Atingidos por barragens, lutadores da nação

Em seu artigo, frei relata sobre os seus primeiros contatos com a militância do MAB nas lutas do Rio Uruguai, no Rio Grande do Sul, nos anos 80, e remonta a trajetória do movimento e a evolução de suas reivindicações

Não me atraem homenagens, mas me fascinam os reconhecimentos. Há muito a reconhecer na linda trajetória do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), em seus 30 anos de existência social e política.

Vou tentar fazê-lo pelo viés que mais me encanta: a construção histórica – e dialética – da consciência coletiva do Movimento, no calor da luta e numa reflexão vigorosa, desde seus primórdios até os dias do tempo presente.

Conheço, convivo e vivo próximo do MAB desde antes do movimento ser conhecido como MAB, quando ainda era a Comissão Regional do Atingidos do Alto Uruguai (CRAB), lutando em favor dos atingidos do megaprojeto energético do Rio Uruguai, proposto pelo governo militar. Era o início dos anos 80 do século XX e eu morava em trabalhava numa paróquia atendida pelos franciscanos, nas margens do majestoso Uruguai, onde nada menos do que 9 comunidades seriam atingidas por uma das barragens projetadas.

Por aqueles idos acompanhei também a tragédia dos então chamados “afogados do Passo Real” que restaram vagantes sem eiras – e com as beiras tomadas pelas águas – com a construção do barragem do Passo Real, no rio Jacuí. Anos e anos depois da barragem construída mais de 500 famílias não haviam sido reassentadas.

Assim me envolvi com esta causa, a tal ponto, que uma lâmpada ligada desnecessariamente me lembra que este desperdício pode desalojar famílias.

Em sua luta inicial o MAB era um típico movimento de camponeses lutando por direitos em função do desalojamento. Reivindicavam “terra por terra”, indenização justa, reassentamento de todas as famílias desalojadas, reconhecimento dos direitos dos posseiros. Luta para garantir direitos básicos para as populações das beiras dos rios fulminados pelo chamado “progresso”. Típica luta social e econômica.

Aos poucos o MAB começa a questionar a política de barragens enquanto tal, o destino da energia gerada, o projeto energético embutido naquela massa de pedras misturada com cimento que barra o curso da água para jogá-la com enorme pressão sobre turbinas que movem geradores, que, por sua vez, produzem energia elétrica.

Então o MAB começa a perguntar: porque este modelo de geração elétrica? Porque este modelo privado e excludente que gera lucro para poucos, não contribui para melhorar a vida do povo, não constrói soberania nacional, põe luz cara nas moradias do povo e energia barata para os grandes capitalistas?

Ao longo dos 30 anos a consciência política no MAB vai tendo um desenvolvimento extraordinário. Dá-se conta coletivamente do valor deste grande patrimônio do povo brasileiro: seus rios e suas águas. Começa a defender: “águas para vida e não para morte”. E na sequência: “água e energia, não são mercadoria”. Bens do povo devem estar a serviço do povo e não mercadoria para enriquecimento de poucos capitalistas.

A consciência de classe vai cada dia mais se posicionando numa análise estrutural – e numa luta – estratégica em defesa de um projeto de nação e uma postura anticapitalista, formulando um projeto energético de transição para o socialismo.

Sem deixar suas raízes nas beiras dos rios – “não perca de vista o teu ponto de partida” dizia Clara de Assis – onde estão os camponeses que o compõe e onde o capital chega para se apropriar das águas e sua força geradora de vida e energia, mas passou a olhar a nação, o conjunto do campesinato, os trabalhadores urbanos, todo o povo brasileiro. O MAB transcendeu suas lutas corporativas e seus territórios, basilares e necessárias, e hoje faz parte da “Plataforma Camponesa e Operária da Água e Energia”, que luta por soberania energética”, pública e popular, postando-se contra a privatização das empresas de energia que são patrimônio do povo. 

E assim o MAB se constituiu numa vigorosa coluna do nosso povo na luta por uma sociedade justa e igualitária, onde a água, os bens comuns e a energia devem e podem ser usados num sistema que gere vida, proteja e natureza e promova a igualdade e o bem viver de todo o povo.

Reconhecimento e vida longa ao MAB e toda sua militância.

*Frei Franciscano é militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e autor de “Agricultura Camponesa Familiar – Indispensável para Reconstruir o Brasil”.
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