Interesses minerários e políticos colocam em risco importante área ambiental do Vale do Jequitinhonha

Projeto de lei propõe redução de área de proteção ambiental em Araçuaí e levanta suspeitas de favorecimento a grandes mineradoras

Audiência Pública realizada com a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Foto: Luiz Rocha.
Audiência Pública realizada com a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Foto: Luiz Rocha.

A Chapada do Lagoão, localizada no Vale do Jequitinhonha (MG), está no centro de uma disputa que escancara o conflito entre interesses econômicos e a preservação ambiental. Reconhecida como Área de Preservação Ambiental (APA) desde 2007, a região abriga mais de 100 nascentes e comunidades tradicionais que dependem do extrativismo e da convivência com o Semiárido para sobreviver. Hoje, essa riqueza natural e cultural corre sérios riscos.

Situada no município de Araçuaí, em divisa com Itinga e Caraí, a APA Chapada do Lagoão representa uma rara transição entre os biomas da Caatinga e do Cerrado. O território, localizado no Semiárido mineiro, abriga cerca de 400 famílias distribuídas em comunidades tradicionais que lutam, desde os anos 1970, contra a grilagem de terras e os impactos da monocultura do eucalipto — propagada com promessas de desenvolvimento, mas que resultou na intensificação da escassez hídrica.

Apesar de sua importância ecológica e social, a Chapada do Lagoão entrou no radar da mineração internacional após a descoberta de vastas reservas de lítio na região. O chamado “Vale do Lítio”, termo propagado pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), em evento na Bolsa de Valores de Nova York, coloca Araçuaí e outras 13 cidades do Vale do Jequitinhonha no centro da corrida global pelos interesses minerários.

Conflitos de interesses e a investida da Sigma Lithium

Em fevereiro de 2023, o Conselho Gestor da Área de Proteção Ambiental (APA) Chapada do Lagoão aprovou, por 9 votos a 5, a realização de pesquisas minerárias na região pela empresa canadense Sigma Lithium. A decisão, no entanto, revelou o conflito de interesses e a disputa entre grandes corporações mineradoras e comunidades tradicionais que lutam pela preservação de seus territórios.

O Conselho Gestor é formado por representantes da sociedade civil e do poder público — como a EMATER, Câmara Municipal de Araçuaí e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) —, mas sofre com grandes divergências internas. De um lado, estão os defensores do meio ambiente e da vida local, que denunciam os graves riscos da mineração, como a degradação ambiental, a contaminação da água e do ar e a destruição da biodiversidade. Do outro, representantes que defendem os interesses econômicos de grandes mineradoras, priorizando o lucro acima da sustentabilidade e da qualidade de vida das comunidades.

A aprovação gerou revolta entre os moradores da região, especialmente diante do histórico de escassez hídrica e dos impactos já vivenciados em municípios vizinhos. Em Itinga, onde a Sigma Lithium já opera na chamada Grota do Cirilo, a exploração de lítio consome mais de 1,2 milhão de litros de água por ano, segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA). Comunidades locais denunciam o assoreamento de rios e temem o colapso hídrico. Para essas populações, os rios não são apenas fontes de sobrevivência, são também espaços afetivos, culturais e de lazer.

A decisão que aprovou as pesquisas minerárias na região gerou polêmica por não consultar as comunidades tradicionais locais. A ausência de uma Consulta Livre, Prévia e Informada, garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), levou o MAB e a deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT) a apresentarem uma denúncia formal ao Ministério Público de Minas Gerais. O órgão recomendou a anulação da votação que autorizava as pesquisas da SIGMA. Diante do pedido do Ministério Público, o Conselho Gestor da APA se reuniu novamente em 11 de maio. A recomendação acabou por ser acatada: foram 12 votos pela anulação da aprovação e 3 abstenções.

O episódio revela mais um capítulo da ofensiva de grandes corporações sobre o Vale do Jequitinhonha, uma das regiões historicamente mais exploradas e negligenciadas do país. A tentativa de avanço da mineração, sem diálogo real com as comunidades, reforça um modelo de desenvolvimento excludente e predatório, em que os lucros seguem concentrados e os danos permanecem nos territórios.

A ameaça mais recente: redução dos limites da APA

Em fevereiro de 2025, um novo capítulo de tensão ambiental e política se instalou no município de Araçuaí. O prefeito Tadeu Barbosa (PSD) encaminhou à Câmara Municipal o Projeto de Lei nº 02/2025, que propõe reduzir em mais de 5.500 hectares, cerca de 23% da Área de Proteção Ambiental (APA) Chapada do Lagoão. A justificativa oficial: “corrigir os limites da APA”, já que ela ultrapassaria as divisas de Araçuaí, avançando sobre o município vizinho de Caraí.

No entanto, o projeto, apresentado em caráter de urgência, despertou ampla desconfiança nas comunidades locais. A proposta se baseia em um estudo feito pela empresa Arcos Verdes, realizado em apenas três dias em um território de 20 mil hectares, utilizando dados do SRTM (Shuttle Radar Topography Mission). Segundo o levantamento, haveria uma sobreposição de apenas 86,66 hectares com o município de Caraí — número irrisório diante da redução proposta.

A pressa e a fragilidade técnica do estudo levantaram suspeitas: por que tamanha urgência em alterar os limites de uma área tão estratégica para o equilíbrio ambiental da região? A população teme que o real objetivo por trás do projeto seja abrir caminho para o avanço da mineração, favorecendo interesses de grandes empresários do setor, em detrimento da preservação ambiental e do bem-estar das comunidades tradicionais.

A APA Chapada do Lagoão é considerada pela comunidade a “Caixa d’água do Vale do Jequitinhonha”, com mais de 139 nascentes catalogadas, além de abrigar biomas raros e comunidades quilombolas que vivem em conexão com a natureza. Reduzir sua extensão colocaria em risco não só o meio ambiente, mas também a soberania e os modos de vida dessas populações.

Diante da ameaça, a resposta popular foi imediata. Moradores da região, junto ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), representantes políticos, lideranças quilombolas, assessorias técnicas, o Instituto Federal e outras entidades ocuparam as reuniões da Câmara Municipal, pressionando os vereadores e exigindo mais transparência e debate. A mobilização surtiu efeito: no dia 10 de março, o projeto perdeu o caráter de urgência requerido pelo prefeito.


Outro desfecho, que também se deu por conta da mobilização popular, foi a Ação Civil Pública Ambiental ajuizada pelo Ministério Público contra o município de Araçuaí, com o objetivo de impedir o avanço do Projeto de Lei nº 02/2025, que pretendia reduzir a área da APA. Como resultado, a Justiça acolheu o pedido e determinou a suspensão imediata da tramitação do projeto, proibindo qualquer ato administrativo ou normativo que vise à diminuição dos limites da APA Chapada do Lagoão. 

Nos autos, a juíza do caso, Patrícia Bergamaschi, destacou que a proposta ameaça o meio ambiente e as comunidades tradicionais. Além disso, pontuou questões importantes como a ausência de consulta prévia, livre e informada às comunidades (como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho); a fragilidade dos estudos apontados no projeto, que omitem impactos graves sobre as nascentes e áreas de preservação, e o impacto na segurança hídrica das populações locais.

A decisão judicial foi celebrada como uma importante vitória das comunidades em defesa do território e da vida, mas ainda cabe recurso — o que mantém o estado de vigilância e mobilização. Mais do que nunca, a defesa da APA Chapada do Lagoão se impõe como um símbolo da luta coletiva por justiça ambiental, soberania popular e respeito às futuras gerações.

Vale do Jequitinhonha não é o Vale do Lítio

As recentes ameaças à APA Chapada do Lagoão escancaram um embate antigo e cada vez mais urgente: que modelo de desenvolvimento está sendo imposto ao Vale do Jequitinhonha? Por trás do discurso de “progresso”, avança uma narrativa que insiste em reduzir o Vale a um “Vale da Pobreza”, ignorando sua riqueza natural, sua biodiversidade única e a força cultural de seus povos originários e tradicionais.

A ideia de transformar a região no chamado “Vale do Lítio” vem sendo imposta, sem consulta ou participação efetiva das comunidades. Enquanto grandes empresas internacionais disputam o solo, os povos da região lutam para manter viva a conexão com a terra, a água e os modos de vida construídos ao longo de gerações.

“O povo se considera Vale do Jequitinhonha, não Vale do Lítio. Esse modelo de exploração coloca o lucro acima da vida”, afirma Joyce Silva, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Para o MAB, um desenvolvimento sem participação popular não é desenvolvimento — é apenas mais uma forma de aprofundar desigualdades sociais, econômicas e ambientais.

Vale lembrar que essa disputa acontece em um contexto de crise climática global, que já atinge com força o Semiárido mineiro. Em novembro de 2023, o município de Araçuaí registrou 44,8°C, a temperatura mais alta da história do Brasil, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Nesse cenário, a preservação da APA Chapada do Lagoão — com suas nascentes e ecossistemas frágeis — não é só uma questão local: é uma urgência ambiental nacional.

Enquanto empresas estrangeiras exploram os recursos naturais e lideranças políticas locais se alinham aos interesses do capital, as comunidades quilombolas, os agricultores familiares, as juventudes e os movimentos sociais seguem resistindo. Essa luta não é apenas pela preservação de uma área, mas pela possibilidade real de construir um futuro sustentável, que valorize o território, a justiça e a vida.

A disputa pela Chapada do Lagoão, portanto, simboliza dois caminhos possíveis para o Vale do Jequitinhonha: um de devastação em nome do lucro, e outro de justiça social e ambiental, em que a vida — e não o lítio — seja o centro das decisões.

Conteúdos relacionados
| Publicado 21/12/2023 por Coletivo de Comunicação MAB PI

Desenvolvimento para quem? Piauí, um território atingido pela ganância do capital

Coletivo de comunicação Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Piauí, assina artigo sobre a implementação de grandes empreendimentos que visam somente o lucro no território nordestino brasileiro

| Publicado 04/07/2024 por Amélia Gomes / MAB

Povos tradicionais vão à Assembleia Legislativa denunciar violações sofridas com exploração do lítio em MG

Audiência pública acontece nesta sexta (05) e faz contraponto à mega evento de promoção da exploração do mineral no Vale do Jequitinhonha

| Publicado 09/07/2024 por Amélia Gomes / MAB

Atingidos pelo lítio avançam na fiscalização sobre a legalidade da exploração na região

Visita técnica do Ministério do Meio Ambiente e novas audiências sobre o tema foram algumas das conquistas dos povos tradicionais do Vale do Jequitinhonha

| Publicado 18/03/2022 por Coletivo de Comunicação MAB MG

Jornada de Lutas em MG: atingidos denunciaram impactos de enchentes de rejeitos e cobraram reparação integral

Nas bacias dos rios Doce, Paraopeba, Jequitinhonha e Pardo houve plenárias, caminhadas e atos em órgãos de justiça cobrando mais segurança nas barragens, reparação justa e programas geração de emprego e renda para os atingidos