Política Nacional dos Atingidos segue sem ação concreta do Governo Federal pra sua regulamentação
Movimento cobra fundo de reparação e criação de órgão de Estado para garantir aplicação da PNAB
Publicado 24/10/2025 - Actualizado 30/10/2025

Em dezembro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), após sua aprovação no Congresso. A nova lei representou um marco histórico: pela primeira vez, o Estado brasileiro reconheceu, de forma ampla, as pessoas atingidas por barragens – hidrelétricas, mineradoras, agrícolas ou urbanas – como sujeitos de direito.
Dois anos após sua aprovação, entretanto, a PNAB segue sem regulamentação, sem recursos financeiros assegurados e sem um órgão do Estado que a operacionalize. Para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), principal protagonista da luta pela criação da lei, o cenário é de frustração e alerta. “A aprovação da PNAB foi simbólica, mas sem estrutura e sem regulamentação, ela não entrega nada na prática”, afirma Robson Formica, da coordenação nacional do movimento.
A PNAB nasceu de décadas de luta. Foram mais de 30 anos de mobilização de comunidades afetadas por barragens em todo o Brasil, articuladas especialmente pelo MAB. A versão sancionada é fruto do Projeto de Lei 2788/2019, proposto após os crimes socioambientais de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), em Minas Gerais, e articulado no Congresso com apoio de parlamentares e da sociedade civil.
Ao reconhecer legalmente quem é uma pessoa atingida, a PNAB rompeu com a lógica histórica de “negociações caso a caso”, frequentemente marcadas por assimetria de poder entre empresas e comunidades. O texto da lei define como atingidas aquelas pessoas que perdem propriedades, têm suas terras desvalorizadas, sofrem com alterações da qualidade da água ou com perda de renda e trabalho, entre outros critérios. Prevê ainda compensações por danos imateriais e obrigações específicas para empresas em relação a grupos vulnerabilizados: mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência, povos indígenas e comunidades tradicionais.
“Antes da PNAB, não havia sequer uma definição oficial sobre o que é ser um atingido por barragem”, relembra Formica.
A PNAB em 10 pontos
- Reconhecimento jurídico das pessoas atingidas:
A PNAB define oficialmente quem são os atingidos por barragens rompidas ou não, acabando com a lógica do “caso a caso”; - Tipos de empreendimentos cobertos:
Abrange barragens de usos diversos: geração de energia elétrica, mineração, abastecimento urbano, irrigação, rejeitos industriais, entre outros; - Danos materiais e imateriais reconhecidos:
Considera perdas de imóveis, renda, produção, água, moradia, vínculos afetivos e culturais. Além de deslocamentos forçados e traumas sociais; - Indenização e reassentamento garantidos por lei:
Assegura direito à indenização integral e reassentamento digno, com infraestrutura e acesso a políticas públicas; - Obrigação das empresas responsáveis:
Estabelece que os empreendedores devem custear programas de reparação e respeito aos direitos humanos das populações atingidas; - Participação dos atingidos no processo decisório:
Garante consulta, informação prévia e participação efetiva das comunidades atingidas nas decisões e na implementação da política; - Direitos para grupos vulnerabilizados:
Obriga ações específicas para mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência, povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e trabalhadores e trabalhadoras dos empreendimentos; - Inclusão de populações não removidas fisicamente:
Reconhece que há atingidos mesmo sem deslocamento, como quem sofre com desvalorização imobiliária, contaminação da água ou perda de trabalho; - Compensação pela perda de vínculos territoriais e culturais:
Prevê compensação por danos imateriais, considerando os laços históricos, culturais e comunitários rompidos; - Obrigação de criar mecanismos de transparência e monitoramento:
Determina que sejam criados instrumentos de controle social, relatórios públicos e comitês com participação das populações atingidas.
A conquista e a espera
A tramitação da PNAB no Congresso foi marcada por intensa mobilização. Em novembro de 2023, centenas de atingidos de diferentes regiões do país ocuparam Brasília, para pressionar o Senado a votar o projeto que estava parado há mais de um ano na Comissão de Serviços e Infraestrutura da Casa.
Após acordos com parlamentares da base e da oposição, o texto foi aprovado por unanimidade no plenário, um marco inédito para uma política voltada a populações historicamente invisibilizadas.
A militante Tainá Vicência, da coordenação do MAB em Altamira (PA), na região do Xingu, esteve em Brasília no dia da votação no Senado, junto com uma caravana de companheiros e companheiras atingidas pela hidrelétrica de Belo Monte.
“Foi uma grande conquista para nós. Uma política que garante reassentamento e indenização para quem é impactado. Foram mais de 30 anos de luta até termos uma lei que ampare os atingidos por barragens”, conta.

No entanto, para Tainá, a vitória ainda está incompleta. “Depois da aprovação, teve criação de grupos de trabalho, mas falta vontade política. Se o governo não priorizar a regulamentação, nada muda”.
A regulamentação a que ela se refere diz respeito aos decretos, portarias e normativas que dariam forma concreta à política: definiriam os procedimentos, os critérios, os órgãos responsáveis e os meios para aplicar a lei. Sem isso, faltam mecanismos para implementação da PNAB.
O MAB cobra três medidas centrais:
- Regulamentação da PNAB, com participação popular;
- Criação de uma estrutura de Estado permanente, nos moldes do Incra ou da Funai;
- Constituição de um fundo público de reparação e desenvolvimento.
Atualmente, os atingidos não têm a quem recorrer dentro da estrutura estatal. Enquanto movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) dialogam com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), por exemplo, e o movimento indígena com o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a Funai, os atingidos por barragens seguem sem canal institucional.
Segundo o MAB, há dinheiro disponível, mas falta prioridade política. A base para o fundo de reparação poderia vir de três fontes que já existem e são arrecadadas pela União:
- Contribuição pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH): pagamento feito por usinas hidrelétricas com capacidade superior a 50 MW. Em 2024, a parte que cabe ao governo federal somou R$ 344,6 milhões;
- Royalties de Itaipu Binacional: também pagos à União pela geração de energia elétrica. Em 2024, a arrecadação federal foi de R$ 326,2 milhões;
- Compensação pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM): royalties pagos por empresas mineradoras. No ano passado, a arrecadação total foi de R$ 7,4 bilhões, dos quais 12% (cerca de R$ 892 milhões) ficaram com a União.
Juntas, essas três fontes somam mais de R$ 1,5 bilhão por ano em arrecadação federal direta. O MAB propõe que uma fração desses recursos seja destinada a políticas públicas voltadas às populações atingidas, inclusive para reparar dívidas históricas com comunidades impactadas há décadas por barragens, como Belo Monte (PA) e Itá (SC).
Acordos políticos não cumpridos
Em resposta às reivindicações das populações atingidas, o governo federal assinou, ainda em 2023, uma carta-compromisso com o MAB. O documento, subscrito por nove ministérios, reconhece a dívida histórica do Estado com os atingidos e se compromete com a regulamentação da PNAB, a criação de um fundo de reparação e a estruturação de um órgão público permanente para essa população. Até hoje, nenhum desses compromissos saiu do papel.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Formica detalha que o MAB firmou acordos políticos com o governo federal em diversos momentos – incluindo durante os diálogos para a repactuação da reparação para os atingidos do Rio Doce – para garantir a regulamentação da PNAB, a criação de um fundo e a definição de uma estrutura estatal. A articulação envolveu a Secretaria-Geral da Presidência da República e o Ministério de Minas e Energia (MME).
No entanto, nada se concretizou. “Fizemos rodadas de reuniões, pactuações, houve promessas de ações modestas. Mas nada foi implementado. O que vemos é desarticulação política e falta de comando”, afirma.
A ausência de avanço é especialmente grave às vésperas de 2026, ano eleitoral, quando o governo federal tende a reduzir sua capacidade de aprovar e implementar medidas complexas.

Apesar da centralidade da pauta e da interlocução com diversos ministérios, o presidente Lula nunca recebeu o MAB. “Os ministros citam o nome do presidente, dizem que ele quer avançar. Mas em dois anos não tivemos uma reunião com ele. Precisamos alinhar isso. Se não há interesse, que o governo nos diga”, cobra Formica.
Para o dirigente, o governo corre o risco de desperdiçar uma oportunidade histórica. “A PNAB é uma política inédita, uma das mais avançadas do mundo. O Brasil poderia apresentá-la na COP30, como solução concreta para conflitos sociais e ambientais. Mas parece que o governo não entendeu o potencial disso.”
Com o aumento dos eventos extremos, como enchentes e secas, cresce o número de populações impactadas por obras de contenção, represas, sistemas de abastecimento, projetos de mineração e grandes empreendimentos de infraestrutura.
Para Tainá Vicência, do MAB no Xingu, é justamente por isso que a mobilização deve continuar: “A nossa expectativa é seguir lutando, organizando as comunidades, defendendo o rio, pressionando o governo. A PNAB é uma conquista histórica, mas só vale se sair do papel.”
O Brasil de Fato entrou em contato com a Secretaria Geral da Presidência e com o Ministério de Minas e Energia, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.
