Política Nacional dos Atingidos segue sem ação concreta do Governo Federal pra sua regulamentação

Movimento cobra fundo de reparação e criação de órgão de Estado para garantir aplicação da PNAB

Após a conquista da PNAB, atingidos passaram a pressionara pela regulamentação da lei; registro da Jornada Nacional de Luta das Mulheres, em Brasília (DF), em junho de 2025. Foto: Anthony Luiz / MAB
Após a conquista da PNAB, atingidos passaram a pressionar pela regulamentação da lei; registro da Jornada Nacional de Luta das Mulheres, em Brasília (DF), em junho de 2025. Foto: Anthony Luiz / MAB

Em dezembro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), após sua aprovação no Congresso. A nova lei representou um marco histórico: pela primeira vez, o Estado brasileiro reconheceu, de forma ampla, as pessoas atingidas por barragens – hidrelétricas, mineradoras, agrícolas ou urbanas – como sujeitos de direito.

Dois anos após sua aprovação, entretanto, a PNAB segue sem regulamentação, sem recursos financeiros assegurados e sem um órgão do Estado que a operacionalize. Para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), principal protagonista da luta pela criação da lei, o cenário é de frustração e alerta. “A aprovação da PNAB foi simbólica, mas sem estrutura e sem regulamentação, ela não entrega nada na prática”, afirma Robson Formica, da coordenação nacional do movimento.

PNAB nasceu de décadas de luta. Foram mais de 30 anos de mobilização de comunidades afetadas por barragens em todo o Brasil, articuladas especialmente pelo MAB. A versão sancionada é fruto do Projeto de Lei 2788/2019, proposto após os crimes socioambientais de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), em Minas Gerais, e articulado no Congresso com apoio de parlamentares e da sociedade civil.

Ao reconhecer legalmente quem é uma pessoa atingida, a PNAB rompeu com a lógica histórica de “negociações caso a caso”, frequentemente marcadas por assimetria de poder entre empresas e comunidades. O texto da lei define como atingidas aquelas pessoas que perdem propriedades, têm suas terras desvalorizadas, sofrem com alterações da qualidade da água ou com perda de renda e trabalho, entre outros critérios. Prevê ainda compensações por danos imateriais e obrigações específicas para empresas em relação a grupos vulnerabilizados: mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência, povos indígenas e comunidades tradicionais.

“Antes da PNAB, não havia sequer uma definição oficial sobre o que é ser um atingido por barragem”, relembra Formica.

A PNAB em 10 pontos

  • Reconhecimento jurídico das pessoas atingidas:
    A PNAB define oficialmente quem são os atingidos por barragens rompidas ou não, acabando com a lógica do “caso a caso”;
  • Tipos de empreendimentos cobertos:
    Abrange barragens de usos diversos: geração de energia elétrica, mineração, abastecimento urbano, irrigação, rejeitos industriais, entre outros;
  • Danos materiais e imateriais reconhecidos:
    Considera perdas de imóveis, renda, produção, água, moradia, vínculos afetivos e culturais. Além de deslocamentos forçados e traumas sociais;
  • Indenização e reassentamento garantidos por lei:
    Assegura direito à indenização integral e reassentamento digno, com infraestrutura e acesso a políticas públicas;
  • Obrigação das empresas responsáveis:
    Estabelece que os empreendedores devem custear programas de reparação e respeito aos direitos humanos das populações atingidas;
  • Participação dos atingidos no processo decisório:
    Garante consulta, informação prévia e participação efetiva das comunidades atingidas nas decisões e na implementação da política;
  • Direitos para grupos vulnerabilizados:
    Obriga ações específicas para mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência, povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e trabalhadores e trabalhadoras dos empreendimentos;
  • Inclusão de populações não removidas fisicamente:
    Reconhece que há atingidos mesmo sem deslocamento, como quem sofre com desvalorização imobiliária, contaminação da água ou perda de trabalho;
  • Compensação pela perda de vínculos territoriais e culturais:
    Prevê compensação por danos imateriais, considerando os laços históricos, culturais e comunitários rompidos;
  • Obrigação de criar mecanismos de transparência e monitoramento:
    Determina que sejam criados instrumentos de controle social, relatórios públicos e comitês com participação das populações atingidas.

A conquista e a espera

A tramitação da PNAB no Congresso foi marcada por intensa mobilização. Em novembro de 2023, centenas de atingidos de diferentes regiões do país ocuparam Brasília, para pressionar o Senado a votar o projeto que estava parado há mais de um ano na Comissão de Serviços e Infraestrutura da Casa.

Após acordos com parlamentares da base e da oposição, o texto foi aprovado por unanimidade no plenário, um marco inédito para uma política voltada a populações historicamente invisibilizadas.

A militante Tainá Vicência, da coordenação do MAB em Altamira (PA), na região do Xingu, esteve em Brasília no dia da votação no Senado, junto com uma caravana de companheiros e companheiras atingidas pela hidrelétrica de Belo Monte.

“Foi uma grande conquista para nós. Uma política que garante reassentamento e indenização para quem é impactado. Foram mais de 30 anos de luta até termos uma lei que ampare os atingidos por barragens”, conta.

A militante Tainá Vicência durante mobilização no Congresso em novembro de 2023 pela aprovação da PNAB. Foto: Acervo pessoal
A militante Tainá Vicência durante mobilização no Congresso, em novembro de 2023, pela aprovação da PNAB. Foto: Acervo pessoal

No entanto, para Tainá, a vitória ainda está incompleta. “Depois da aprovação, teve criação de grupos de trabalho, mas falta vontade política. Se o governo não priorizar a regulamentação, nada muda”.

A regulamentação a que ela se refere diz respeito aos decretos, portarias e normativas que dariam forma concreta à política: definiriam os procedimentos, os critérios, os órgãos responsáveis e os meios para aplicar a lei. Sem isso, faltam mecanismos para implementação da PNAB.

O MAB cobra três medidas centrais:

  1. Regulamentação da PNAB, com participação popular;
  2. Criação de uma estrutura de Estado permanente, nos moldes do Incra ou da Funai;
  3. Constituição de um fundo público de reparação e desenvolvimento.

Atualmente, os atingidos não têm a quem recorrer dentro da estrutura estatal. Enquanto movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) dialogam com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), por exemplo, e o movimento indígena com o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a Funai, os atingidos por barragens seguem sem canal institucional.

Segundo o MAB, há dinheiro disponível, mas falta prioridade política. A base para o fundo de reparação poderia vir de três fontes que já existem e são arrecadadas pela União:

  •  Contribuição pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH): pagamento feito por usinas hidrelétricas com capacidade superior a 50 MW. Em 2024, a parte que cabe ao governo federal somou R$ 344,6 milhões;
  • Royalties de Itaipu Binacional: também pagos à União pela geração de energia elétrica. Em 2024, a arrecadação federal foi de R$ 326,2 milhões;
  • Compensação pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM): royalties pagos por empresas mineradoras. No ano passado, a arrecadação total foi de R$ 7,4 bilhões, dos quais 12% (cerca de R$ 892 milhões) ficaram com a União.

Juntas, essas três fontes somam mais de R$ 1,5 bilhão por ano em arrecadação federal direta. O MAB propõe que uma fração desses recursos seja destinada a políticas públicas voltadas às populações atingidas, inclusive para reparar dívidas históricas com comunidades impactadas há décadas por barragens, como Belo Monte (PA) e Itá (SC).

Acordos políticos não cumpridos

Em resposta às reivindicações das populações atingidas, o governo federal assinou, ainda em 2023, uma carta-compromisso com o MAB. O documento, subscrito por nove ministérios, reconhece a dívida histórica do Estado com os atingidos e se compromete com a regulamentação da PNAB, a criação de um fundo de reparação e a estruturação de um órgão público permanente para essa população. Até hoje, nenhum desses compromissos saiu do papel.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Formica detalha que o MAB firmou acordos políticos com o governo federal em diversos momentos – incluindo durante os diálogos para a repactuação da reparação para os atingidos do Rio Doce – para garantir a regulamentação da PNAB, a criação de um fundo e a definição de uma estrutura estatal. A articulação envolveu a Secretaria-Geral da Presidência da República e o Ministério de Minas e Energia (MME).

No entanto, nada se concretizou. “Fizemos rodadas de reuniões, pactuações, houve promessas de ações modestas. Mas nada foi implementado. O que vemos é desarticulação política e falta de comando”, afirma.

A ausência de avanço é especialmente grave às vésperas de 2026, ano eleitoral, quando o governo federal tende a reduzir sua capacidade de aprovar e implementar medidas complexas.

Reunião entre integrantes do MAB com o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, em março de 2024. Foto: Ricardo Botelho / MME.
Reunião entre integrantes do MAB com o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, em março de 2024. Foto: Ricardo Botelho / MME.

Apesar da centralidade da pauta e da interlocução com diversos ministérios, o presidente Lula nunca recebeu o MAB. “Os ministros citam o nome do presidente, dizem que ele quer avançar. Mas em dois anos não tivemos uma reunião com ele. Precisamos alinhar isso. Se não há interesse, que o governo nos diga”, cobra Formica.

Para o dirigente, o governo corre o risco de desperdiçar uma oportunidade histórica. “A PNAB é uma política inédita, uma das mais avançadas do mundo. O Brasil poderia apresentá-la na COP30, como solução concreta para conflitos sociais e ambientais. Mas parece que o governo não entendeu o potencial disso.”

Com o aumento dos eventos extremos, como enchentes e secas, cresce o número de populações impactadas por obras de contenção, represas, sistemas de abastecimento, projetos de mineração e grandes empreendimentos de infraestrutura.

Para Tainá Vicência, do MAB no Xingu, é justamente por isso que a mobilização deve continuar: “A nossa expectativa é seguir lutando, organizando as comunidades, defendendo o rio, pressionando o governo. A PNAB é uma conquista histórica, mas só vale se sair do papel.”

O Brasil de Fato entrou em contato com a Secretaria Geral da Presidência e com o Ministério de Minas e Energia, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.

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