NOTA | De Allende a Albanese: os legados do colonialismo, do imperialismo e da luta para controlar as corporações

Cinco décadas depois de Allende, a ONU alerta: o poder corporativo global segue alimentando guerras, ocupações e violações de direitos humanos

Foto: Agência de Informação e Notícias Palestina (Wafa)

Em 1972, Salvador Allende compareceu à Assembleia Geral das Nações Unidas e fez uma dura crítica ao poder das grandes empresas transnacionais (ETNs). Ele alertou sobre um mundo em que essas entidades ofuscavam os governos soberanos, o imperialismo econômico substituía o governo democrático e o destino das nações dependia dos balanços financeiros de acionistas distantes. Seu discurso, proferido pouco antes de sua derrubada em um golpe de Estado apoiado pelos Estados Unidos, foi uma declaração profética de resistência à crescente onda de neoliberalismo e hegemonia corporativa global.

Hoje, mais de 50 anos depois, outra voz ressoa nos corredores da ONU. A Relatora Especial das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados, Francesca Albanese, publicou um relatório histórico que traça a trajetória de uma “economia de ocupação” para uma “economia de genocídio”. Nessa avaliação ousada, Albanese aponta o fortalecimento dos interesses econômicos, tanto estatais quanto corporativos, que permitem as práticas ilegais do regime israelense, incluindo seu vasto complexo militar-industrial e suas redes econômicas extrativistas. No entanto, o enfoque da Relatora, limitado aos territórios ocupados, só pode sugerir as forças históricas e sistêmicas mais amplas que estão em jogo. É precisamente a falta de regulamentação da atividade transnacional das empresas ao abrigo do direito internacional que consolidou uma estrutura global de incentivos à impunidade. Desde os fabricantes de armas que fornecem bombas até aos fornecedores de combustível para aviões que permitem os ataques aéreos, as ETNs continuam a beneficiar e a perpetuar a expropriação violenta e a dominação estrutural em Gaza.

A situação nos territórios palestinos ocupados revela não apenas uma catástrofe humanitária, mas uma desordem sistêmica global enraizada na impunidade, na expropriação racializada e na especulação corporativa. A violência que se desenvolve em Gaza, na Cisjordânia e em toda a Palestina histórica não é apenas política e militar, mas também econômica e sistêmica.

No centro desse sistema está uma economia global que recompensa os conflitos. A ocupação não se sustenta no vácuo; as empresas que fornecem armas, tecnologias de vigilância e infraestrutura crítica servem para apoiá-la. A arquitetura do apartheid e do deslocamento opera em conjunto com os motores da indústria, desde a extração e revenda de recursos naturais até a prestação de serviços logísticos e tecnológicos. Onde outros veem devastação, as empresas veem oportunidades. Onde os civis veem bombas caindo, as salas de reunião veem os mercados crescendo.

Essa dinâmica não é exclusiva da Palestina. Ela reflete uma longa e violenta história de sistemas econômicos construídos sobre a dominação colonial e o capitalismo racista. A persistência dos modelos coloniais de colonização na era moderna, revestidos pela linguagem da “segurança” e do “desenvolvimento”, ou manifestados abertamente no genocídio que o povo palestino enfrenta hoje, revela o poder duradouro do capital para remodelar geografias e extinguir os direitos das pessoas. O imperialismo não funciona apenas por meio da conquista brutal, mas também por meio de lacunas legais, acordos comerciais opacos e lacunas normativas que protegem as ETNs da prestação de contas, mesmo quando permitem e se beneficiam de crimes de guerra e opressão sistêmica.

O direito internacional, em sua configuração atual, não está preparado para responder. Os marcos existentes para regular a conduta das ETNs continuam sendo autorregulatórios, voluntários e repletos de exceções, especialmente nos setores de defesa e extração. Embora alguns desafios jurídicos nacionais tenham oferecido soluções parciais, a vasta maquinaria de cumplicidade econômica permanece intacta, sem controle e perigosamente normalizada, com investigações lentas, sanções raras e uma flagrante falta de vontade política.

No entanto, em meio a essas realidades sombrias, há vozes que se levantam. A coragem daqueles que enfrentam o poder, seja nos corredores da ONU, nos movimentos de base ou nas comunidades sitiadas, exige reconhecimento e solidariedade. Eles nos lembram que a resistência à impunidade deve ser tanto de princípios quanto global, conectando as lutas além das fronteiras.

Atualmente, o passo mais concreto para combater a impunidade corporativa no âmbito jurídico internacional reside na elaboração de um tratado eficaz e juridicamente vinculativo para regulamentar as empresas transnacionais no direito internacional, cujas negociações tiveram início após a adoção da Resolução 26/9 do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em 2014. Nesse processo, é essencial um compromisso firme por parte dos Estados e dos atores da sociedade civil que defendem mudanças estruturais significativas na ordem econômica mundial e na arquitetura da impunidade. A Campanha Global para Reivindicar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade está firmemente comprometida com o desenvolvimento desse instrumento jurídico vinculativo. Este instrumento visa estabelecer as bases para que as empresas transnacionais prestem contas pelas violações dos direitos humanos, garantindo assim o acesso à reparação e à justiça integral para as comunidades afetadas.

A soberania dos povos, a dignidade e a justiça não podem coexistir com a impunidade corporativa. O desafio que enfrentamos não é apenas documentar as violações, mas também interromper os sistemas que as tornam lucrativas. Para isso, devemos recuperar a linguagem do direito, as ferramentas da economia e os princípios da solidariedade internacional, não como abstrações, mas como armas na luta pela libertação.

A história nos mostrou o que acontece quando não agimos. A questão agora é se finalmente ouviremos.

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