‘Há muito trabalho a ser feito nas cidades atingidas pelas enchentes’, diz dirigente do MAB

Moradores relatam desalento após enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul entre os meses de setembro e novembro

“No dia da primeira enchente, a primeira hora da manhã, 6h30, eu fui até o rio pra ver como estava dentro do leito. Chamei meu marido para levar o carro para o morro, porque eu estava achando muito estranho o rio, aí ele levou o carro e voltou. A gente ajeitou umas coisinhas e às 9h nós estávamos no forro com água até o peito já. Ficamos 22 horas lá em cima, sem água, sem comida, sem dormir”, recorda Lussane Maria Hickmann, 65 anos, sobre as enchentes que atingiram a região do Vale do Taquari em setembro e novembro deste ano.  

“A gente tá com muito medo de ficar aqui. Quando levanta uma nuvem que nem agora eu fico com medo”, relata moradora. Foto: Fabiana Reinholz

Moradora do bairro Conservas, em Lajeado, há 38 anos, a dona de casa conta que foi a primeira vez que essa situação aconteceu. “Quando descemos do forro era que nem uma guerra dentro de casa, tudo virado e quebrado.”  Mal se recuperando da primeira enchente, uma nova chegou à região em novembro. “A gente conseguiu sair de casa, mas mesmo assim os móveis já sofreram outros danos de novo, a gente tá voltando de novo, se reerguendo de novo, mas com muita dificuldade, porque é muito difícil ter ajuda, porque é muita gente precisando”, desabafa. 

Ao andar pelas ruas do bairro, observa-se casas abandonadas, e de acordo com relato dos moradores, muitos se mudaram do local. É o caso da dona de casa. “Muitas pessoas estão deixando suas casas, inclusive eu também vou deixar a minha casa, não vou mais ficar nesse bairro, infelizmente.”

Entre os motivos para essa situação está o medo e a apreensão de uma possível nova enchente. “A gente tá com muito medo de ficar aqui. Quando levanta uma nuvem que nem agora eu fico com medo. Eu estou com síndrome do pânico. Não sei mais o que fazer. Eu já chorei muito, pedi pro meu filho pra tirar nós daqui, mas ele também não sabe onde colocar nós”, desabafa com os olhos marejados a aposentada Erci Baler, 66 anos, moradora de Roca Sales, um dos municípios gaúchos afetados drasticamente com as enchentes. 

Ela ficou no telhado de sua casa, juntamente com seu neto de cinco anos, até ser resgatada por cordas. Erci conta que seu neto depois do episódio tem medo de visitar a avó por conta da enchente. 

Os relatos da dona Erci e de Lussane fazem parte dos inúmeros ouvidos pela Missão de Monitoramento no Vale do Taquari, formada por integrantes do Movimento Atingidos por Barragem, membros da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, do Conselho Estadual de Direitos Humanos, do Centro de Direitos Econômicos e Sociais – CDES, da organização Acesso Cidadania e Direitos Humanos. Entre os dias 27 e 28 de novembro, a comitiva percorreu os municípios do Vale do Taquari, Lajeado, Roca Sales e Arroio do Meio. 

Medo e incerteza

Entulhos, destroços das casas ainda por recolher. Restos de roupa, calçados, sacolas plásticas, brinquedos que ficaram presos em árvores e muros, mau cheiro e muita lama estão espalhadas pelas ruas das cidades por onde o rio passa e ficam como lembrança da catástrofe climática que desde setembro, deixou pelo menos 53 mortos e centenas de desalojados e desabrigados. 

De acordo com a Defesa Civil do estado, em setembro, 3,5 milhões de pessoas foram afetadas pelas chuvas, sendo que 340 mil pessoas tiveram casas destruídas, danificadas ou invadidas pelas água. Em novembro, quase 700 mil pessoas foram afetadas, direta ou indiretamente. As duas enchentes que atingiram o RS deixaram mais de 50 mortes. 

Entres elas uma mãe e duas crianças, de 9 meses e de três anos. “Aqui morreram uma mãe e duas crianças que estavam ilhadas no telhado e foram levadas pelas águas, sem que chegasse algum resgate. O marido (Miguel) se agarrou nos galhos da árvore e foi salvo, momentos antes de tudo desabar”, conta Lorival Schneider, 57 anos, que há 16 anos vive no bairro Conservas. 

Morando em uma casa de dois pisos, Lorival conta que a água chegou ao segundo piso da sua casa, alcançando 82 centímetros, no temporal de novembro. Na enchente de setembro, ele já havia perdido tudo. Levaram quase 60 dias para conseguir voltar ao bairro, mas, após a segunda enchente, decidiram não voltar mais e pediram abrigo a uma filha que mora no bairro Jardim do Cedro. “Saímos eu, minha esposa, a filha com bebê e o genro. Não dá mais para morar aqui.”

Com 13 anos, Aiexa Camile da Rosa conta que a primeira enchente de setembro foi de pânico para ela: “Eu fiquei em cima do telhado, a água começou a subir muito rápido, muito, muito, muito rápido, e a gente foi subindo, subindo, subindo, quando vê a gente não conseguia mais subir. Era 8 e pouco da manhã e a gente não conseguia mais descer, não conseguia fazer nada”. Aiexa conta que seu avó, Airon, de 65 anos, não conseguia subir no telhado por conta do pânico. “Ele tremia, e aquele vento batia. Eu só chorava, porque ninguém vinha ajudar a gente, eles não conseguiam chegar por causa da correnteza, isso foi um pânico que olha, quem passou sabe.” 

Estima-se que 500 famílias foram atingidas no bairro Conservas. 

No bairro Navegantes, em Arroio do Meio, as casas ainda guardam os efeitos da enchente. Foto: Fabiana Reinholz

Maiores enchentes da região 

“Essas duas recorrentes de agora são as maiores enchentes da história da região e do município, foram duas tragédias o que aconteceu na região. “Roca Sales assim como as cidades do Vale do Taquari, são cidades bonitas, não há muita pobreza. As enchentes aqui até são rotineiras, mas não nessa proporção. Dentro do centro da cidade tínhamos uns 7 metros de nível de água. Então, simplesmente o rio perde seu fluxo natural e entra na cidade, e vem demolindo com tudo mesmo, tanto que temos aí mais de 150 casas entre perdidas e condenadas”, expõe o presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Alimentação de Roca Sales, André Gosmann, que mora há 48 anos no município. 

De acordo com ele, o que vem acontecendo no Vale do Taquari é que há uma demanda de ajuda pras pessoas e ela não vem ocorrendo. “A gente entende que o município é pequeno, Roca Sales é pequena, e não tem estrutura, e é um município que tem dificuldades financeiras, a gente tem que entender isso. Mas a gente entende que a ajuda tem que ser buscada em algum momento, e que as coisas não estão acontecendo no seu devido tempo.” 

As enchentes deixaram centenas de famílias sem suas casas, tendo que ficar em alojamentos. Mãe solo, de Arroio do Meio, Shauana teve que explicar para seus avós que não seria mais possível retornar para casa que eles trabalharam a vida toda para adquirir.

“Deixo minha bebê pequena com outra pessoa pra ir trabalhar em algum bico. Meus avós tomam muitos remédios, que foram todos perdidos na enchente, então me endividei para comprar de novo, mas não sei como vai ficar a situação da nossa casa que perdemos – e ainda temos o financiamento para pagar”, contou durante a Audiência Pública de Monitoramento dos Direitos Humanos no Vale do Taquari que lotou o auditório do Seminário Sagrado Coração de Jesus, em Arroio do Meio, no dia 27 novembro. 

Durante a audiência, os relatos dos moradores repetiram a realidade acompanhada pela Missão, evidenciando a urgente necessidade de uma atuação efetiva do poder público. A audiência foi transmitida pelo instagram do MAB

“A gente não tem o apoio da prefeitura, eles tinham que ter mais organizado. Era pra ser enchente igual de 2020, quando não entrou água na minha casa. Eles tinham que ter uma informação melhor pra passar pra nós, não só chegar e dizer pra nós só quando a água tá batendo na bunda. Tipo a Ana Célia perdeu a casa duas vezes, perdeu a casa e agora perdeu todos os móveis que construiu”, expõe uma moradora durante a roda de conversa realizada em Arroio do Meio. 

Também moradora de Arroio do Meio, Maria Margaret da Silva, 55 anos, que mora há 16 na cidade, ressalta que a situação das duas enchentes foi bem grave. “Perdemos tudo na primeira. Falaram que a água não subiria no segundo piso e ela subiu. Meu marido teve que sair pelo telhado. Na segunda chamamos o caminhão, pedimos e pedimos e demorou para vir nos buscar. Nós tiramos um pouco das coisas, mas não tiramos tudo. Era um caminhão para tirar duas a três mudanças ao mesmo tempo.”

Morando em frente ao rio, Maria passou alguns dias em um alojamento, tendo voltado para sua casa um dia antes da Missão chegar ao local. “Estamos limpando a sujeirada deixada pela enchente. A gente mal havia limpado da primeira e veio essa segunda.”

Violações de direitos

“Verificamos questões gravíssimas da falta de assistência social, falta de coesão das ações entre município, estado e federação para o efetivo atendimento daquelas famílias. Verificamos o desalento, algumas famílias até que não estavam na faixa da miséria perdendo todos seus bens, começaram a chegar a esse risco de miséria. Falta de emprego, falta de condições mínimas de moradia. Muitas das famílias estão em alojamentos disponibilizados pelos municípios. Essas famílias reclamaram em grande medida sobre o atendimento precário nesses alojamentos que os colocam em situação de fragilidade e tendo que voltar para suas casas, mesmo as casas estando sob risco de novas enchentes. A situação ali é caótica”, expõe o presidente do CEDH, Júlio Alt.  

É com o objetivo de dar visibilidade aos impactos causados pelas enchentes do Rio Grande do Sul e cobrar a implementação de políticas públicas focadas na reparação dos direitos que foi montada a missão. 
 
“A missão foi construída coletivamente. Realizar uma missão dessas é dar visibilidade para um problema que as cheias trouxeram. Principalmente o propósito da missão que era de avaliar, monitorar a violação de direitos humanos foi exatamente que conseguimos fazer nesses dois dias. Verificar toda a situação que as famílias estão enfrentando e principalmente como se reerguem depois de tudo isso, frente muitas vezes, a demora e ao descaso das políticas públicas principalmente do poder municipal”, explica a integrante da coordenação do MAB, Alexania Rossato.

Desalento 

O MAB tem atuado desde o mês de setembro na região para prestar o atendimento emergencial e articular as comunidades para acessarem as políticas públicas necessárias. 

Juntamente com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio Grande do Sul (Consea-RS), o movimento montou uma cozinha solidária em Arroio do Meio.

“No Vale do Taquari, depois de toda essa catástrofe que aconteceu, das duas últimas enchentes, vemos que o poder público municipal é completamente ausente em referência a ajuda às pessoas que foram atingidas. E isso ficou muito claro nos relatos que nós escutamos passando por todas essas três cidades que a gente visitou”, pontua Caio Belloli de Almeida, coordenador estadual do MTST e da Cozinha Solidária da Azenha, que acompanhou a Missão. 

Segundo ele, a vulnerabilidade dessas pessoas está muito gritante. “Estão completamente ausentes de qualquer serviço público, não existe assistência social, não existe nenhum tipo de política pública atual que consiga atingir essas pessoas e fazer com que elas mudem a realidade delas.”

Para Cristiano Müller, coordenador jurídico do CDES Direitos Humanos, a Missão no Vale do Taquari teve uma grande importância, porque conseguiu promover a escuta dos atingidos sobre todas as situações de violação dos seus direitos.

“Pudemos ouvir, depreender, reunir e fazer apontamentos sobre as situações enfrentadas pela comunidade, decorrentes dessas tragédias climáticas. É importante dizer que a missão não para por aqui. Seguirá com denúncia, recomendações para as autoridades, divulgação do relatório e ampla defesa dos direitos de todas as pessoas atingidas no Vale do Taquari”, explicou.

Conforme enfatiza Alexania, tem muito trabalho a ser feito na região. “Nessa segunda enchente, não teve uma atenção, uma assistência como foi na primeira. A primeira enchente teve toda uma sensibilização nacional, uma visibilidade dos veículos de comunicação. A sensação é que há uma naturalização da enchente.”

Alexania lembra que não dá pra naturalizar a enchente na vida das pessoas e tratar como uma coisa comum. “O foco agora é exigir que o Estado garanta o direito à moradia, à alimentação, à educação e à saúde para os moradores do território que estão enfrentando diversos desafios relacionados à tragédia”, ressalta.

Como encaminhamento da Missão, a Comissão de Direitos Humanos irá realizar um relatório das denúncias recebidas durante os dois dias. O documento será entregue ao Ministério Público do RS (MP/RS) e ao Tribunal de Contas do RS (TCE/RS). Também será solicitada uma audiência com o governo do estado. 

Sete em cada 10 brasileiros sofreram com eventos climáticos

De acordo com levantamento encomendado pelo Instituto Pólis, divulgado nesta segunda-feira (4), sete em cada 10 brasileiros sofreram com eventos climáticos extremos. A pesquisa foi realizada presencialmente em todas as regiões do país. O período de coleta das respostas foi de 22 a 26 de julho.

Segundo a pesquisa os eventos que mais atingiram a população foram chuvas muito fortes (20%); seca e escassez de água (20%); alagamentos, inundações e enchentes (18%). Os eventos relacionados a grandes volumes de água e à falta do recurso estão no topo da lista. Também apareceram nas respostas dos entrevistados temperaturas extremas (10%); apagões de energia (7%); ciclones e tempestades de vento (6%); e queimadas e incêndios (5%).

Ao todo, 1.960 (98%) dos 2 mil entrevistados ouvidos pelos pesquisadores responsáveis pelo estudo expressaram preocupação com uma nova ocorrência de um evento dessa magnitude.

* Com informações do MAB e Agência Brasil. 

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