Comunidades ribeirinhas das bacias do Rio Corrente e do Rio Carinhanha se mobilizam permanentemente para impedir a instalação de Centrais Hidrelétricas e Usinas Hidrelétricas na região, temendo pela degradação dos ecossistemas dos quais extraem sua sobrevivência. Recentemente, projetos já arquivados têm sido rediscutidos, colocando essas populações sob ameaça.
Publicado 27/05/2021 - Atualizado 30/04/2024
Há 22 anos, os atingidos por barragens lutam contra os projetos de construção de hidrelétricas na Bacia do Rio Corrente e do Rio Carinhanha, no Oeste da Bahia. Durante os últimos 20 anos, as comunidades locais estiveram organizadas através do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que fortaleceu o processo de luta e resistência na região.
O primeiro foco de resistência que inspirou e inspira todos os atingidos do território a fazerem o processo de luta por direitos, foi o impedimento da construção da Barragem de Sacos e Gatos, ainda no final da década de 90. Desde esse período, os atingidos de toda a região vem sendo assediados por diversas empresas construtoras de barragens que são proponentes de projetos como Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs), Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) a Usinas Hidrelétricas (UHEs).
Os principais projetos são a PCH da Aldeia/Fazenda Diogo, localizada no Rio Corrente, nos municípios de Correntina e Santa Maria da Vitória; o projeto da PCH Arrodeador, no Rio Formoso, nos municípios de Coribe e Jaborandi e os projetos das PCHs Caiçara e Gavião, ambas no Rio Carinhanha, no município de Cocos, na divisa entre Bahia e Minas Gerais.
A maior conquista dos atingidos nesse contexto tem sido manter seus modos de vida tradicionais em seus territórios e conviver com seus rios correndo livres, sem intervenção de barragens.
No caso da PCH da Aldeia/Fazenda Diogo no Rio Corrente, projeto iniciado em 2004, a empresa Neoenergia, holding do Grupo Iberdrola, na época havia tentado realizar um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) para instalação da obra que seria causadora de significativa degradação do meio ambiente. Durante o processo, as comunidades locais ribeirinhas foram completamente ignoradas. Os moradores não foram consultados a respeito da construção da barragem e nem informados sobre desdobramentos da abertura do processo de licenciamento ambiental. Configurou-se, assim, a violação do direito à informação e à participação, listado no relatório do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) de novembro de 2010. Além disso, foi desrespeitada a Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas, Tribais e Tradicionais, de junho de 1989 [2], da qual o Brasil é signatária. O pacto exige que os povos indígenas e tradicionais, como os de Fundo e Fecho de Pasto, sejam consultados sobre quaisquer medidas que possam afetá-los diretamente.
O projeto afetaria direta e indiretamente mais de 500 famílias das comunidades ribeirinhas de Aldeia, Caraíbas, Coragina e Nova França, no município de Santa Maria da Vitória e as comunidades de Aldeia/Fazenda Diogo, Jenipapo e Silvânia, no município de Correntina. As comunidades fizeram um processo intenso de resistência e, apesar das diversas tentativas da empresa, o projeto não avançou.
Outra proposta conflituosa era a da PCH de Arrodeador, no Rio Formoso (Bacia do Rio Corrente), que atingiria os municípios de Jaborandi e Coribe. Em 2015, a empresa DataTraffic S.A. havia judicializado a construção do empreendimento através de um Mandato de Citação contra 17 trabalhadores, a fim de conseguir permissão para adentrar o território onde pretendia realizar um estudo de impacto ambiental, sob pagamento de multa de 500 reais por dia para quem descumprisse a ordem judicial. Mais uma vez, não houve a consulta prévia nem a possibilidade de participação dos atingidos, o que caracteriza a violação do direito de acesso à justiça. Em resposta a essa arbitrariedade, as comunidades se mobilizaram para impedir a realização do estudo, restringindo o acesso de equipes da empresa e da polícia no território, através de uma articulação feita junto ao Ministério Público do Estado e da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR) da Bahia. Em 2019, a empresa entrou com pedido de desistência do processo.
Ao todo, são 17 anos em que as comunidades da Bacia do Rio Corrente resistem às constantes ameaças do fantasma de diferentes barragens. A partir do dia 12 de fevereiro de 2021, outra empresa – Construnível Construtora Ltda – passou a rondar as comunidades de Silvânia, Jenipapo, Aldeia/Fazenda Diogo, abordando as pessoas com propostas de compra de terra para construção de barragens no mesmo local pleiteado pela Neoenergia e em outros pontos de corredeiras. Mapearam, assim, todo o percurso do rio, o que viola o direito à justa negociação e tratamento isonômico, conforme critérios transparentes e coletivamente acordados. Essa mesma empresa assediou as comunidades ribeirinhas de Aparecida do Oeste, Palmeiras e Catolés no Rio Arrojado. Esse tipo de abordagem também viola direitos humanos como o direito de proteção à família e aos laços de solidariedade social ou comunitária, direitos às práticas e aos modos de vida tradicionais, ao acesso e preservação de bens culturais, materiais e imateriais.
Também em 2021, no mês de fevereiro, a empresa HY Brazil Energia S.A. deu início a um processo conflituoso com as comunidades ribeirinhas do Rio Formoso nos municípios de Jaborandi e Coribe. A proposta de construção de uma barragem no local do antigo projeto de Gatos e Sacos. Além de atingir diretamente as comunidades do entorno, o empreendimento alteraria os modos de vida das mesmas comunidades já atingidas pelo projeto de PCH do Arrodiador.
Segundo os moradores, a empresa alegou ter permissão do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA) para entrada nas propriedades e realização de Estudo de Impacto Ambiental. A informação não foi confirmada pelo órgão em reunião posterior com o MAB. O objetivo da empresa é construir uma Usina Hidrelétrica (UHE) na Cachoeira Grande do Rio Formoso. O projeto batizado de UHE Veredas teria cerca de 37 metros de altura.
Junto à problemática das barragens, essas mesmas comunidades atingidas têm seus territórios ameaçados pelo projeto de Ferrovia de Integração Oeste Leste (FIOL), que se constitui em um corredor de escoamento de minério do sul do estado da Bahia (Caetité e Tanhaçu) e de grãos do Oeste baiano. Seu traçado estende-se entre os municípios de Figueirópolis (TO) e Ilhéus (BA), totalizando cerca de 1.500 km de extensão.
O projeto foi concedido à VALEC – Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. . A pretensão é que futuramente a rota seja integrada à Ferrovia Norte-Sul que cruzaria três bacias hidrográficas: Bacia dos Rios Tocantins-Araguaia, do Rio São Francisco e a Bacia do Atlântico Leste. Localizadas em regiões de vasta riqueza em sua fauna e flora, elas historicamente sofrem um intenso processo de destruição resultando em seu rápido desaparecimento, especialmente no Cerrado do Oeste da Bahia, afetado também pela expansão agrícola hoje denominado MATOPIBA, atingindo os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
O projeto esteve parado nos últimos anos, mas em 2021 ensaiou-se sua retomada. A ameaça trouxe à tona a urgência de participação popular no projeto, dado que as populações do Oeste da Bahia seriam duplamente atingidas pelos projetos de construção de barragens e da ferrovia, o que demonstra que há um projeto de desenvolvimento em curso no país em que a população não é protagonista.
Conforme dados do Geografar (2012), havia 12 barragens projetadas para o município de Cocos, bacia do Rio Carinhanha. Duas delas (PCHs de Caiçara e Gavião) provocaram um conflito intenso com as famílias atingidas, uma vez que já tinham estudos de impacto ambiental em estágio avançado.
A estimativa é que 1500 famílias seriam atingidas direta ou indiretamente apenas pelos projetos de PCHs Jaborandi e Coribe, considerando-se apenas o território baiano, uma vez que o Rio Carinhanha estabelece os limites com o estado de Minas Gerais. Conforme moradores, ainda houve novas investidas de empresas construtoras de barragens no município de Cocos, sendo que representantes dessas companhias foram vistos entrando nas áreas no mês de março de 2021.
Esses últimos conflitos ocorrem num período crítico de crise sanitária mundial, em pleno agravamento da Pandemia do Covid-19, o que coloca em risco a vida das pessoas nas comunidades, contrariando a orientação de órgãos estaduais e internacionais de saúde: isolamento social para se evitar o contágio. Esta atitude, além de atentar diretamente contra a vida da população ribeirinha, colocando-a em risco de contaminação, viola diversos direitos humanos, conforme afirma o relatório do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), já citado.
Essas mesmas violações de direitos humanos ocorreram e seguem ocorrendo na região Oeste da Bahia, o que faz com as populações reajam para minimizar os impactos em seus modos de vida, uma vez que são desassistidas por uma legislação específica e pelos órgãos ambientais regionais.
É importante destacar que essas retomadas de projetos de construção de barragens para produção de energia elétrica ocorrem em um período em que “cerca de 37% de toda energia elétrica do país está excedente, o que equivale a 33 mil MW médios”, de acordo com Gilberto Cervisky, especialista nas temáticas do setor energético [3]. Isso evidencia que o objetivo principal da indústria da eletricidade é de acumular ainda mais lucros às empresas, contrariamente ao que afirmam, de que serviria a um interesse nacional de desenvolvimento”.
O pano de fundo em torno desses projetos de infraestrutura que atingem as comunidades é o controle sobre as águas da região Oeste da Bahia, que se destaca no cenário nacional como uma das regiões do Nordeste e do Brasil produtoras de água e como fronteira agrícola. Um dos argumentos para produção de energia é o de impulsionar a produção do agronegócio já praticado na região, sendo que a construção da FIOL serviria como meio de escoamento dessas monoculturas.
Os atingidos por barragens organizados no MAB têm feito diversas denúncias sobre esses processos e buscado diálogo junto aos órgãos ambientais como o INEMA, e outros órgãos do governo do estado, na perspectiva de garantir os direitos das populações atingidas. Ao longo dos anos de resistência no Oeste da Bahia, também foram feitas denúncias junto ao Ministério Público Estadual sobre as violações, que ocorrem mesmo em processo anterior às construções de barragens. Considerando-se o passivo histórico do Brasil em relação à segurança jurídica no que diz respeito aos direitos e proteção das populações atingidas, o MAB, junto ao deputado estadual Marcelino Galo (PT), pleiteou o Projeto de Lei número 23.483/2019, que estabelece a Política Estadual dos Direitos das Populações Atingidas por Barragens no estado da Bahia (PEAB). O projeto segue em tramitação na Assembleia Legislativa do estado da Bahia.
As populações atingidas do Oeste da Bahia seguem em resistência na defesa de seus territórios e rios contra um projeto de destruição ambiental e social que esgota não apenas a capacidade de manutenção e reprodução da vida, mas também a capacidade de construção de um projeto soberano e popular para todo o povo brasileiro.
[1] MAB, Movimento dos Atingidos por Barragens. Violação dos Direitos Humanos na Construção de Barragens – síntese do Relatório da Comissão Especial “Atingidos por Barragens” Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Disponível em:
www.mpsp.mp.br
[2] Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais.Disponível em:
oas.org
[3] O preço da luz é um roubo? É! Saiba o porquê. Disponível em: terrasemmales.com.br