A Vale e seu racismo contra mulheres e crianças negras

Em seu segundo artigo sobre a luta antirracista dentro da militância do MAB, Thiago Alves traz depoimentos sobre mulheres de Minas Gerais que relatam como elas e seus filhos vivem o racismo no contexto da luta por reparação dos crimes da Vale e Samarco/Vale/BHP no estado.

“…chegou ao ponto de uma escola jogar bombas onde essas crianças estavam estudando, que é a escola Dom Luciano Mendes de Almeida e uma escola que leva o nome de Dom Luciano e ter uma atitude. Não digo por parte dos trabalhadores e servidores, mas é coisa da comunidade que descobriu que esses alunos do Bento e Paracatu estavam estudando lá. Então, a gente já presenciou vários outros casos.”

Para refletir sobre a luta antirracista como um eixo fundamental de construção da revolução brasileira, apresentamos no último dia 24 de maio a primeira parte de um artigo que surgiu a partir dos diálogos do Grupo de Estudos da Questão Racial do MAB em Minas Gerais e que produziu um caderno de textos em novembro de 2020.

Ato dos 6 meses do crime da Vale em Brumadinho (MG). Foto: Isis Medeiros

Por meio desta elaboração inicial sobre o tema, compartilhamos um aspecto importante a ser compreendido em detalhes: como os atingidos e atingidas vivem o racismo?

Agora, seguindo os relatos de Simone Silva, Aida Anacleto e Graça Cruz, atingidas pelo crime da Samarco/Vale/BHP, na Bacia do Rio Doce, continuamos as reflexões deste artigo destacando o racismo que o capital (neste caso, por meio na mineradora Vale) opera contra mulheres, crianças e trabalhadores (as) da mineração.

Aproveitando estas agudas observações de Graça Cruz, que apontava no final da primeira parte deste artigo, a diferença de tratamento em operadoras de direito brancas e negras dentro do sistema de justiça que atua no caso Rio Doce, avançamos para outro detalhamento das experiências racistas diretamente praticadas por empresas violadoras. Tomando como base a luta contra a Vale e a Fundação Renova na região, a primeira observação é a quase total ausência de funcionários negros nos quadros das empresas, incluindo daqueles que convivem mais diretamente com os atingidos, excetuando os guardas de escritórios. Nas reuniões de negociação, esta diferença é evidente e já demonstra o tipo de relação estabelecida.

Sobre este aspecto, Anacleto relembra aquilo que observa desde jovem moradora de Mariana e atuante no movimento sindical da mineração:
“Então, a gente observou sempre que as piores colocações lá na empresa eram para as trabalhadoras e os trabalhadores negros. E a alegação é que eles não têm formação. Mas, ao mesmo tempo, eles trazem pessoas de outras regiões como do norte e nordeste do país, ou do norte de Minas, do Vale do Jequitinhonha. E a gente percebe que são pessoas que saem dos seus estados, das suas cidades e vem morar em Mariana ou no Antônio Pereira (distrito de Ouro Preto), muitas vezes em condições sub humanas, com salários baixíssimos e ainda mais agora depois da reforma trabalhista.

A gente tá vendo coisas assim que são simplesmente horrorosas, porque você percebe qual é a diferença para aqueles que são brancos ou que ocupam uma certa posição na empresa. Eles têm casas montadas com tudo de melhor, com a melhor roupa de cama comprada lá na loja da Minas Tech, com os restaurantes e as melhores padarias. Aí você observa qual é a diferença do local ofertado para os outros se alimentarem. Às vezes é marmita ou então comida servida nos alojamentos mesmo onde são colocados. A diferença salarial também é uma coisa que sempre se percebeu.

Para aqueles que estão lá como tatu furando buraco, exercendo as piores funções, o salário também é ruim e não é há o mesmo tratamento para as empresas que são terceiras, quartas, quintas e, quanto mais vai aumentando essa classificação, mais discriminado o trabalhador é, porque o peão que é da própria empresa ele discrimina o que é da terceira, o que é da terceira já discrimina o que é da quarta e aí por diante. Então, é um racismo institucional na forma mais perversa, com a exploração da mão de obra. E é muito visível. Acho que tem que morar numa cidade mineradora para sentir as mazelas da mineração.”

Na estrutura do caráter destas violações racistas, porém, não há como não dissociar o patriarcado e o machismo que para as mulheres negras e seus filhos resultam em danos econômicos, físicos e psicológicos especialmente dramáticos. Simone comenta também sobre esta realidade das mulheres negras atingidas:

“Que isso a mulher negra? Jesus… todos sofrem, todos os atingidos sofrem, mas só sabe quem sofre na pele, quem sente na alma, quem vê esse racismo e vive o tempo todo. Tem dias que eu sinto que não tem sangue correndo nas minhas veias, tem dias que eu sinto o racismo da ponta do meu dedão a raiz do meu cabelo, que isso que eu vivo no dia a dia.

Você ter todos os seus direitos violados, todos! Porque você é negra, porque você é mulher. As empresas acham que a mulher negra deveria ser escravizada até hoje, deveria ser violentada todos os dias pelos senhores do engenho, os donos da casa branca. E é isso que as empresas têm feito com nós mulheres negras. Tem nos violentado todos os dias de todas as formas, tirando os nossos direitos, provocando, colocando a sociedade contra a mulher negra, dizendo para a sociedade que nosso lugar não é ali, o nosso lugar não é no espaço de fala.

Eu vivo, vivencio isso todos os dias. Quantas de nós estamos separadas, quantas de nós tivemos os casamentos desfeitos por esse racismo, por esse preconceito, justamente por a gente buscar um espaço de fala, por a gente querer dar a voz não somente pra mim, pra minha família, mas pra minha sociedade e pro meu povo?”

Assim como Graça Cruz destaca como é ser mulher atingida e advogada negra e a diferença de tratamento em relação às “operadoras do direito de cor branca, (que) ganham mais celeridade, destaque e acatamento,” Simone volta a lembrar do tratamento das empresas em conluio com a Justiça que toca em um direito fundamental violado em toda a Bacia para a maioria das mulheres: o direito ao reconhecimento enquanto atingidas e a isonomia em relação aos homens atingidos em qualquer categoria:

“Eu vou dar outro exemplo: sobre a justiça chegar para os brancos e não chega pros negros. Vou citar a comunidade de Gesteira. As pessoas que estavam ali lutando pelo reconhecimento da perda ali embaixo da Gesteira Velho. As pessoas que eram brancas foram reconhecidas. Só ficaram as mulheres negras. As únicas que não foram reconhecidas – que estavam pleiteando o direito e ficaram ser sem reconhecidas – foram justamente as mulheres negras.”

Sobre este aspecto, Anacleto também faz um sensível depoimento:

“A situação da mulher negra desde de sempre é a mais delicada neste contexto. Desde sempre nós sofremos preconceitos não só nos locais de trabalho, ocupamos os piores postos de trabalho, temos o problema do salário que não é….pode se ocupar a mesma função, mas você não vai receber o mesmo salário que é ofertado aos homens e ainda tem que tá na luta deste espaço com as mulheres brancas ou com os tons de pele. Um tom de pele que sobrepõe o outro faz a diferença na vida das pessoas, porque quanto mais escuro o tom da sua pele, mais racismo, mais preconceito você sofre.”

“…não existe um olhar humanizado para nós mulheres, seja numa sala de parto onde você sofre os maiores tipos de violência… na mesa de um parto, seja na escola, seja no trabalho, ou seja buscando seus direitos na política pública, ou seja também na questão da violência doméstica, que tá em todos os segmentos da sociedade, em todas as classes sociais.”

Sabe-se, segundo dados da Justiça Global ainda de 2015, que 80% dos atingidos e atingidas dentro do município de Mariana (MG) são negros remanescentes de quilombolas. Assim como Dulce Maria, Aida faz uma relação entre esta realidade e a forma com as mineradoras tratam a reparação de danos:

aquelas comunidades atingidas, que eram inclusive quilombolas, não só Bento Rodrigues, mas Paracatu, Campinas, Pedras e toda aquela região tem os traços ali e a comprovação da herança quilombola – apesar de não ser reconhecida, nós temos documentação que comprova que o povo que chegou ali é o mesmo povo que chegou na aqui minha comunidade e nós já estamos aqui há 324 anos. Então, é uma comunidade quilombola e é visível como que é tratado diferente. O que eu observei é a diferença de tratamento, tanto na questão social, nas classes sociais e quanto nas questões de cor”.

Além desta diferenciação de tratamento, já apontada na primeira parte deste artigo, é preciso fazer um destaque especial: a condição das crianças atingidas. Sabendo que no caso do rompimento da barragem de Fundão, a maioria são descendentes de quilombolas, o relato abaixo expressa com clareza a brutalidade específica que vem das empresas, mas também da sociedade em geral que reflete de forma muito nítida o racismo estrutural presente nas relações:

Ato simbólico que marcou os 2 anos do crime da Vale em Brumadinho (MG). Foto: Isis Medeiros
Ato simbólico que marcou os 2 anos do crime da Vale em Brumadinho (MG). Foto: Isis Medeiros

“Nossas crianças atingidas na hora de conseguir frequentar uma escola da cidade onde pudesse ser aceito, houve vários casos chocantes, inclusive, como dizerem para essas crianças de que elas eram culpadas do que havia acontecido no Bento Rodrigues, que eles eram os culpados da cidade estar nessa situação. As mulheres passaram a não sair mais as ruas, porque chegavam numa loja e era descriminadas e as pessoas, inclusive, incriminavam, a própria criminalização do movimento social pela Câmara Municipal não era toda, abertamente, abertamente. Nós tivemos a presença de um vereador que criminalizou e divulgou informações inverídicas e a cidade como um todo, a cidade de Mariana criminalizou a população das comunidades atingidas. Tiveram que fazer escolas para estas comunidades pelo fato de não terem sido aceitas nas escolas da cidade. Chegou ao ponto de em uma escola jogarem bombas onde essas crianças estavam estudando, que é a escola Dom Luciano Mendes de Almeida e uma escola que leva o nome de Dom Luciano e ter uma atitude dessas. Não digo por parte dos trabalhadores e servidores, mas é coisa da comunidade que descobriu que esses alunos do Bento e Paracatu estavam estudando lá. Então, a gente já presenciou vários outros casos.”

A imensa maioria das crianças que perderam seu espaço de estudo e lazer e que vieram para a cidade de Mariana tem, além de todos os danos elencados nos relatórios, a barreira racial para transpor. E é aqui que vemos uma face racista violentamente perversa praticada pelos próprios trabalhadores primários e terciários e suas famílias citados anteriormente, vítimas do mesmo racismo estrutural com o qual tratam os atingidos, incluindo as crianças.

Compreender estas contradições extremamente complexas e que se desenrolam contra, mas também dentro da classe trabalhadora, é um desafio fundante. As citações e os exemplos aqui relatados são apenas uma mostra inicial do quanto os atingidos e atingidas por barragens sofrem o racismo estrutural na sociedade capitalista. E é preciso conhecer esta realidade.

Aprofundar esta compreensão tendo o próprio atingido como guia e mediador exige um conjunto de tarefas a partir uma análise concreta da realidade brasileira, uma sociedade organizada a partir da escravidão negra e que guarda no mais íntimo das práticas individuais e coletivas as marcas de um pais que enxerga até hoje o seu povo negro como “carvão a ser queimado na produção”, como muitas vezes afirmou Darcy Ribeiro.

Esta pode se uma contribuição inestimável do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) para a revolução brasileira: fazer o conjunto dos atingidos e atingidas compreenderem esta realidade trazendo os negros e negras para pensar sua condição tornando-se protagonistas da suas próprias histórias e da história da superação do capitalismo. Isto despertará forças poderosas que estão guardadas nos subsolos invisíveis da história nacional. Liberar estas forças trará uma potência revolucionária jamais imaginada, sobretudo pelas classes exploradoras. Seria trilhar o caminho apontado por Florestan Fernandes. Em seu livro “O Significado do Protesto Negro”, de 1989, ele afirma:

“No Brasil, não se pode proclamar simplesmente: ‘proletários de todo mundo, uni-vos’. A nossa bandeira não arca com as contingências do eurocentrismo, inerente ao capital industrial emergente. Ela se confronta com o sistema de poder mundial do capitalismo financeiro e oligopolista (ou monopolista). E nos dita: ‘proletários de todas as raças do mundo, uni-vos’.

A consequência é a mesma: eliminar a classe como meio de exploração do trabalhador e de preservação das desigualdades e das iniquidades que ela determina, inclusive raciais. Isto significa, em nossa sociedade, ‘proletários, negros e brancos, uni-vos para forjar a sua sociedade, não a dos capitalistas’. O que não é simples, porque o negro deve emancipar-se coletivamente em termos de sua condição racial e como força de trabalho”.

Mais do que emancipar-se de sua condição, Florestan aponta ainda que eles terão um papel fundamental na superação do conjunto das contradições:

“o negro vem a ser a pedra de toque da revolução democrática na sociedade brasileira. A democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatizarão e de segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça.”

Da parte que cabe a nossa contribuição para este processo histórico, cada passo deve ser dado pedagogicamente com aqueles e aquelas que vivem esta realidade e guardam este potencial aprisionado sob um manto perverso de violência. Ninguém em nenhum outro lugar vai conseguir expressar o que ele significa, como resumo Simone:

“Então, esse racismo contra as mulheres negras só nós sabemos falar o que é, só nos que vivenciamos todos os dias, sinceramente, mais uma vez eu digo: eu não sabia que o racismo era tão violento e mais violento ainda quando as pessoas te dizem: “você não sofre racismo, isso você fica falando ai”. Eu já ouvi várias vezes, quando você vai fazer fala que: “você é mulher negra de alta de morro cê tem que parar de falar isso não tem racismo não, o racismo não existe não”. Quando uma pessoa branca fala isso com a gente, não desfazendo das pessoas brancas, espero que minha colocação seja entendida, só sabe o que é racismo quem é negro gente, quem tem essa cor na pele, quem tem alma que desde dos nossos antepassados lutam com unhas e dentes pra sobreviver, só sabe o que é quem tem essa cor pele, essa cor linda, maravilhosa, essa cor de resistência.”

*Thiago Alves é jornalista e militante do MAB na Bacia do Rio Doce.

*Texto feito em colaboração de Thaís Lobo, estudante do 2º período de Direito da Faculdade de Direito de Ipatinga (MG), que é integrante de um grupo de estudantes de direito voluntários do MAB que atuam no Projeto MEMÓRIA E HISTÓRIA: A VIDA E A LUTA DOS BARRAQUEIROS E BARRAQUEIRAS DA BR 381, EM PERIQUITO. Através do projeto, os estudantes realizam a decupação de entrevistas em uma iniciativa do Movimento no Médio Rio Doce. Thaís também contribuiu na decupação dos áudios das entrevistas deste texto.

Conteúdos relacionados
| Publicado 21/12/2023 por Coletivo de Comunicação MAB PI

Desenvolvimento para quem? Piauí, um território atingido pela ganância do capital

Coletivo de comunicação Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Piauí, assina artigo sobre a implementação de grandes empreendimentos que visam somente o lucro no território nordestino brasileiro

| Publicado 11/01/2022 por Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB

NOTA | Tragédias em MG: o resultado de um modelo que produz destruição e morte

Diante de chuvas intensas no estado, comunidades que vivem no entorno de barragens de água e rejeitos da mineração sofrem com a negligência de grandes empresas que colocam atingidos em situação de extrema vulnerabilidade

| Publicado 23/10/2024 por Coletivo Nacional de Comunicação do MAB

Em Londres, MAB e atingidos da Bacia do Rio Doce cobram justiça para Mariana

Julgamento em Londres do caso de Mariana é uma das maiores ações ambientais coletivas do mundo