Atingidos de cinco continentes formalizam movimento internacional durante a Cúpula dos Povos

Com relatos sobre as semelhanças das experiências, atingidos da África, Ásia, Oceania, Europa e América Latina oficializaram uma articulação global para enfrentar barragens, mineração e os impactos desiguais da crise climática em Belém

Representantes de atingidos dos cinco continentes contam sobre a realidade das populações locais na Cúpula dos Povos. Foto: Anna Mathis / MAB

O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) iniciou, nesta quarta-feira (12), sua participação na Cúpula dos Povos, em Belém, com um seminário internacional que reuniu representantes de cinco continentes para compartilhar denúncias, experiências e estratégias de enfrentamento aos impactos das barragens e da crise climática. O encontro, marcado por relatos de violações e resistência, terminou com um ato político histórico: o lançamento do Movimento Internacional dos Atingidos por Barragens, Crimes Socioambientais e Crise Climática, uma articulação global que nasce para unir territórios, fortalecer lutas e responsabilizar quem lucra com a destruição dos rios, das florestas e da vida.

Letícia Oliveira, do MAB, abre os relatos das populações atingidas em todo o mundo na Cúpula dos Povos. Foto: Marcelo Aguilar / MAB
Letícia Oliveira, do MAB, abre os relatos das populações atingidas em todo o mundo na Cúpula dos Povos. Foto: Marcelo Aguilar / MAB

A integrante da coordenação do MAB, Letícia Oliveira Faria, abriu os relatos falando sobre o crime ambiental que atingiu Mariana, em Minas Gerais, após o rompimento da barragem do Fundão, operada pela Samarco, uma mineradora controlada pela Vale e pela BHP Billiton, e que neste mês completou 10 anos sem a responsabilização das empresas.

“Eu moro em Mariana, uma cidade marcada pelo crime socioambiental da Vale. O rompimento da barragem destruiu 600 quilômetros de rio, chegou ao oceano, matou 11 toneladas de peixes e tirou a vida de 272 pessoas. Até hoje, tudo segue impune e sem reparação. É crime porque as empresas sabiam que isso podia acontecer e permitiram. E o impacto não acabou: a contaminação continua agindo no corpo das pessoas e no território, e vai seguir sendo sentida no futuro”.

O ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, esteve no seminário e afirmou, ainda sobre o crime de Mariana, que o presidente Lula deve entregar um novo acordo (entre o Estado e as empresas envolvidas no crime), que irá reassentar as populações atingidas. “Estamos mandando um recado claro às empresas (que destroem os territórios): que eles vão ter que se ver com a gente (governo federal)”, disse o ministro, sem detalhar quais são os termos desse novo acordo e nem quando deve acontecer.

Atingidos de todo o mundo, uni -vos! 

A África, que historicamente sofre profundamente com as barragens, foi representada no seminário pela sul-africana Rudo Angie Hungwe. A história de Rudo é bastante conhecida para quem é atingido: vidas interrompidas, deslocamento e comunidades pagando o preço de um desenvolvimento que não as inclui. “Mais de um milhão de africanos foram removidos nos últimos 50 anos. Famílias que viviam em terras férteis foram levadas para solos inférteis, obrigadas a comprar a comida que antes produziam. E tudo isso continua acontecendo sem consulta às comunidades, com governos e empresas ameaçando, perseguindo e até matando quem resiste”, disse. 

A sul-africana, que esteve presente no IV Encontro Internacional dos Atingidos por Barragens e Crise Climática, também em Belém – nos dias que antecederam a Cúpula dos Povos -, participou do lançamento do Movimento dos Atingidos por Barragens, Crimes Socioambientais e Crise Climática e reforçou a necessidade de um movimento internacional que responsabilize quem causa o que chamou de crimes e dores.

“Não podemos seguir construindo prosperidade sobre a dor de quem não tem poder. Nossos rios são nossas veias, não mercadorias. O desenvolvimento precisa ser justo, sustentável e liderado pelo povo. As comunidades têm o direito de dizer não. Que este encontro seja o início de uma chamada global”, disse. 

A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, chamou atenção para o racismo ambiental vivido pelas populações atingidas. Foto: Marcelo Aguilar / MAB

O relato de Rudo foi ouvido pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, também presente no seminário. A ministra reverenciou o depoimento, afirmando que é “preciso lembrar e aprender com quem veio antes de nós”, e parabenizou os atingidos reunidos no seminário que, segundo Anielle, “reconhecem na prática de suas lutas e conquistas o que é o racismo ambiental”. 

Merha Johansyah, do Instituto Nogal, da Indonésia, na Ásia, contou sobre as secas prolongadas, enchentes, ondas de calor e a elevação do nível do mar em seu país, e que não tem servido de freio para o desmatamento ligado à mineração. “Na Ásia, na África, nas ilhas da Oceania e também na América Latina, somos os mais afetados pelo caos climático, que desestabiliza sistemas antes regulares e compromete a vida de comunidades inteiras. A verdade é que ninguém está a salvo dessa crise, nem mesmo a Europa”, afirmou. 

A história do asiático é também a de comunidades no Leste europeu. O bósnio Vladimir Tópic, do Centro Ambiental de Bósnia, contou que em seu país há comunidades cercadas por barragens e que não possuem energia elétrica nas casas. “Esses problemas não são isolados, são parte de uma realidade comum em vários países, inclusive na Europa. Produzimos cada vez mais eletricidade, mas o preço só aumenta. Sabemos que a água é um bem comum e que deveria ser gerida pelos povos, mas quem assume esse papel são as empresas. Sabemos qual é o caminho e o que precisa ser feito, por isso estamos aqui, juntos de vocês”, disse. 

O ministro Ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome do Brasil, Wellington Dias, participou do seminário e reforçou a premissa dos atingidos de “compreender que, cada vez mais, os investimentos em represas são internacionais. E, por isso, os conflitos e violações que elas provocam também chegam aos fóruns internacionais. A construção de um movimento de pessoas atingidas por barragens é um passo gigante para fortalecer essa luta no mundo inteiro”, disse, afirmando ainda que o movimento contará com o apoio do MDS. 

Durante o seminário, integrantes do MAB fizeram a leitura do manifesto lançado na terça-feira (11), quando a criação do movimento internacional foi aprovado pelos atingidos, reforçando que a construção do Movimento Internacional dos Atingidos nasce da necessidade de unir povos de diferentes países diante de um mesmo inimigo: um modelo de produção que amplia desigualdades, ameaça territórios e agrava a crise climática.

A proposta, segundo o manifesto, é consolidar um movimento de base, popular, anti-imperialista e anticolonial, capaz de responder às demandas específicas das comunidades atingidas e de defender uma transição energética verdadeiramente popular. Essa articulação terá como princípios a solidariedade internacionalista, a formação de lideranças e a construção de alianças globais com organizações que compartilham os mesmos objetivos de justiça, direitos e sustentabilidade ambiental.

O Roquin Jon Siongco, do movimento Justiça Climática, na Oceania, fez um comovente relato sobre a destruição que empresas multinacionais de mineração estão causando em seu território, e da disposição do seu povo em unificar as lutas.

“Venho da Ilha de Guam, no Pacífico, um território marcado por forças coloniais onde a água – que dizem nos dividir -, na verdade, nos conecta. Nossa ilha é pequena demais para barragens, mas estamos profundamente ameaçados pela mineração no fundo do mar, que afeta a pesca, desloca espécies e impacta milhares de ilhas na Oceania. Em nome da ‘biodiversidade’, destruíram uma área equivalente a 100 campos de futebol e, depois, instalaram uma fazenda solar que despejou toneladas de lixo dentro de uma caverna ancestral. Já perdemos nossos pássaros por causa de uma cobra exótica introduzida ali, e nossas florestas agora são silenciosas. O mundo nos vê como pequenos pontos no mapa, mas vivemos ameaças enormes. Por isso, peço que aceitem nossa solidariedade através das águas; compartilhamos as mesmas preocupações e a mesma luta.”

O seminário terminou com uma caminhada dos atingidos do Brasil e demais continentes para a abertura oficial da Cúpula dos Povos, que acontece na Universidade Federal do Pará (UFPA). 

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