do solo que é o que? Desmatar a floresta ao invés de conviver com ela. Aqui na comunidade do Contorno, uma ocupação organizada, onde eu moro, a gente convive com a mata, a gente protege o caminho da água. E você vê que os morros mais atingidos pelas enxurradas são aqueles totalmente pelados, que não tem mais nenhum tipo de vegetação ou que tem vegetação, mas não tem canalização pra água”, complementa a militante.
Nesse sentido, o pesquisador Roberto Teixeira, que integra a equipe do Cemaden, afirma que com a intensificação dos extremos climáticos, é preciso rever o modelo de uso do solo e o modelo econômico que colocam as populações em risco. “O que a gente está vivendo, no meu ponto de vista, é a chegada ao final de um determinado momento histórico. De certa forma, esses eventos começam a mostrar que nosso estilo de vida ocidental capitalista consumista, ele não é sustentável. Não é sustentável no sentido de que o processo de degradação ambiental associado a uma dinâmica de exploração social que está se desenvolvendo que não consegue se manter ao longo do tempo, porque os danos são cumulativos. Então, o ambiente natural tem conseguido responder de uma maneira ou de outra a esse ataque que está sendo feito, mas em algum momento a situação pode não conseguir mais ser revertida”, alerta o cientista.