Batucada em Movimento

Por Claret Antônio Fernandes, militante do MAB e padre da Arquidiocese de Mariana (MG) Manhã de 19 de janeiro de 2018. O Coletivo de Negociação do MAB, com presença de […]

Por Claret Antônio Fernandes, militante do MAB e padre da Arquidiocese de Mariana (MG)

Manhã de 19 de janeiro de 2018. O Coletivo de Negociação do MAB, com presença de visitantes, chega à Casa de Governo, em Altamira, para mais uma reunião sobre os moradores da lagoa do Independente I. Cadastro do Movimento conta 688 famílias. É muita gente! O processo de luta vem de longe. Realizaram-se vários estudos. A Agência Nacional da Água fez relatório. A Norte Energia realizou, também, o seu Cadastro. Tudo já está com o IBAMA desde dezembro de 2017. A reivindicação, agora, é que o Órgão dê seu Parecer, que, sendo favorável ou não, será instrumento de mobilização do povo.

Dois visitantes, que não põem o pé ali há quatro anos, reparam cada detalhe. Eles sabem que a Casa de Governo, mesmo no auge de Belo Monte, nunca foi lá essas coisas. Mas agora está jogada às traças. O mato toma conta de tudo, entre a grade enferrujada e as paredes encardidas. As janelas, de tanto tempo fechadas, provavelmente já nem abrem. O único banheiro feminino está interditado. Os funcionários, que eram 11 em 2015, agora são três apenas. A Casa não tem segurança nem secretário nem gente encarregada da limpeza, por isso os três profissionais deixam seus ofícios e cuidam desses afazeres ou fazem vaquinha, pagando alguns serviços essenciais do próprio bolso.

Na memória dos visitantes, está viva a razão da instalação da Casa de Governo. Prevendo-se as atrocidades de Belo Monte, pensou-se num espaço de diálogo.

É verdade que a Casa nunca cumpriu seu objetivo a contento, até porque o governo federal – e seus pares nas demais esferas – é parte interessada na implantação da hidrelétrica. Depois, porque a condição completamente desfavorável do atingido dificulta o diálogo. Mas havia alguma sensibilidade e esforço da Casa, ainda que pouco eficazes, tocando questões periféricas. Mas hoje, sob Temer, os tempos são sombrios. Some-se a isso a ressaca de Belo Monte.

Enquanto os visitantes, numa roda de conversa, vão recuperando tudo isso na mente, ouve-se um barulho no canto da Casa. Depois de um tilintar de chaves, abre-se uma portinhola e um Senhor de meia idade, técnico de computação, antigo na Casa e velho conhecido dos visitantes, convida o Coletivo de Negociação para entrar. Todos se aproximam e vão, pelos fundos, até a sala de reunião.

Em um minuto, se muito, chega a atual Coordenadora da Casa. Veste-se bem, um roupão comprido, aberto do lado. Vendo que há pessoas ‘novas’, ela, após apresentar-se, dizer que se chama Elisângela, que é de Medicilândia (cidade há 90 km de Altamira), produtora de Cacau, pede, num sorriso meigo, quase inocente, que os visitantes se apresentem também.

Ela repara um e outro, correndo os olhos nos presentes, e concentra-se em três, os únicos que lhe são estranhos. Os demais são ‘bem’ conhecidos, juntos em outras dezenas de reuniões.

Os ‘estranhos’, mas conhecidos dos atingidos, pois já militaram na Região, apresentam-se. São militantes do MAB. Um casal de Minas Gerais e uma das mulheres, embora de Altamira, atualmente mora em Mosqueiro – para estudo e trabalho – e atua, feito fada, na Ciranda do Movimento. As crianças a adoram.

Sentindo-se bastante à vontade, Elisângela conta que propôs à Norte (termo aparentemente íntimo para dizer Norte Energia) uma nova reunião, em princípio no dia 22 de janeiro, para apresentação de relatório preliminar. No fundo, quer dizer que está trabalhando. Informa, imediatamente, que a empresa rejeitou a data, alegando falta de tempo hábil para organização de documentos, e colocou sua disponibilidade para os dias 2 ou 5 de fevereiro.

A reação contrária e instantânea do Coletivo de Negociação assusta a representante da Casa de Governo, que parecia esperar um assentimento. Primeiro eles se mexem nas cadeiras, inquietos. Cruzam-se olhares, indignados. Uma das mulheres, membro do Coletivo, moradora no Independente I, abre a fala: ‘não queremos apresentação de coisa inacabada, em aberto, em estudo, sem solução’.

Toda a reunião explode em desabafo. Todo mundo quer falar: ‘estamos com um calendário desde abril de 2017, as responsabilidades foram definidas, o Governo não fez nada!’; ‘agora é ano eleitoral, chega a Campanha e pronto!’; ‘nossa situação é precária, a lagoa atinge nossas casas, há moradias caindo, isso é grave, temos que ter uma solução urgente’.

Por mais de 15 minutos, impossível conter os ânimos. Por vezes, parecia haver pensamentos desconexos. No fundo, porém, há uma coerência e unidade: ninguém quer mais uma reunião apenas, mas solução! Se o ‘diálogo’, as fotos, os relatórios, os documentos, resolvem o problema dos governos e das empresas, pois, enfim, mostram que estão ‘fazendo’ sua parte, eles não dão nenhuma esperança para o atingido, que sente a sua grave situação pior no cotidiano.

Elisângela faz-se sensível. E se esforça para mostrar outra narrativa: a Casa de Governo, ainda que precária, está aberta – ‘poderia ser pior!’ -; ‘a Norte fez Cadastro de todas as famílias’. Mas soa claro que seu esforça, embora grande, tem pouca base material. O que ela diz é verdade, na perspectiva do Movimento, porém é como se fosse uma corrida, onde a hidrelétrica vai a jato, já comercializando energia, e a solução dos problemas criados fica parada ou a passos de tartaruga, no início da maratona.

Os visitantes nunca tiveram dúvida. A prioridade absoluta das empresas é o lucro e os órgãos de governo, quando funcionam, têm como objetivo primeiro a garantia das condições favoráveis à implementação da política de governo. Por isso, somente pela luta se avança no direito. E o sentimento é que as quase mil famílias do Independente I, atingidas por Belo Monte e, ainda, não reconhecidas pela Norte Energia, estão nesse caminho.

O impacto da barragem sobre o Independente I, localizado abaixo do nível do lago, é visto a olho nu. A lagoa, que baixava na vazante, agora permanece cheia. A infiltração permanente da água compromete a base das moradias. Há casas caindo. Não se trata, portanto, em primeira mão, de produção de provas. Trata-se de força popular real pra vencer.

Elisângela aparentemente compreende a insatisfação do Movimento. Mas aproveita o tempo para fazer o seu desabafo: ‘Não temos condições de trabalhar. Estou cansada. Devo ficar somente até o final deste ano. Cuidando de Cacau, com os meus trabalhadores, me estresso muito menos e ganho mais’. Lembra ainda que o IBAMA, o INCRA, O DNIT, no Xingu e na Transamazônica, todos estão na mesma situação. ‘A Polícia Rodoviária tem apenas 400 litros de gasolina/mês para um trecho de quase mil km’. Depois encerra a reunião, prometendo gestão junto ao IBAMA, apesar da sua limitação.

Dali, ainda pela manhã, visitantes e a Militante – antes moradora da Rua Oito, na área alagadiça – seguem para o Jatobá.

O atingido reassentado sente o custo de vida subir, assustadoramente. Alguns até venderam ou alugaram suas casas. O IPTU são R$140,00. A conta de luz chega a R$120,00. A tarifa de água, aprovada na Câmara municipal, apesar de muita luta, deve passar de R$30,00.

Em meio aos reclamos dos moradores, a Militante conta do que vem sofrendo em casa. Um e outro enxergam a situação dela como uma questão de família, mas o Movimento, traquejado nisso, sabe que, além do machismo, muito comum, o ponto da discórdia é sua militância. E, diante do risco e da insegurança, está buscando os meios para proteger a vida da Camarada.

Os desafios no Jatobá são visíveis e enormes. Mas o espírito de luta os supera.

A Militante, esquecida de tudo – dos riscos, dos desafios -, faz questão de mostrar as conquistas: na igreja, Sr. Bena conta dos ventiladores roubados enquanto instala portão eletrônico, satisfeito com a união do povo; em frente ao Barracão a Militante conta que, a partir daquele, todos os outros reassentamentos conseguiram também e, apontando o dedo, diz: ‘aquela sala, nós mesmos construímos!’.

Nesse momento, um pequeno grupo de jovens chega e, carregando instrumentos, aproximam-se do banco, à frente do Barracão, sentam-se pelo chão, no banco, ou ficam de pé. O zum-zum-zum da presença jovem vai aumentando, de cochichos, de risos e dos instrumentos, que começam a barulhar e, em menos de meia hora, quase 20 jovens fazem, na Rua do Jatobá, uma bela batucada. A Militante aproxima-se, orgulhosa. Aquela é a ‘sua’ família, parida na luta. ‘Precisamos de carona para o Independente’ – diz uma das jovens. ‘Pelo menos para os instrumentos, pois nós vamos de bicicleta’ – afirma a outra, com um brilho especial nos olhos.

Os visitantes ficam por perto, refletindo. Dentre todas as conquistas, talvez essa seja a maior delas: a participação da juventude! Ela é condição necessária pra luta continuar.

Ao menos três deles, da antiga Rua Oito, participam da Coordenação do Movimento. E próximo de 30 andam os 5 reassentamentos na cidade – que, juntos, somam em torno de 20 mil pessoas -, batucando e, assim, ajudando na animação e organização do povo.

Termina o roteiro do dia. Visitantes e militantes vão até a Casa de Educação Popular, onde ocorre reunião da Consulta Popular e há ali, por isso, possibilidade de almoço.  Mas as panelas já se esvaziaram. Também são 14 horas.

 ‘Vamos lá pra casa’, diz a Camarada, cirandeira do MAB. Lá, o almoço sem aviso prévio foi um restinho de tudo, rico na diversidade. Quatro pessoas almoçam, fartam-se e ainda sobra alimento.  

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