ENCHENTES RS | À espera da chave: atingidos ainda aguardam um novo lar um ano após a tragédia

Ao todo, o governo federal já investiu aproximadamente R$ 3,48 bilhões em programas de moradia no Rio Grande do Sul, mas milhares de atingidos ainda aguardam suas casas definitivas; ao todo, 101 mil casas foram destruídas em 2024

Casas pré-fabricadas em Arroio do Meio, no Vale do Taquari, Rio Grande do Sul. Foto: Francisco Proner

Aos 65 anos, Diomar Andrade faz arranjos com flores secas de chá de macela e cultiva temperos em pequenos vasos em frente à casa pré-fabricada de 27 m² em que reside — no que parece uma tentativa de quebrar a impessoalidade da moradia temporária onde foi realocado. O trabalho com o pequeno canteiro o ajuda a lidar com a ansiedade enquanto aguarda por um lar definitivo, em Arroio do Meio, na região central do Rio Grande do Sul.

A cidade, com cerca de 22 mil habitantes, assim como outros municípios do Vale do Taquari, ainda se recuperava da grande enchente de setembro de 2023 quando foi novamente atingida pela catástrofe climática de maio de 2024, que ampliou o número de desabrigados.

Os 40 módulos habitacionais, comparados pelos moradores a containers, são feitos de aço galvanizado e concreto e foram instalados em um terreno adaptado, onde muitos outros atingidos seguem sonhando em voltar a viver em uma casa de verdade.

“Eu só quero um lugar seguro, porque, toda vez que troveja, fecho os olhos e parece que estou vendo o rio vir de novo. Fico lembrando da gente fugindo e levando o que podia. No fim, tivemos que abandonar tudo para não morrer. Agora eu só quero uma casa com um pedacinho de terra, igual eu tinha, porque trabalhei muitos anos na roça e me acostumei com isso. Eu gosto de plantar flores, folhagens, verduras, tudo, ter um animalzinho. Mexer com a terra é a melhor coisa que tem”, reflete Andrade na “varanda” de brita do container.

A retomada do curso da vida depois que as águas baixaram

Quase um ano após as enchentes de maio de 2024 — uma das maiores tragédias climáticas do país —, milhares de pessoas ainda aguardam as casas que devem ser adquiridas pelo governo estadual, com recursos federais, para recomeçarem suas vidas. No caso de Andrade, há a promessa de que receberá uma casa pronta em um novo bairro de Arroio do Meio, mas ele teme que o espaço não tenha um quintal, como tanto deseja.

Tanto o governo federal quanto o estadual asseguram que todas as pessoas cadastradas nos programas de moradia lançados pelo poder público após a tragédia serão contempladas. As prefeituras são responsáveis por selecionar as famílias beneficiadas. A ansiedade, no entanto, cresce diante da falta de informações claras sobre os prazos e critérios para a reparação para quem perdeu tudo.

A moradia é o ponto mais crítico neste momento de reconstrução. A tragédia — causada pela combinação dos efeitos do El Niño com as mudanças climáticas induzidas pelo ser humano — atingiu 90% do território estadual, deixando mais de meio milhão de pessoas desabrigadas. Algumas conseguiram retornar e limpar suas casas tomadas pela lama, mas cerca de 100 mil residências foram destruídas em 478 dos 497 municípios gaúchos, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). No total, o desastre impactou mais de 2,3 milhões de pessoas, desalojando mais de 570 mil.

Nas semanas seguintes à enchente, quase 80 mil pessoas recorreram a abrigos temporários em escolas, igrejas e estádios. Hoje, os atingidos vivem realidades diversas: alguns ainda aguardam um abrigo temporário; outros estão em imóveis alugados com o auxílio do aluguel social (pago pelos municípios); e há quem permaneça em abrigos comunitários. Em comum, os atingidos — que se encontram em diferentes situações — todos anseiam por ter um novo endereço permanente, onde possam cuidar de suas famílias, criar novas memórias, plantar novas flores e cultivar a esperança de um futuro mais digno e seguro. Mas a lentidão agrava problemas de saúde mental entre os moradores.

De acordo com dados da plataforma oficial do governo do estado, ainda existem nove abrigos em funcionamento, onde vivem 396 pessoas (em Canoas, Porto Alegre, General Câmara, Rio Pardo, Arroio do Tigre, Barão, Pelotas e Sobradinho). Segundo resolução estadual, o prazo para o fechamento desses espaços termina em 30 de junho de 2025.

Noemia da Rosa, 65 anos, Reni da Rosa, 66 anos casados há 35 anos, moram em casas provisórias em Arroio do Meio, no Vale do Taquari, Rio Grande do Sul. Foto: Francisco Proner

Quando os abrigos são desativados, os atingidos são realocados em moradias temporárias, como a de Andrade. No entanto, das 625 casas prometidas, 263 ainda não haviam sido entregues até a apuração desta reportagem.

Lar definitivo

Em relação às casas permanentes, o principal programa habitacional para os atingidos é o Compra Assistida, iniciativa do governo federal que permite a aquisição de imóveis prontos, no valor de até R$ 200 mil, para quem perdeu a casa na enchente. Até agora, quase 1,5 mil pessoas foram contempladas. Além desse, há também o programa Minha Casa, Minha Vida – Fundo de Arrendamento Residencial, fundo público criado para financiar programas de habitação do governo federal, e também o Minha Casa, Minha Vida Rural. Confira neste link as respostas completas do estado.

De acordo com informações da Casa de Governo RS (estrutura que reúne órgãos federais para atuarem de maneira coordenada nas ações de reconstrução do estado), a meta é adquirir quase 20 mil unidades para fins de reparação pós-catástrofe, sendo que já foram empenhados R$ 3,48 bilhões para a construção de 17,5 mil moradias. Até 10 de abril, as prefeituras haviam conseguido a aprovação da construção de 9.366 unidades habitacionais para famílias que tiveram suas residências comprovadamente destruídas ou interditadas.

Segundo o governo federal, se houver necessidade de mais recursos, há garantia do presidente Lula de que eles serão repassados, para que todas as pessoas que tiverem direito recebam suas casas.

Além dos programas federais, há o programa estadual A Casa é Sua – Calamidade, que prevê a construção de moradias com 44 m² de área total. Com os terrenos preparados pelas prefeituras, o prazo de entrega das casas é de até 120 dias. No primeiro lote, estão previstas 422 moradias em 11 municípios, com investimento de R$ 58,7 milhões.

Apesar dos recursos expressivos, boa parte das famílias ainda está sem perspectivas, seja por não se enquadrarem nos critérios socioeconômicos dos programas — que levam em consideração uma realidade econômica anterior à tragédia —, por falta de clareza sobre os critérios de seleção ou por não terem ainda sido incluídas nas listas de atingidos preparadas pelas prefeituras. Diante dessa situação, algumas acabam retornando aos imóveis com danos estruturais ou situados em áreas de risco. Vale destacar que, atualmente, não há uma política específica para recuperação de casas danificadas, mas o governo estadual afirma que está em desenvolvimento um programa com esse objetivo, ainda sem data para lançamento.

Juraci Padilha dos Santos, antiga moradora e militante do MAB, revisita o bairro do Marmitt em Estrela. Em muitas cidades, bairros inteiros foram varridos pela enchente. Por isso, o MAB defende que o governo invista em reassentamentos onde moradores possam refazer seus vínculos comunitários. Foto: Francisco Proner

Alexania Rossato é integrante da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), movimento que também tem atuado no apoio aos atingidos pelas enchentes no Rio Grande do Sul desde 2023. Segundo ela, catástrofes como essas evidenciam a importância da presença forte do Estado na prevenção e reparação dos territórios afetados pelos extremos climáticos.

“Os investimentos feitos até agora são altos, o que é importante, mas os principais problemas das famílias atingidas não foram resolvidos, porque, aparentemente, não são uma prioridade dos organismos de Estado. Estamos chegando a maio de 2025 e a demanda mais urgente no pós-catástrofe, que é a questão da moradia, está longe de ter uma solução adequada e definitiva”, afirma a dirigente.

Ela explica que, para o MAB, a prioridade deveria ser a construção de assentamentos em áreas seguras, que garantam a manutenção dos vínculos comunitários dos moradores. “Mas milhares de famílias nem sequer foram reconhecidas como atingidas. E, mesmo para quem foi reconhecido, nem as temporárias foram todas instaladas”, destaca.

Por isso, o MAB tem cobrado do poder público não apenas a compra de casas de forma isolada, mas a reconstrução das comunidades, de bairros inteiros, com sistemas de proteção e toda a infraestrutura necessária para a retomada da vida — como equipamentos de saúde e educação, por exemplo. “Também defendemos o reconhecimento pleno de todas as famílias atingidas, as reformas das moradias e estruturas comunitárias danificadas e a regularização das casas de moradores que não conseguem acessar os programas de reparação, por conta da falta de documentos”, afirma Alexania.

Rossato também critica o custo dos containers usados para as casas temporárias. “Dividindo o valor total investido pelo número de módulos, entendemos que cada unidade custou R$ 133 mil. É um custo muito alto, considerando a estrutura oferecida. Com esse montante, seria possível construir casas permanentes em assentamentos estruturados, oferecendo dignidade e a chance real de recomeço ao povo”, avalia.

Michele de souza, 22 anos e sua sobrinha Yohana rafaela, 4 anos em meio às casas provisórias, em Arroio do Meio. Foto: Francisco Proner

Delorges Eich, que vive em uma dessas casas provisórias em Arroio do Meio, reconhece a importância das casas provisórias para quem não tinha outra opção, mas relata dificuldades como o calor excessivo, quedas frequentes de energia, transbordamento do esgoto e o isolamento da vila, que fica longe do centro e de linhas de transporte público. Por isso, ele sonha com a chave de uma casa definitiva, mas segue sem qualquer informação sobre o prazo de realocação ou o endereço onde poderá viver.

Em relação ao prazo da entrega das casas permanentes, o governo do estado explica que, por meio de doações, já foram montadas 24 casas definitivas no município de Muçum, através da parceria com o grupo União BR, mas as primeiras entregas de casas definitivas do programa A Casa é Sua – Calamidade devem ocorrer no mês de maio.

Em relação às casas permanentes, o principal programa habitacional para os atingidos é o Compra Assistida, iniciativa do governo federal que permite a aquisição de imóveis prontos, no valor de até R$ 200 mil, para quem perdeu a casa na enchente. Até agora, quase 1,5 mil pessoas foram contempladas. Além desse, há também o programa Minha Casa, Minha Vida – Fundo de Arrendamento Residencial, fundo público criado para financiar programas de habitação do governo federal, e também o Minha Casa, Minha Vida Rural.

De acordo com informações da Casa de Governo RS (estrutura que reúne órgãos federais para atuarem de maneira coordenada nas ações de reconstrução do estado), a meta é adquirir quase 20 mil unidades para fins de reparação pós-catástrofe, sendo que já foram empenhados R$ 3,48 bilhões para a construção de 17,5 mil moradias. Até 10 de abril, as prefeituras haviam conseguido a aprovação da construção de 9.366 unidades habitacionais para famílias que tiveram suas residências comprovadamente destruídas ou interditadas.

Segundo o governo federal, se houver necessidade de mais recursos, há garantia do presidente Lula de que eles serão repassados, para que todas as pessoas que tiverem direito recebam suas casas.

Além dos programas federais, há o programa estadual A Casa é Sua – Calamidade, que prevê a construção de moradias com 44 m² de área total. Com os terrenos preparados pelas prefeituras, o prazo de entrega das casas é de até 120 dias. No primeiro lote, estão previstas 422 moradias em 11 municípios, com investimento de R$ 58,7 milhões.

Casa destruída em Lajeado, no Vale do Taquari. Foto: Francisco Proner

Apesar dos recursos expressivos, boa parte das famílias ainda está sem perspectivas, seja por não se enquadrarem nos critérios socioeconômicos dos programas — que levam em consideração uma realidade econômica anterior à tragédia —, por falta de clareza sobre os critérios de seleção ou por não terem ainda sido incluídas nas listas de atingidos preparadas pelas prefeituras. Diante dessa situação, algumas acabam retornando aos imóveis com danos estruturais ou situados em áreas de risco. Vale destacar que, atualmente, não há uma política específica para recuperação de casas danificadas, mas o governo estadual afirma que está em desenvolvimento um programa com esse objetivo, ainda sem data para lançamento.

Alexania Rossato é integrante da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), movimento que também tem atuado no apoio aos atingidos pelas enchentes no Rio Grande do Sul desde 2023. Segundo ela, catástrofes como essas evidenciam a importância da presença forte do Estado na prevenção e reparação dos territórios afetados pelos extremos climáticos.

“Os investimentos feitos até agora são altos, o que é importante, mas os principais problemas das famílias atingidas não foram resolvidos, porque, aparentemente, não são uma prioridade dos organismos de Estado. Estamos chegando a maio de 2025 e a demanda mais urgente no pós-catástrofe, que é a questão da moradia, está longe de ter uma solução adequada e definitiva”, afirma a dirigente.

Ela explica que, para o MAB, a prioridade deveria ser a construção de assentamentos em áreas seguras, que garantam a manutenção dos vínculos comunitários e a reforma das casas danificadas. “Mas milhares de famílias nem sequer foram reconhecidas como atingidas. Nem sequer as casas temporárias foram todas instaladas”, destaca.

Por isso, o MAB tem cobrado do poder público não apenas a compra de casas de forma isolada, “mas a reconstrução das comunidades, de bairros inteiros, com sistemas de proteção e toda a infraestrutura necessária para a retomada da vida — como equipamentos de saúde e educação, por exemplo. Também defendemos o reconhecimento pleno de todas as famílias atingidas, as reformas das moradias e estruturas comunitárias danificadas e a desburocratização do acesso aos programas de moradia.”

Rossato também critica o custo dos containers usados para as casas temporárias. “Dividindo o valor total investido pelo número de módulos, entendemos que cada unidade custou R$ 133 mil. É um valor muito alto, considerando a estrutura oferecida. Com esse montante, seria possível construir casas permanentes em assentamentos estruturados, oferecendo dignidade e a chance real de recomeço ao povo”, avalia.

Delorges Eich, que vive em uma dessas casas provisórias em Arroio do Meio, reconhece a importância das casas provisórias para quem não tinha outra opção, mas relata dificuldades como o calor excessivo, quedas frequentes de energia, transbordamento do esgoto e o isolamento da vila, que fica longe do centro e de linhas de transporte público. Por isso, ele sonha com a chave de uma casa definitiva, mas segue sem qualquer informação sobre o prazo de realocação ou o endereço onde poderá viver.

Em relação ao prazo da entrega das casas permanentes, o governo do estado explica que, por meio de doações, já foram montadas 24 casas definitivas no município de Muçum, através da parceria com o grupo União BR, mas as primeiras entregas de casas definitivas do programa A Casa é Sua – Calamidade devem ocorrer no mês de maio.

Bairro Sarandi: atingidos são ameaçados de despejo

Morador reforma a frente de sua casa próximo de escobros de moradias destruídas no bairro da Vila Dique, no bairro Sarandi, de Porto Alegre. Atingidos consideram que demoliões no bairro são forma de intimidar moradores que ainda não deixaram suas casas. Foto: Francisco Proner

No bairro Sarandi, em Porto Alegre, a situação dos atingidos é marcada por tensão, pois famílias que moram próximas a um dique rompido nas cheias de 2024 enfrentam ameaças de despejo. A prefeitura afirma que precisa realocar os moradores para reforçar e elevar o dique, prevenindo futuros desastres.

O problema é que muitos ainda não conseguiram garantir outra moradia e temem deixar suas casas, sem perspectiva de outra casa definitiva. É o caso de Mariane Friedrich, moradora da Rua Aderbal, onde a prefeitura já iniciou a demolição das residências desocupadas. Ela considera a ação uma forma de intimidação que aumenta o sofrimento dos que ainda resistem no local. “Você imagina o sentimento de quem acorda com casas sendo destruídas ao lado da sua e não tem pra onde ir?”, questiona.

Junto com suas vizinhas, Friedrich segue lutando por seus direitos. No último mês, a Justiça negou pedidos da prefeitura para a remoção imediata de 25 famílias e suspendeu as obras, mas o impasse continua, com possibilidade de novas ações judiciais.

Carmen Goes, Rayanne Goes e Mariane Friedrich em frente à casa de Goes e escombros de demolição no bairro do Sarandi, em Porto Alegre. Famílias lutam na justiça contra pedido de despejo da Prefeitura, pois querem sair de suas casas quando tiverem garantida uma nova moradia. Foto: Francisco Proner

“Do lado das nossas casas, outras moradias de vizinhos queridos já foram demolidas. Temos crianças, temos idosos, então a situação é muito delicada. Estamos sendo colocadas contra o bairro inteiro, como se fôssemos empecilhos para as obras de segurança. Mas a verdade é que não nos recusamos a sair. Só queremos sair com dignidade, com a chave de uma nova casa na mão”, afirma a atingida.

O maior desafio neste momento, segundo Carmem Góes, que vive na mesma situação, é encontrar um imóvel dentro do valor estipulado pelo programa Compra Assistida. Ela já está habilitada no programa, mas enfrenta dificuldades para comprar uma casa adequada para a filha Rayana, que é Pessoa com Deficiência (PCD) e usa cadeira de rodas.

Carmen Goes e Rayanne Goes alegam ter dificuldades para encontrar casa com acessibilidade para PCD, com valor estipulado pelo Programa Compra Assistida. Foto: Francisco Proner

“A maioria dos imóveis disponíveis está em prédios sem acessibilidade, e as casas que visitamos não têm sequer um banheiro que comporte a cadeira. Além disso, ela faz faculdade e precisa morar em um bairro com transporte público acessível para continuar o curso de Sistemas de Informação”, relata.

Carmem também critica a proposta da prefeitura de realocar temporariamente as famílias para casas de parentes, com auxílio de R$ 1 mil mensais do Programa Estadia Solidária. “Queremos sair da nossa casa direto para uma casa própria, não para um aluguel temporário”, afirma.

Evacuação das Ilhas de Porto Alegre

Outro ponto crítico é a possível evacuação das ilhas do Rio Guaíba, na zona norte da capital, onde vivem cerca de 8 mil pessoas. O prefeito Sebastião Melo (MDB) declarou à CNN que pretende usar “todos os instrumentos possíveis” para retirar moradores de cinco ilhas consideradas de alto risco.

Na ilha do Marinheiro, Ivonete da Silva Lemos, que trabalha com reciclagem, diz estar desesperada para deixar o local. “Desde a enchente de novembro, tenho crises de ansiedade e não consigo sair para trabalhar. Vivo com o Bolsa Família, mas não tenho para onde ir”, desabafa. Contemplada no Compra Assistida, ela também não encontrou ainda um imóvel dentro das regras. “Mesmo quando achamos algo, o dono aumenta o preço ou desiste por causa da demora da Caixa para liberar o pagamento”, relata. Desde 2023, ela mora em uma casa cedida por amigos, mas foi informada de que precisará sair, pois o proprietário necessita entregar o imóvel ao governo para obter uma nova moradia.

Vidas re-inundadas no Vale do Taquari

No Vale do Taquari, famílias que já haviam sido atingidas pelas enchentes de 2023 e foram novamente impactadas em 2024, tiveram que arcar com reformas por conta própria. É o caso de Érico Grohel e Ivanir Rodrigues, de Lajeado. A casa de madeira onde viveram por 40 anos, no bairro Conservas, foi fortemente danificada pelas águas, mas não caiu, o que gera dúvidas se eles têm direito a uma nova moradia. Com ajuda da família, Grohel – que já trabalhou como marceneiro e pedreiro – reconstruiu praticamente tudo sozinho. A obra está no final e o plano é voltar a morar na casa em maio.

Além da casa, o casal perdeu móveis, eletrodomésticos e documentos. Durante a enchente de 2024, estavam em um imóvel alugado com auxílio do aluguel social e não foram atingidos, mas temem que o benefício possa ser interrompido em breve e têm muitas dúvidas sobre o futuro. Mesmo após a reconstrução da casa, com a frequência das enchentes, cada vez mais intensas, o novo plano diretor da cidade pode obrigar a evacuação de todo o bairro.

Rodrigues, de 57 anos, quer sair do local: “Já estamos velhos, não aguento mais viver com medo. Toda vez que o rio sobe, temos que tirar tudo de casa, levar até uma parte alta, cobrir com lona e esperar a chuva passar.”

Ivanir Rodrigues do Nascimento e Erico Grohel, perderam sua casa desde a enchente de 2023, em Lajeado. Foto: Francisco Proner

Érico, por outro lado, gentilmente discorda da esposa, porque resiste à ideia de sair da casa reconstruída com tanto esforço, onde mantém seu barco, redes de pesca, filhos, netos e os vizinhos com quem convive há décadas. Cada parede foi feita com madeira reaproveitada, vitrais de uma antiga casa e outros materiais de demolição. Ele também ganhou R$ 10.000 de um empresário e fez empréstimo para reconstruir o lar. Enquanto pinta de verde as paredes do quarto da casa com vista para um banhado (espécie de pântano coberto de vegetação), ele conta que torce para que a água não volte a transbordar.

O que Érico e Ivanir concordam é que, se houver reassentamento dos moradores, ele deve garantir o mínimo de dignidade: quintal, espaço, proximidade com a rede de apoio e vizinhança conhecida. “Se for pra sair, tem que ser pra uma casa boa. Aqui eu tenho meu ‘caíco’ (uma pequena embarcação de metal), o reboque, as redes. Sou pescador profissional, tenho os materiais e temos os cachorros também, então precisamos de espaço”, explica Érico. A insegurança do casal reflete a falta de informações claras sobre quais áreas serão desocupadas, quem terá direito às novas moradias e quando isso acontecerá.

Ivanir e Érico reconstruíram com recursos próprios e madeira de demolição sua casa no bairro Conservas, em Lajeado, mas há o receio de que a Prefeitura determine a evacuação da área. Foto: Francisco Proner


Reparação em Lajeado

A enchente de 2024 atingiu cerca de 16% do território de Lajeado e danificou aproximadamente 2.700 imóveis, incluindo residências, comércios e indústrias. Cerca de 450 casas foram condenadas ou demolidas.

Segundo a prefeitura, o município assegura o pagamento do Aluguel Social Calamidade para as famílias que perderam suas moradias e ainda aguardam a entrega das casas definitivas. Atualmente, são 500 benefícios mensais ativos. Estão previstas mais de 700 unidades habitacionais por meio de programas estaduais, federais e de organizações não governamentais, mas até agora apenas seis moradias foram entregues, todas por uma ONG.

A gestão municipal também contratou um estudo da Universidade Univates para revisar o planejamento urbano diante das emergências climáticas. Enquanto o estudo não é concluído, áreas com maiores danos já foram mapeadas e zonas consideradas inabitáveis foram pré-definidas. No entanto, moradores alegam que não têm acesso a essas informações.

Confira as respostas completas da Prefeitura neste link.

Moradia digna como prioridade

Diante da complexidade do cenário habitacional no estado, o MAB reforça a necessidade da criação de políticas públicas de reassentamento voltadas especialmente às populações mais vulneráveis. O objetivo é permitir a reconstrução dos vínculos com os territórios, as famílias e as comunidades, garantindo condições de vida semelhantes às que existiam antes da tragédia.

“Embora o governo estadual tenha criado programas habitacionais após a enchente, há excesso de burocracia e dificuldades de acesso, muitas vezes desconsiderando as reais necessidades das famílias — como renda atual, vínculos sociais e proximidade do trabalho. Além disso, a ausência de um critério único para definir quem é considerado atingido dificulta o acesso à reparação. Não pode ser a vontade de um prefeito que determine quem tem ou não esse direito”, alerta Alexania Rossato.

Reportagem realizada em parceria entre o Brasil de Fato e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)


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