Transição energética justa e popular ganha centralidade na Cúpula dos Povos
Em Belém, sindicalistas, camponeses, atingidos e pesquisadores lançam propostas para uma transição energética popular, soberana e anticolonial; energia como direito e não mercadoria
Publicado 14/11/2025

O debate sobre o futuro da energia foi ao centro da Cúpula dos Povos nesta quinta-feira (13), em Belém, durante o Seminário de Transição Energética Justa e Popular para os Povos, que reuniu movimentos sociais, sindicatos e representantes de organizações internacionais. Com auditório lotado, a mesa marcou um dos momentos mais densos da programação do Eixo 3, dedicado à disputa estratégica do modelo energético, e reforçou um consenso: a transição para fontes limpas só será justa se for conduzida pelos trabalhadores, pelas populações atingidas e pelos povos que hoje pagam o preço da crise climática.
O encontro apresentou uma carta da Plataforma Operária e Camponesa de Água e Energia, que defende a transição popular, soberana e anti-imperialista, ancorada no reconhecimento de que o modo de produção capitalista, baseado na apropriação desigual da riqueza, no controle privado da energia e na financeirização das políticas públicas, é o responsável central pela crise ambiental.
O documento aponta que energia não deve ser encarada como um produto de consumo do mercado, mas um bem comum, um direito, e que qualquer transição deve priorizar a soberania alimentar, energética e territorial, combinadas à distribuição da riqueza e ao controle popular sobre os sistemas energéticos.

Ao longo do seminário, representantes de diversas organizações deixaram expresso a posição de que a transição energética não é apenas uma mudança tecnológica, mas uma disputa de projeto de país. Cibele Vieira, diretora da Federação Única dos Petroleiros (FUP), lembrou que trabalhadores do setor de petróleo não podem ser tratados como inimigos da transição energética, mas como parte essencial do processo:
“Nós, petroleiros e petroleiras, queremos saber para quem e para quê estamos trabalhando. A transição precisa garantir empregos, segurança e orgulho do nosso trabalho, e não gerar medo e culpabilização. O petróleo que existe hoje pode e deve financiar a própria transição, desde que o controle seja público e voltado ao povo brasileiro”, afirmou.
Cibele alertou que, se a transição for conduzida pelo mercado, corre-se o risco de repetir desigualdades: energia cara, privatizada e dirigida a interesses corporativos. A defesa de que a Petrobras tenha papel protagonista e estratégico, operando novas fronteiras e financiando matrizes alternativas, foi reiterada como condição para uma transição soberana.
O papel dos trabalhadores: organizar para transformar
No debate sobre os rumos da transição energética apresentado durante a Cúpula dos Povos, especialistas ressaltaram que o processo precisa levar em conta a estrutura econômica do país e o papel estratégico dos setores que hoje sustentam a matriz energética brasileira. Entre eles, o setor de óleo e gás, que continua sendo peça central na oferta de energia e no emprego industrial, ocupou um lugar de destaque nas discussões conduzidas por pesquisadores e representantes sindicais.
Foi nesse contexto que Davi Bonela, do Observatório de Óleo e Gás, chamou atenção para a necessidade de uma transição que dialogue com a realidade nacional e com os trabalhadores que movem essa cadeia produtiva.
“A crise climática é real e já afeta, principalmente, as populações mais vulneráveis. Mas no Brasil, 44% da oferta energética vem do setor de óleo e gás, que também gera mais de 600 mil empregos. Não podemos importar modelos de transição que ignoram nossas especificidades. O setor deve ser parte da solução, não bode expiatório. Precisamos de dados, transparência e participação popular para definir qual transição é justa para o povo brasileiro”, disse.
Bonela destacou que o Observatório surge justamente para oferecer instrumentos que permitam aos movimentos sociais disputar narrativas, monitorar impactos e construir propostas próprias, evitando que a transição seja capturada por interesses financeiros internacionais. Observatório de Óleo e Gás é uma iniciativa do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra Ineep), e foi lançado durante a COP30, em Belém, com apoio da FUP e da Instituto Clima e Sociedade (ICS).
As alternativas já existem: energia comunitária e redes populares
Enquanto representantes do movimento sindical apontaram os desafios no setor industrial, organizações populares demonstraram que outras formas de produzir energia já estão em curso, especialmente nos territórios atingidos. Juan Pablo Solé, do Movimento Ríos Vivos (Colômbia) e parte da coordenação do recém-lançado Movimento Internacional dos Atingidos por Barragens, Crimes Socioambientais e Crise Climática, trouxe experiências concretas de sistemas comunitários.
“Começamos com pequenas iniciativas em comunidades camponesas, que pareciam pequenas demais. Mas pequenas para quem? Quando são milhares de famílias, isso vira milhões de quilowatts. Energia comunitária não é uma proposta isolada: é um caminho real para democratizar o acesso, reduzir tarifas e transformar a cultura energética”, afirmou.

Juan também lembrou que energia não é só eletricidade: é mobilidade, qualidade de vida, alimentação, tecnologia e autonomia. “Se as comunidades têm direito de produzir sua própria energia, e de decidir para quem ela serve, a transição deixa de ser uma agenda técnica e se transforma numa ferramenta de emancipação”, disse o colombiano.
O horizonte político: soberania, direitos e novos modelos de desenvolvimento
A leitura da carta da plataforma reforçou que a transição energética justa está diretamente ligada à luta contra o racismo ambiental, o patriarcado, o colonialismo e a precarização do trabalho. Trata-se de redefinir quem controla a energia, quem decide sobre o território e quem colhe os benefícios.
O documento aponta caminhos:
- reestatização e fortalecimento do setor público de energia;
- controle popular sobre tarifas e infraestrutura energética;
- financiamento público para energias comunitárias e democráticas;
- garantia de empregos dignos, formação de trabalhadores e reconversão produtiva;
- soberania alimentar e energética caminhando juntas;
- cooperação internacional entre povos atingidos;
- transição anticolonial, que enfrente o avanço de corporações sobre territórios indígenas, camponeses e periféricos.
O futuro possível: unir o que o capital fragmentou

O seminário reforçou a postura dos movimentos populares e sindicais, de que a transição energética vai além de uma mudança técnica voltada ao enfrentamento da crise climática, e por isso deve ser feita Para os movimentos presentes, trata-se de uma oportunidade de redefinir o modelo de desenvolvimento do país, incorporando justiça ambiental, igualdade racial, soberania popular e o reconhecimento da energia como um direito social.
A ampla participação de populações atingidas, petroleiros, eletricitários, camponeses, movimento feminista, juventudes, povos indígenas e organizações internacionais de cinco continentes, apontou que o debate sobre o futuro da energia não pode ocorrer à margem de quem produz, vive nos territórios e sofre diretamente os impactos do atual modelo.
