Povos do mundo navegam juntos pelas águas da Amazônia em vivência do IV Encontro Internacional de Atingidos
Experiência cultural realizada em Belém (PA) conectou atingidos de cinco continentes por meio da música, da história e das paisagens da maior floresta tropical do mundo
Publicado 10/11/2025 - Actualizado 24/11/2025

Em meio às paisagens da Amazônia paraense, um grupo formado por lideranças populares de 45 países embarcou neste domingo (09) para uma travessia simbólica pelas águas da Baía do Guajará, em Belém. O passeio, que reuniu representantes de diferentes movimentos sociais fez parte da programação do IV Encontro Internacional de Atingidos por Barragens e Crise Climática. Desde o início da semana, o evento reúne 350 pessoas de todos os continentes para discutir soberania energética, justiça climática e construir soluções coletivas.
A proposta da vivência amazônica foi oferecer aos participantes um contato direto com o território e com a cultura do país que sedia o encontro, para que pudessem sentir e compreender a Amazônia não apenas como paisagem, mas como território político e de resistência. Por isso, a imersão foi pensada como um espaço de aprendizado e troca com a cidade como fundo.
Porta de entrada para a Amazônia, a capital paraense tem uma história rica e um ritmo urbano frenético, com grandes congestionamentos fluviais. O fluxo das embarcações que chegam e partem do porto pela manhã inclui desde grandes navios, barcos de linha de até três andares, balsas e barcos de ribeirinhos que vivem em comunidades na floresta, especialmente no arquipélago do Marajó. A cultura da cidade, por sua vez, é bastante diversa e mistura o embalo das guitarradas, o tremor do jambu, o sabor do açaí e o balanço do carimbó que animou a vivência.
História e resistência no coração de Belém

Na primeira parte do dia, os participantes realizaram uma caminhada pelo centro histórico de Belém, conduzida pelo professor e historiador Michel Pinho e pesquisador da história social da cidade. O passeio teve o formato de uma aula pública, com reflexões sobre o papel das populações negras, indígenas e ribeirinhas na formação do Pará e sobre as lutas de resistência que marcaram a região, como a Cabanagem, revolta popular ocorrida entre 1835 e 1840 contra a exploração e o autoritarismo das elites coloniais.
“A proposta é olhar para Belém a partir de outras perspectivas. A cidade não é apenas o que aparece nas narrativas oficiais, mas o resultado de muitos conflitos e resistências. Essa história precisa ser contada pelos que a construíram”, afirmou Pinho.
Durante o percurso, o educador apresentou também a arquitetura e os monumentos da cidade como elementos de uma história política, além de expressões idiomáticas locais que traduzem o modo de vida do povo paraense.
“Eu imagino a cidade como se ela fosse uma sala de aula. Então, ao invés de um quadro, a gente tem um prédio; ao invés de uma projeção, a gente tem uma rua; ao invés de uma narrativa, a gente tem as pessoas. Então, fazer isso é fazer com que a gente tome para a gente um direito, que é o direito à cidade”, explica.
Durante o tour/aula, ele também usa a música para mostrar as proximidades entre Pará e África com um carro de som, com canções que expressam a potência cultural do estado e as referências negras da nossa identidade.
O grupo finalizou a caminhada no Mercado Ver-o-Peso, considerado a maior feira livre da América Latina, onde os visitantes conheceram a dinâmica popular que movimenta a economia local e observaram como a vida ribeirinha sustenta a cultura e a alimentação de Belém.
Às margens da Baía de Guajará, o Mercado foi inaugurado em 1901 e, com o Mercado de Carne, é considerado a maior feira livre da América Latina. Ao todo, ela se estende por um complexo arquitetônico e paisagístico de 25 mil metros quadrados, onde estão as referidas construções históricas.Nos corredores, os vendedores oferecem peixes, frutas, açaí, ervas, temperos, raízes, “perfumes mágicos” e artefatos de mandinga que, segundo eles, curam todos os males. As ofertas incluem ainda muitas frutas tropicais, como muruci, pupunha, cupuaçu e ingá, além de galinhas, peixes, camarão – seja seco ou fresco – e caranguejo. Ao todo, são vendidas entre 12 e 15 toneladas de peixes, muitos deles considerados espécies nobres, como o pirarucu, conhecido como “bacalhau da Amazônia”.
Travessia pela Baía do Guajará

O passeio de balsa pela Baía do Guajará, em Belém (PA), foi um momento histórico em que participantes de cinco continentes navegaram juntos em um ato de união, solidariedade e conexão cultural. O embarque começou ao som contagiante do carimbó e ao aroma da feijoada preparada para receber as delegações. À medida que os povos subiam a bordo, os ritmos amazônicos se misturavam a batidas africanas e a uma diversidade de sotaques vindos de todas as partes do planeta.
À frente da embarcação, um mapa-múndi inflável flutuava sobre as águas, simbolizando a casa comum, a Terra, e lembrando que o planeta onde vivemos é um só para todos.
Além da paisagem amazônica de grandes proporções, um dos pontos altos da vivência foi a apresentação musical ao vivo de carimbó. O ritmo é uma manifestação cultural de origem indígena e africana, com forte influência caribenha, especialmente perceptível nos movimentos de saia e quadril. Desenvolvido no estado do Pará, ele é reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil e representa a fusão entre tradições indígenas, africanas e portuguesas, uma celebração viva da diversidade amazônica.
O momento foi marcado pela mistura de idiomas e histórias, mas também por um sentimento comum: o de pertencer a uma luta global contra a injustiça climática e o poder das grandes corporações.

“Estamos construindo o mundo que queremos viver, um mundo sem imperialismo, sem racismo, sem capitalismo. Um mundo onde a vida de todas as pessoas tenha valor, em qualquer lugar do planeta”, afirmou Caitlin Schroering, dos Estados Unidos, integrante do Comitê de Solidariedade com o MAB.
Ela lembrou que esteve pela primeira vez em Belém em 2008, também para um encontro internacional, e que desde então observa avanços importantes na articulação global dos movimentos sociais. “Naquela época, aprendi sobre colonialismo ambiental. Hoje, vejo que as mesmas forças que exploram o Sul global continuam atuando, mas também percebo que nossa organização coletiva se fortaleceu.”

Também estava entre os que navegavam Miguel Artega, de Barcelona, integrante da Aliança Contra a Pobreza Energética, que destacou o caráter educativo e transformador do Encontro.
“Tem sido uma experiência muito grande conhecer algo que é novo para mim: entender o que é o sistema energético. O sistema energético é algo que atravessa os governos e o sistema global. E isso se torna crítico quando as pessoas não têm condições econômicas para pagar a luz e a água e as empresas cortam sem oferecer nenhuma alternativa”, avaliou.
Ele explica que a interação com lideranças de tantas partes do mundo é o ponto alto pra ele da experiência. “O mais maravilhoso foi encontrar pessoas de diferentes países, amáveis, carinhosas, e conhecer o sistema de cada país, de cada organização e também ter essa oportunidade de convivência tão alegre”, complementou.
Vozes da África

Entre os representantes africanos, a vivência teve um significado especial.
Íris Kashindi, da República Democrática do Congo, explicou que, para ele, fortalecer a luta internacional pelos direitos sociais da população é muito importante.
“Não é a primeira vez que participo de espaços para discutir comunidade local e justiça climática. Faço parte da coordenação das minhas comunidades e atuo no monitoramento territorial. Estar aqui é uma grande oportunidade, porque nós sofremos há muito tempo com o impacto das grandes barragens, em várias partes do mundo, mas especialmente na África. Por isso, é tão importante estarmos juntos, combinando forças e compartilhando experiências. O MAR é um espaço essencial para nos unirmos, defendermos nossos recursos e lutarmos juntos contra as barragens e pelas causas da justiça climática,” disse.
Sobre a imersão amazônica, ele disse que proporcionou a chance de todos se conhecerem melhor e entenderem a sintonia cultural que existe entre os países.
“É uma energia muito boa para nós. Na África, também temos esse tipo de música que ouvimos aqui, não é algo novo para a gente, até porque existe muita sinergia, né? O mais importante é compartilhar essa energia, trabalhar em conjunto e criar uma dinâmica coletiva. A comida, a dança e a alegria são formas de troca cultural. Aqui, percebi, por exemplo, que os brasileiros cultivam o arroz de maneira diferente da nossa. Esses momentos mostram o valor de compartilhar saberes, práticas e modos de vida.”
Seu compatriota Louis Lukombo, liderança das Comunidades de Inga (da região central da República Democrática do Congo), relacionou as lutas africanas às latino-americanas.
“Para mim, este encontro é muito importante, porque estamos trocando ideias e também compartilhando nossas dificuldades. É uma ocasião para entender como podemos encontrar saídas para o que estamos vivendo, porque, em muitos países, foram construídas barragens que têm uma certa utilidade, mas causam problemas. Então estamos nos deparando com dificuldades, especialmente nos países da África, que enfrentam forças neocolonialistas. Mas esse intercâmbio nos mostrou que não estamos sozinhos. Somos muitos que estamos compartilhando a mesma situação. Então, grandes ideias estão nascendo, porque estamos entendendo o que podemos intercambiar para nos desenvolvermos”, disse o líder durante a navegaçao pela Amazônia.
As hidrelétricas de Inga são um complexo de usinas no Rio Congo, onde existem projetos muito maiores em discussão, como o megaprojeto Grand Inga, pensado para ser uma das maiores hidrelétricas do mundo em potência instalada. As comunidades que vivem ao redor das usinas enfrentam um conjunto de impactos duradouros: muitas foram deslocadas sem compensações adequadas, perderam terras férteis, áreas de pesca e espaços culturais ligados ao rio, o que afetou diretamente a segurança alimentar, a renda e especialmente o trabalho das mulheres. Apesar de conviverem com uma das maiores infraestruturas energéticas da África, grande parte desses moradores continua sem acesso à eletricidade, já que a energia historicamente foi destinada sobretudo a centros urbanos, indústrias e projetos de exportação, deixando as comunidades locais com os custos sociais, mas não com os benefícios.

Lukombo conta que os dirigentes do seu país estão sendo manipulados pelas multinacionais que investem nas barragens, mas afirma que conhecer pessoas de outros países que estão enfrentando o mesmo tipo de situação o motiva a buscar alternativas para as comunidades. Ele disse ainda que acompanhou a história da tragédia de Mariana e está no Brasil também para prestar solidariedade aos atingidos daqui. “Queremos participar desse movimento de solidariedade aos que foram afetadas por essa calamidade para avançarmos juntos”, complementou.
Enquanto o barco cruzava a Baía do Guajará, as histórias das pessoas se misturavam às canções. “Era mais que um passeio: era uma travessia simbólica para um novo mundo que nasce do encontro, da partilha e da rebeldia que corre nas veias dos rios e dos povos”, afirma Caitlin.
Integração e solidariedade internacional
Para o MAB, a vivência amazônica sintetizou o espírito do IV Encontro Internacional de Atingidos por Barragens e Crise Climática: reunir povos de diferentes origens, fortalecer laços e projetar uma agenda comum.
“Ao promover esse tipo de atividade, reafirmamos que a luta contra as barragens e a crise climática não é apenas técnica ou ambiental, mas política e humana. Os atingidos de todo o mundo estão mostrando que a solidariedade é a resposta às injustiças impostas pelo capital e pelas corporações”, destacou Jaqueline Damasceno, integrante da coordenação do evento.




O encontro acontece entre os dias 07 e 12 de novembro, em Belém (PA), e reúne movimentos sociais, organizações populares e comunidades atingidas de todo o mundo. O evento é promovido pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e discute as causas estruturais da crise climática, o papel das empresas transnacionais no setor energético e as alternativas construídas a partir dos territórios.
