Análise de conjuntura continental marca segundo dia do IV Encontro Internacional
Representantes da África, Europa e Ásia apresentaram análises críticas sobre os impactos da crise climática e do modelo neoliberal em seus continentes, destacando a resistência dos povos e a necessidade de uma articulação global pela justiça ambiental e energética
Publicado 08/11/2025 - Actualizado 08/11/2025

Dando continuidade à programação do IV Encontro Internacional de Atingidos por Barragens e Crise Climática, atingidos e atingidas dos cinco continentes participaram, na tarde deste sábado (08), da mesa-redonda “Situação dos Continentes”, que teve como foco a análise de conjuntura política, econômica e ambiental em diferentes regiões do mundo.
O debate contou com a participação de Geoffrey Kamese, da Biovision (Uganda), que apresentou o panorama do continente africano; Irene Pijuan, da Aliança contra a Pobreza Energética (Espanha), que analisou a situação na Europa e; Hendro Sangkoyo, da Escola de Estudos Econômicos e da Rede em Defesa da Mineração (JATAM), da Indonésia, que tratou sobre os desafios na Ásia. A mesa foi mediada por Andrea Vides, da Catalunya, e Moisés Borges, integrante da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
Moisés ressaltou a importância do debate como parte do processo de aprofundamento da análise política iniciada no encontro. “A ideia é que essa mesa aprofunde a análise iniciada na conjuntura internacional. Já fizemos uma leitura global, olhando o todo, e agora buscamos compreender como essa realidade interfere em cada continente. Esse é o grande objetivo: afunilar o debate para, depois, extrair uma síntese coletiva da nossa análise de conjuntura”, explicou Moisés.
Também estiveram presentes na mesa de abertura os ministros venezuelanos Clara Fidau, ministra do Poder Popular para os Povos Indígenas da Venezuela e Ricardo Molina, ministro do Poder Popular para o Socialismo da Venezuela. Em sua saudação aos presentes, Clara Fidau, destacou em sua fala que “A Venezuela não é uma ameaça, é esperança”, iniciando sua intervenção com uma saudação em idioma indígena e reafirmando o compromisso de seu país com a defesa dos territórios e da paz.

Ricardo Molina afirmou que participar do encontro foi como “recuperar o espírito” após dias imersos no ambiente oficial da COP30, que descreveu como “cheio de luxo, mas sem alma”. Molina criticou a ausência de representantes populares nas mesas de negociação internacionais e denunciou que as discussões sobre a crise climática são dominadas por empresas transnacionais e governos que tratam o tema como um negócio.
“O presidente Nicolás Maduro orientou a delegação venezuelana a propor a criação de um grande movimento global em defesa da vida, da Mãe Terra e dos direitos humanos. Nosso compromisso é com o ecossocialismo, modelo inspirado nas ideias de Hugo Chávez e Simón Bolívar, baseado na justiça social e no respeito à natureza”.
Ao encerrar, Molina afirmou que “os verdadeiros protagonistas da solução da crise climática são os povos, não o capitalismo”, e que a Venezuela está “de portas abertas” para fortalecer alianças com movimentos e comunidades em luta por um novo modelo de desenvolvimento.
Situação dos continentes

Geoffrey, da organização Biovision, iniciou sua intervenção afirmando que “África é sempre um continente esquecido”. Em sua análise, dividida em três eixos – governança, barragens e mudanças climáticas -, o painelista apresentou um panorama sobre os desafios enfrentados pelos povos africanos. “Digo que a África é um continente esquecido porque, por exemplo, quando se fala de conflitos no mundo hoje, ninguém menciona o continente africano. Fala-se da Faixa de Gaza, da Ucrânia, mas há guerras em curso também em África”, afirmou.
Kamese destacou ainda as crises de governança e os conflitos políticos internos que marcam diversos países. “Na semana passada, vimos um caso em que um líder obteve 97% dos votos e mandou matar mais de 700 jovens que foram às ruas protestar. Mesmo assim, isso não significa que a África está parada. Há uma nova geração disposta a resistir, se afirmar e enfrentar líderes que insistem em permanecer no poder indefinidamente”, ressaltou, citando o exemplo de Camarões, onde o presidente está há quatro décadas no cargo.
Para Geoffrey, os movimentos liderados pela juventude africana são imparáveis. “Estão prontos e dispostos a assumir o bastão da velha geração. Embora existam aspectos negativos, muitos dos processos em curso são positivos. No futuro, veremos a África avançando em direção a conquistas democráticas.”
Kamese também alertou para os impactos das grandes barragens construídas em nome do desenvolvimento energético. Segundo ele, muitos governos veem a hidrelétrica como única alternativa, mas as obras têm provocado deslocamentos em massa, destruição ambiental e perda de modos de vida tradicionais.
“Esses projetos deslocam comunidades inteiras, destroem culturas e empurram povos indígenas e tradicionais para fora de seus territórios. E o mais grave é que muitas dessas barragens já perderam sua utilidade, exigindo processos de descomissionamento caros, pagos com novos empréstimos ao Banco Mundial ou à China”, explicou.
Ao tratar da crise climática, Kamese reforçou que a África é o continente mais afetado pelos impactos do clima, embora seja o que menos contribuiu para o aquecimento global. “Perdemos colheitas, gado e vidas humanas em enchentes e secas severas. E ainda assim, somos os que menos poluímos o planeta. Não estamos pedindo esmolas; estamos exigindo justiça climática”, defendeu.
Para ele, os países responsáveis pela crise climática precisam assumir sua dívida histórica e aumentar o financiamento climático prometido. “Durante anos nos prometeram recursos que nunca chegaram. Agora exigimos que os países desenvolvidos tripliquem o financiamento climático. Só há uma África e só há um planeta. Se destruirmos este mundo, não há outro para onde possamos ir”, concluiu.
Europa

Irene Pijuan, da Aliança contra a Pobreza Energética, afirmou ser “uma honra” e uma “responsabilidade histórica” o fato de poder articular-se com outros continentes, reconhecendo o peso das ações europeias na crise climática. Ela criticou veementemente a posição europeia na chamada “transição energética justa”, apontando o continente de usar a descarbonização como fachada para manter a acumulação de capital e o controle geopolítico.
Pijuan descreveu a atual posição da Europa como incerta no novo ordenamento geopolítico, situando-a “entre dois blocos”: Estados Unidos e o bloco liderado pela China. A sensação, segundo ela, é que a Europa age como em uma disputa esportiva. “Nossa sensação é de que a Europa se encontra um pouco em uma partida de tênis, ali, vendo em que lugar lhe interessa estar para perpetuar seu lugar na Ordem Mundial, não? E sua acumulação de lucro e de capital.”
A liderança enfatizou que o continente europeu hasteou a bandeira da transição justa e da descarbonização, mas carece de minerais críticos e matérias-primas. “A Europa, para liderar a transição, precisa seguir perpetuando o neocolonialismo que vem exercendo de diversas formas nestes últimos 500 anos.”
Essa necessidade de recursos levou à assinatura da Ata de Minerais Críticos, que, na visão da ativista, gera novos ‘tratados de abuso a outros países’, para garantir os materiais que a Europa julga essenciais para sua transição. “Embora o discurso seja verde, a prática do continente aponta para a persistência da dependência fóssil. Enquanto vende a imagem da “Transição Verde” ou do Green New Deal, a Europa financia prospecções de gás fóssil na África e em outras regiões”. Pijuan é categórica ao afirmar que a sustentação econômica europeia ainda depende da energia suja. “O capitalismo fóssil continua sendo o garante do neoliberalismo europeu.”
Além da dependência fóssil, a ativista apontou que a Europa está exportando “falsas soluções”, como a captura de carbono, o hidrogênio e a mercantilização da natureza, reforçando a exploração em outros lugares. “Internamente, eventos recentes (pandemia, Guerra da Ucrânia, e o genocídio na Palestina) levaram à redução de proteções sociais e à instalação de um conceito de segurança energética que se opõe à soberania energética dos povos, justificando a importação de materiais a qualquer preço”.
Irene concluiu que os movimentos sociais europeus enfrentam o desafio da atomização das lutas, mas que vitórias como as alcançadas pelo movimento por moradia no Estado espanhol e na França oferecem um caminho. Ela finalizou seu discurso com um apelo direto à responsabilidade dos ativistas europeus em sua própria terra. “Sabemos que, como Europa, temos a responsabilidade política de não só nos articularmos, mas também de enfrentar as nossas instituições e enfrentar as nossas elites.”
Ásia

Hendro Sangkoyo iniciou sua análise destacando que grande parte do território asiático pode hoje ser descrita como uma verdadeira “terra de refúgio”, onde povos resistem simultaneamente aos efeitos da crise climática e ao avanço das políticas neoliberais. Ele lembrou que a Ásia, antes unificada por antigos impérios, foi fragmentada pelo colonialismo europeu, processo que deixou marcas profundas e ainda define as fronteiras políticas e econômicas da região.
Segundo Hendro, após décadas de turbulência e reestruturação, os países asiáticos enfrentam hoje uma dupla imposição dos regimes neoliberais globais: o negócio da compensação de danos e o negócio da transição energética. “O primeiro, baseado no mercado de créditos de carbono, transforma florestas do Sul Global em garantias financeiras para que grandes poluidores continuem expandindo suas emissões sob o disfarce de sustentabilidade. O segundo, apresentado como “solução verde”, legitima novos ciclos de endividamento e exploração, mantendo a lógica extrativista inaugurada desde o Protocolo de Kyoto, em 1997”, aponta.
Hendro citou ainda o caso da Indonésia, que durante a COP 30, em Belém, promove a venda de créditos de carbono e dezenas de projetos “verdes”, enquanto populações locais seguem pagando o preço da devastação. Ele alertou que o mercado global de energia deve quase dobrar até 2033, com a hidrelétrica ainda ocupando papel central, uma grave ameaça para comunidades de países como Indonésia, Tailândia e Vietnã.
O pesquisador também denunciou a expansão das indústrias de geotermia, agora tratadas como o novo filão da transição energética. Grandes petroleiras e mineradoras estão migrando para esse setor, reproduzindo as mesmas práticas destrutivas da exploração fóssil.
Sangkoyo concluiu defendendo que a resistência dos povos asiáticos já está em curso, articulando alianças com comunidades do Mekong, das Filipinas, do Brasil, dos Andes e até da Toscana, na Itália. Para ele, essa solidariedade transnacional é fundamental diante da crescente militarização do extrativismo, que envolve forças armadas e indústrias bélicas em países como Tailândia, Mianmar e Indonésia. “O que enfrentamos hoje é algo sem precedentes e nossa resposta precisa ser coletiva, articulada e global”, afirmou.
