FOSPA 2022: Declaração PAN-AMAZÔNICA para o cuidado da Amazônia e seus povos

CConheça a Declaração Pan-Amazônica de Belém, lançada no marco do 10º Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA), realizado Belém, na Amazônia brasileira, de 28 a 31 de julho de 2022.

O Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA) é um evento/processo de alcance global que surge, há 20 anos no âmbito do Fórum Social Mundial, para lutar pela vida, a Amazônia e seus povos. É um espaço de articulação dos povos e movimentos sociais para a incidência e a resistência política e cultural frente ao modelo de desenvolvimento neoliberal, neocolonial, extrativista, discriminador, racista e patriarcal.

A Declaração deste 10º FOSPA está organizado com um breve panorama da situação que se vive na Amazônia. Em seguida apresenta as 15 propostas políticas e 16 ações concretas a serem realizadas.

28, 29, 30 e 31 de julho, Belém do Pará, Brasil

  1. Abraçados em frente ao rio Guamá, no grande encontro onde se reuniram as diversidades que habitam o Pan-amazônia, os povos indígenas, negros, quilombolas, camponeses, ribeirinhos, urbanos, de todos os gêneros e idade dos 9 países da bacia amazónica: Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, reafirmamos o caminhar que há 20 anos atrás, desde o 1º Encontro como Fórum Social Pan-Amazónico, começamos com a esperança de “Outro mundo possível”. Não podíamos imaginar que o mundo seria pior do que o mundo que conhecíamos àquela altura.
  2. Atualmente, a Amazônia está em seu pior momento, devastada por governos, para os quais a natureza é uma mercadoria, e os direitos do povo não têm validade. Até à data, nenhum governo garantiu o pleno exercício dos direitos dos povos amazônicos em defesa da Mãe Natureza. Nesta situação é necessário o chamado aos movimentos sociais para que apelem à criatividade, para aprenderem com os seus erros e para continuarem a lutar.
  3. Aquilo que era entendido como ameaças são hoje realidades, derivadas de um sistema de opressão múltipla: patriarcal, racista, capitalista e colonial, que localizou a grande bacia amazônica como a sua mais recente fronteira de expansão, colocando em risco todas as formas de vida e aqueles que as defendem. Sob a falsa premissa do desenvolvimento, avança o extrativismo da borracha, da madeira e do petróleo, das agroexportações, das hidroelétricas e das mineradoras nos diferentes territórios amazônicos, a sua inserção nos modelos de conservação colonial, incluindo propostas de comercialização de elementos do bioma sob este pretexto e de militarização dos territórios. Estas propostas colocam a pilhagem de bens comuns a fim de gerar lucros, causando grandes problemas, desigualdades sociais, violência estrutural para a pluralidade de pessoas na Amazónia, que hoje vêem como toda a vida está a ser destruída e envenenada.
  4. A actual crise climática e a sua ameaça à civilização, como consequência do modelo de desenvolvimento, levou o ecossistema amazônico ao ponto de não retorno, ameaçando a perda irreparável da floresta tropical mais importante do planeta, que é lar de mais de 50 milhões de pessoas, juntamente com uma boa parte da biodiversidade planetária. Se não pararmos esta tendência hoje, amanhã será a morte da região Pan-Amazônica, que é vital para frear o aquecimento global e garantir a vida no planeta.
  5. As mulheres indígenas, camponesas, negras, populares, da água, da selva e urbanas, trans e lésbicas, que são uma força de resistência em defesa da vida, continuam a ser violadas pela ação e omissão dos Estados, dos fundamentalismos políticos e religiosos, do patriarcalismo, do racismo, da militarização, da corrupção enraizada e instalada nos nossos Estados. O capitalismo que através de corporações transnacionais e forças económicas, expropriam territórios com impunidade, violam corpos, controla pessoas e modos de vida, violência sexual, feminicídio, violação de direitos sexuais e reprodutivos, ataques à diversidade, dissidência sexual e de gênero.
  6. Toda a bacia vive uma situação de guerra não convencional, com a participação de forças militares estatais, paramilitares, milícias e traficantes de droga que atuam em ligação com grandes interesses económicos. A isto juntam-se as medidas coercitivas unilaterais, bloqueios financeiros e económicos e ameaças militares impostas pelas grandes potências mundiais e grupos fundamentalistas.
  7. Reiteramos que embora os perigos tenham aumentado, as lutas e a resistência adquiriram uma força sem precedentes que deve continuar a crescer. Os povos da Pan-Amazônia estão a organizar-se, juntando-se, lutando pelos seus territórios e culturas, para tornar possível um futuro. As lutas anti-racistas, anti-patriarcais e anti-coloniais estão a avançar. Mantemos o otimismo que nos tem caracterizado, mas com um realismo que nos obriga a exigir o que é (im)possível. Que outro mundo é possível.
PROPOSTA POLÍTICA:
  1. Exigimos um modelo político, social e económico que dê prioridade à integridade da nossa casa comum, que reconheça e respeite os territórios e o pleno exercício dos direitos dos povos amazônicos e dos direitos da natureza.
  2. Recuperar, valorizar e proteger os conhecimentos de homens e mulheres e as formas ancestrais de organização dos nossos povos para o cuidado e gestão da água, a proteção dos seus territórios, que incluem os nossos rios, limpos e livres de megaprojectos.
  3. As nossas alternativas para uma terra sem males são uma produção agrícola e florestal diversificada em harmonia com a natureza, agroflorestação, agroecologia, projetos de produção e consumo local, gestão comunitária do território e das áreas comuns, utilização de sementes nativas, ecoturismo comunitário, projetos de energias alternativas, cuidados e gestão integrada e participativa das bacias hidrográficas e biorregiões, e muitas outras iniciativas centradas na vida e não na mercantilização da natureza.
  4. Propomos articular esforços e lutas em defesa dos territórios do Panamá e da vida, bem como com outros movimentos sociais de outras regiões do mundo contra o modelo econômico neoliberal, patriarcal, colonial e racista que viola todos os nossos direitos individuais e coletivos, contra a corrupção e contra os fundamentalismos políticos, econômicos, socioculturais e religiosos.
  5. Instamos os governos dos países pan-amazônicos a porem em prática os seus discursos contra a crise climática e os direitos da Mãe Terra, com medidas reais contra o desmatamento, degradação e aumento das emissões, e não com a maquiagem das chamadas economias verdes. Exigimos que cumpram e reforcem os seus compromissos assumidos a nível internacional.
  6. Promover o exercício do autogoverno e autodeterminação dos povos indígenas, negros, quilombolas, camponeses e ribeirinhos para permitir o exercício da gestão pública baseada na sua própria visão, normas e procedimentos; para isso, é necessário, entre outras coisas, implementar mecanismos adequados às novas formas de planejamento que garantam os seus modos de vida, respeitando as suas cosmovisões. Sem autogestão territorial pelos povos, não há futuro para a Amazônia, nem para o mundo. Exigir o pleno cumprimento das sentenças do Tribunal Interamericano dos Direitos do Homem (por exemplo, Caso Suriname 2015). Exigimos também a autodeterminação da Guiana Francesa; a nossa bacia amazônica não estará completa até conseguirmos a sua descolonização.
  7. Rejeitamos as políticas públicas extractivistas dos governos que ameaçam a vida e a natureza. Exigimos que o direito à consulta livre, prévia e informada seja assinado, ratificado, respeitado e implementado, incluindo o direito de veto devido à objecção de consciência cultural no quadro da autodeterminação dos povos, e exigimos que os hidrocarbonetos sejam mantidos no subsolo e que a Amazônia seja livre de mineração.
  8. Exigir aos governos a plena propriedade e garantia legal dos territórios dos povos e comunidades, incluindo o subsolo, para que tenham protecção permanente contra a extracção mineral, para que não violem a nossa mãe terra, a fim de assegurar o Bem Viver dos seres humanos e de todas as formas de vida e espíritos.
  9. Condenar e rejeitar a implementação de medidas coercitivas, qualquer forma de bloqueio político, econômico, financeiro e diplomático que pesem sobre qualquer país da nossa bacia amazônica, uma vez que são ações políticas criminosas que afetam os nossos povos.
  10. Assumimos a defesa radical dos direitos dos povos da Pan-Amazônia à educação, comunicação e saúde de uma perspectiva popular, intercultural, comunitária, crítica e descolonial.
  11. As mulheres da pan-amazônia estão empenhadas na reinvenção e construção coletiva da democracia que queremos; apelamos a todos os povos e organizações da Amazônia para que incluam nas suas agendas ações que corrijam as desigualdades e as relações de poder que persistem e afetam as nossas vidas, corpos e territórios. Esta articulação deve ser dirigida ao apoio jurídico em espaços internacionais que possam fazer recomendações aos Estados sobre a urgência de incluir ações concretas que respondam à transformação da violência que afeta as mulheres amazônicas e andinas.
  12. Apoiamos fortemente as cartas dos Pré-FOSPAs realizadas em cada país e as conclusões das Casas do Saberes e Sentires (Casa da Mãe Terra, Casa da Resistência da Mulher, Casa dos Comuns da Natureza, Casa dos Povos e Direitos Indígenas e Casa dos Territórios e Auto-Governo).
  13. Reafirmamos a importância das iniciativas de ação como instrumentos de mobilização para alcançar os objetivos do processo FOSPA. Só é possível gerar processos de transformação se as nossas organizações no Pan-Amazônia se associarem e se articularem nestas ações.
  14. Apoiamos o Tribunal Internacional dos Direitos da Natureza, que chegou de caravana em Belém depois de viajar através do território do Xingu e Carajás. Apoiamos a sua declaração de que a Pan Amazônia é uma entidade viva e ameaçada, sujeita de direitos, à qual as empresas, em cumplicidade com os Estados, declararam guerra. E, as comunidades indígenas, assentamentos, acampamentos, comunidades locais, comunidades tradicionais, camponeses, quilombolas, quebradeiras, ribeirinhos, povos indígenas, camponeses, rurais e urbanos, são os que se encontram na linha da frente deste confronto, e os seus direitos devem ser garantidos. Ao mesmo tempo, é importante destacar as múltiplas iniciativas de restauração integral, moratória extrativista e transição ecológica que as comunidades estão a promover.
  15. Somos a Natureza e existem mais de 37 países que reconhecem os direitos da Natureza em vários níveis, incluindo os direitos da Pan-Amazônia. No Brasil, 04 municípios aprovaram este reconhecimento e mais 4 estados estão a debatê-lo, incluindo Belém, sede do 10º Encontro Internacional da FOSPA. Neste sentido, celebramos a criação e lançamento da Frente Parlamentar Global para os Direitos da Natureza, composta por autoridades indígenas e não indígenas de todo o mundo, que procura alargar esta mudança de paradigma mais rapidamente e diretamente com políticas públicas que reconheçam a natureza como um sujeito de direitos.
AÇÕES
  1. Declarar o estado de emergência climática na bacia Pan-Amazônica e seu cumprimento permanente para permitir a sua restauração ativa e a proteção da sua biodiversidade em coordenação com os povos amazônicos e avançar para um novo paradigma de relação com a natureza. Os avanços numa mudança de paradigma serão a nossa melhor herança, exigirá a transferência de recursos significativos para a restauração e cuidado da Bacia, e a transformação do comércio internacional de mercadorias da economia regional, favorecendo a produção e comercialização de bens que são climatologicamente compatíveis com o ecossistema amazônico e restringindo a exportação de carne, soja, madeira, minerais, hidrocarbonetos e derivados para os mercados da Europa, Ásia, América do Norte e outros.
  2. Adoptamos o veredicto do III Tribunal de Ética em defesa dos corpos e territórios das mulheres amazônicas e andinas, que continuará a reunir-se e a investigar os casos aí apresentados. Continuaremos a reforçar este cenário de visibilidade e advocacia internacional que nos permitiu focalizar os múltiplos impactos do sistema de discriminação nas vidas, corpos e territórios das mulheres, com a violência nas suas várias manifestações a emergir como resultado do actual poder capitalista patriarcal, colonial e racista.
  3. Promover a educação, pesquisa e comunicação como pilares da transformação, promovendo os seus próprios cenários que qualificam as lutas e ações de advocacia com os Estados, através do mapeamento de experiências sobre economias transformadoras, experiências populares, interculturais e comunitárias educativas e comunicativas com ênfase amazónica, encorajando o intercâmbio de experiências, promovendo estudos e investigações sistemáticas, valorizando os processos colectivos de sistematização de experiências, investigação-acção participativa e outras formas dialógicas e colaborativas de investigação-acção.
  4. Para parar a destruição e perda da Amazónia não é possível justificar a continuação da exploração de hidrocarbonetos e da mineração, pelo que propomos o objectivo comum de desflorestação real zero e a promoção do tratado de não-proliferação de combustíveis fósseis, que nos permite deixar o petróleo no solo e avançar para uma transição energética popular.
  5. No contexto da ofensiva do patriarcado, do fundamentalismo político e religioso, do capitalismo e do racismo, que afeta mais fortemente as mulheres indígenas, negras e camponesas que vivem na Bacia Amazônica, propomos reforçar a iniciativa de ação em defesa dos corpos e territórios das mulheres amazônicas e andinas, como espinha dorsal dos nossos compromissos coletivos. A partir daí, continuaremos a tornar estas realidades visíveis e a defender através de campanhas e mobilizações em defesa da vida das mulheres amazónicas e andinas e da rejeição de todas as formas de discriminação e violência contra os seus corpos e territórios.
  6. Apoiar a formação de guardas indígenas, quilombolas e camponeses e outras comunidades tradicionais para a autoproteção dos territórios, viabilizando sua efetiva sustentabilidade. Nesse sentido, apoiar a realização de um Encontro Pan-Amazônico sobre autonomia e autogoverno.
  7. Promover uma campanha para zelar pela vida e proteção dos defensores da natureza, denunciando e confrontando, em todos os países da Pan-Amazônia, sua perseguição, criminalização, acusação, ameaças, desaparecimentos e assassinatos por aqueles que são os novos traficantes e predadores das florestas, máfias e assassinos contratados que afetam a vida dos povos e outras formas de vida. A solidariedade entre nossos povos deve ser efetiva e afetiva com eles; nossa defesa deve ser sustentada para que os Estados garantam suas vidas a partir da ratificação e cumprimento do Acordo de Escazú, condenando os perpetradores e honrando os mártires.
  8. Realizar campanhas permanentes para impedir a exportação de produtos que promovem a contaminação e o desmatamento da Amazônia, como carne, soja, ouro, madeira, açúcar, óleo, agrocombustíveis e outros.
  9. Promover o comércio de bens que são produzidos em sistemas compatíveis e em harmonia com a Amazônia. Nossas alternativas incluem a agroflorestação ecológica, a agricultura familiar camponesa e o manejo comunitário da floresta, para substituir a economia de destruição da Amazônia por uma economia florestal.
  10. Fortalecer a campanha internacional pelos direitos da natureza e promover as Assembléias da Terra para enfrentar a captura corporativa e o fracasso das conferências da ONU sobre clima, biodiversidade e sistemas alimentares para responder eficazmente à crise climática e ecológica.
  11. Criar novas formas de integração regional, com base na consolidação de um bloco de países amazônicos que permitirá o progresso para o pós-extrativismo na Amazônia.
  12. Exigir o compromisso dos Estados na construção de mecanismos regionais que garantam o respeito pelo livre trânsito dos habitantes da Bacia Amazônica em todos os países que a compõem.
  13. Campanha constante para a autodeterminação da Guiana franco-colonizada.
  14. Apoiamos a resolução dos juízes do Tribunal Internacional dos Direitos da Natureza, que propôs a criação de um Tribunal dos Direitos da Natureza no Canadá, de onde vem o capital do projeto Belo Sun, que será desenvolvido na grande volta do Xingu, a fim de tornar visível de onde vem o capital, como seus recursos estão sendo utilizados para a destruição da Amazônia.
  15. Apelamos para a diversidade das organizações que trabalham pela defesa e cuidado integral da Amazônia para continuar a fortalecer suas capacidades transformadoras nos processos de articulação em torno das Iniciativas de Ação – FOSPA.
  16. Sobre a relação das organizações dos povos e comunidades da Amazônia com as redes globais. A FOSPA continuará a tecer alianças com diferentes movimentos sociais ao redor do mundo a fim de expandir ações para superar a crise humanitária, ambiental e climática, e para influenciar órgãos governamentais internacionais a adotarem políticas que sejam consistentes com este propósito global.

Fonte: FOSPA

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