Carta aberta de juristas brasileiros sobre o caso do rio Doce

MAB, em articulação com juristas, denuncia uma situação jurídica complexa na bacia atingida pelo crime em Mariana, onde violações de direitos permanecem

Foto: Isis Medeiros

O rompimento da barragem de Fundão, ocorrido em 5 de novembro de 2015, atingiu cerca de 500 mil pessoas, destruiu as comunidades de Bento Rodrigues, Gesteira e Paracatu por completo, deixando um rastro de devastação ao longo de 650 km de extensão do Rio Doce, bem como da região litorânea do Estado do Espírito Santo, registrando 20 mortes e severos impactos sociais e ambientais. Passados mais de cinco anos, o processo de reparação pouco progrediu. Nenhum reassentamento foi construído, não houve responsabilização criminal dos envolvidos e das envolvidas, e uma série de acordos foram sistematicamente descumpridos ante a completa inefetividade da Fundação Renova, o que somente agrava a situação das populações atingidas, prejudicando o direito à reparação integral e ao pleno acesso à justiça. 

Ao contrário, o que se vê na imprensa são notícias de ações sistemáticas das empresas Samarco, Vale e BHP, através da Fundação Renova, para cortarem direitos das comunidades atingidas e se furtarem ao cumprimento dos Acordos. No ápice da pandemia da COVID-19, cortaram milhares de auxílios financeiros e até hoje questionam o reconhecimento de áreas impactadas e o direito de comunidades à reparação, fomentando a judicialização e a paralisação das medidas de reparação. 

Ao longo do mês de março deste ano, o Observatório da Mineração publicou vídeos de reuniões do juiz do caso, Drº. Mário de Paula, da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, orientando advogados, advogadas e segmentos das comunidades atingidas em como atuar no caso, a fim de que adotassem o modelo indenizatório sugerido pelas empresas, o que esvazia a discussão no processo principal. Tal procedimento destoa dos previstos nos acordos judiciais que levaram anos de mesa de negociação, bem como viola nitidamente o art. 145 do CPC.

Tais reuniões não foram convocadas como atos processuais, seja como audiência pública ou como audiência judicial e, não se encontram documentadas formalmente nos autos, violando o dever de publicidade, moralidade e imparcialidade pela visível ausência de tratamento isonômico entre as partes envolvidas no processo. Conforme veiculado na imprensa, inúmeras ações ajuizadas posteriormente foram conduzidas em segredo de justiça, sem a devida participação das instituições de justiça. Como menciona o MPF em arguição de suspeição: “Esses procedimentos foram, portanto, iniciados sem protocolo formal de petição (envio por email), sem despacho nos autos principais a que se referem e sem intimação das Instituições de Justiça que atuam nos autos principais (p.5)”. Ademais, causaram grande impacto nos territórios, provocando aglomerações em plena crise sanitária.

Desde o início do processo, em 2015, a gravidade da ausência de imparcialidade pelo juiz do caso vem sendo progressivamente constatada, em palestras e entrevistas proferidas nas quais explicita a  sua interpretação sobre o caso, como também a partir do tratamento desigual dado às instituições de justiça frente às empresas, chegando ao absurdo de – reiteradamente – não intimar o Ministério Público Federal (MPF), autor da ação principal, para ciência de movimentações processuais e decisões, inclusive colocando inúmeros atos processuais sob sigilo. Esses posicionamentos comprometem a imparcialidade necessária para a função jurisdicional, violando pressupostos processuais. 

Os autos da Ação Civil Pública nº. 1016756-84.2019.4.01.3800 são um “show de horrores” de descumprimento do devido processo legal. Como bem denunciam há tempos diversas organizações, alguns atores do Poder Judiciário brasileiro têm se nomeado como os corretores da democracia brasileira e, em nome da resolução de casos complexos, relativizam garantias constitucionais e distorcem os regramentos básicos atinentes ao devido processo legal. Cabe lembrar que no Sistema de Justiça não deve haver heróis e justiceiros, mas sim funcionários públicos submetidos ao ordenamento jurídico brasileiro, e não acima dele.

A gravidade dos fatos revelados à sociedade brasileira sobre a condução processual neste caso impõe que as condutas sejam apuradas com seriedade, sendo de imediato nomeado um juiz ou uma juíza substituto/a ao caso, tendo em vista o premente perigo de danos irreparáveis a essas já cansadas vítimas. O sistema de justiça brasileiro precisa ter a confiança de seus cidadãos e suas cidadãs como elemento fundamental da democracia. Não podemos seguir admitindo irregularidades graves, que violam garantias constitucionais, em nome de uma resolução momentânea.

Casos como o desastre tecnológico do Rio Doce são complexos e de difícil solução. Visto que confrontam interesses inconciliáveis entre as empresas e as vítimas, permeados pela responsabilidade do Estado na tutela coletiva de direitos, em um cenário de assimetria de poderes. Todas as tentativas de acordos e resolução até agora mostraram-se frustradas por buscar soluções imediatistas, sem a necessária participação dos envolvidos e a construção de soluções estruturantes. Por isso, a gravidade da parcialidade suscitada coloca todo o processo em insegurança jurídica, o que certamente revitimiza as comunidades atingidas, favorecendo a impunidade e a repetição de crimes socioambientais desta grandeza. 

Assim, nós, juristas brasileiros(as) e organizações subscritas abaixo, exigimos que a denúncia de parcialidade seja plenamente investigada e seja garantido o devido processo legal na ação de reparação das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, que há mais de 5 anos aguardam por justiça.

Belo Horizonte/MG, 28 de abril de 2021

Assinam:

Joaquim Shiraishi Neto, advogado

Gilberto Bercovici – Professor Titular da Faculdade de Direito da USP

Carlos Frederico Marés de Souza Filho – Advogado 

Gleisi Hoffmann- advogada 

Fernando Haddad- professor USP

Jacques Távora Alfonsin- Advogado

Eugênio Aragão- Advogado, Professor da UnB e ex-Ministro da Justiça

Carol Proner – ABJD

Tatiana Ribeiro de Souza – Professora UFOP

Maria Rosaria Barbato – Professora UFMG

Julia Ávila Franzoni, Advogada Popular e Professora da FND-UFRJ

Sérgio Staut Jr – professor na UFPR

Enzo Bello – professor UFF

Leandro Gorsdorf – Professor UFPR 

Manoela Carneiro Roland – professora UFJF

Ricardo Prestes Pazello- professor UFPR

Tchenna Maso- advogada popular

Lenir Correa Coelho, advogada popular

Ricardo Quintino Santiago – Advogado

Daisy Ribeiro- advogada popular

Pedro Gomes- advogado popular

Vanessa Ferreira Lopes- advogada e doutoranda PPGD UFF

Iara Sánchez Roman – advogada popular

Anna Galeb – advogada popular

Gladstone Leonel Jr – UFF

Flávia Máximo – Professora UFOP

Daniel de Faria Galvão – Professor da UFJF e Doutorando UFMG

Ricardo Quintino Santiago – Advogado 

Artur Freixe das Colito- Advogado

Arthur Bastos Rodrigues – advogado

Josiane Aparecida Grossklaus – advogada popular

Pedro Gomes Andrade – advogado popular

Daiane Machado- advogada popular

Claudiane Aparecida de Sousa – professora universitária e advogada popular

Maria Augusta Ferreira, Advogada e autora de livros de Direito e Gestão Ambiental 

Rafaela Cacenote – Advogada popular

Elisângela Machado Côrtes – Defensora Pública Federal 

Iara Sánchez Roman – advogada popular 

Maiara Bitencourt de Lima – advogada popular 

Leador Machado- Juiz do trabalho aposentado

Marcelo M Pereira – Advogado

Karine Agatha França- pesquisadora

Edilson Francisco Raposo de Almeida – Advogado 

Milena Franceschinelli – Rede Brasileira de Conselhos -RBdC 

Alexandra Montgomery – Advogada popular

Mariana Prandini Assis – Advogada popular e pesquisadora na Universidade de Brasília

Alessandra Farias Pereira – Advogada

Érika Lula de Medeiros – Advogada popular 

Thais Giselle Diniz Santos – Advogada popular

Denise da Veiga Alves – Advogada popular e feminista

Clara Moreira- Advogada Popular Coletivo Margarida Alves

Lilian Balmant Emerique – INPODDERALES

Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes- advogado Bahia

Gustavo Seferian – Professor da Faculdade de Direito da UFMG

Ana Maria Alves Machado- Advogada

Augusto Luiz de Aragão Pessin – Advogado

Alessandra Jacobovski – Advogada popular

Isabel Cortes Da Silva Ferreira – Advogada

Sara Brigido de Oliveira – Advogada Popular

Daniela Muradas-  UFMG

Matheus Karl Schmidt Schaefer – Advogado

Breno Ribeiro – Pós graduação UFMG

Judith Caliman – Advogada

Guilherme Cavicchioli Uchimura – UFPR

Ricardo Miranda Braga – Advogado

Gláucia Maria Teodoro Reis – Advogada

Aline Maria dos Santos Silva – Advogada popular

Anna Carolina Lucca Sandri – Advogada popular

Jonathan Hassen – Advogado

Philippe Oliveira de Almeida- Professor de Filosofia do Direito na UFRJ, coordenador do grupo de pesquisa CERCO – Controle Estatal, Racismo e Colonialidade

Pedro Pompeo Pistelli Ferreira – Doutorando (UFPR)

Bárbara Górski Esteche – Advogada

Ana Júlia Guedes Bonifácio – Advogada

Bruno Gabriel Kassabian – Advogado

Álvaro Dias Feitosa – Advogado

Letícia Zampier – Advogada popular

Rawy Sena – Advogado Popular – OAB/GO 54405

Jana Caroline Farias Melo – Advogada

Marleide Ferreira Rocha- Advogada popular

Henrique Domingos – Advogado

Ricardo Gebrim- Advogado

Marcio Fernandes da Silva- Advogado

André Felipe Bandeira Cavalcante – Bacharel em Direito/UFRN

Bruna Aleixo – Bacharel em Direito

Ranielle Caroline de Sousa – (ICHS/CUA/UFMT)

Lucas Nunes Nora de Souza – Advogado

Julianne Melo – Advogada popular/ RENAP-CE

Matheus Soares Ferreira- Advogado

Emiliano Maldonado- Advogado popular Renap

Arleth Gonçalves- Advogada

Phillipe Cupertino Salloum e Silva – (UEG/UFRJ)

Jefferson Nascimento- Advogado em direitos humanos

Laura Oliveira – Advogada

Vinicius de Lavigne Costa- Advogada

Carina Rocha de Macedo – Bacharela em direito pela UFRGS

Luiza Cabistani- Advogada

Fernanda Lage- Advogada

Tobias Morato- Advogado Público

Simone Castro – Advogada pública

Fernanda Coelho Carvalho – Advogada

Débora Cristiane Rocha – Advogada

Fernanda Maria vieira – Nepp-dh/ Ufrj

Ricardo Miranda Braga- Advogado

Sebastião Erculino Custódio – Advogado – militante do MPA

Renata Gomes da Silva – Advogada

Deborah Sales – Defensora Pública/DPRJ

Cryzthiane Andrade Linhares – Advogada

Raoni Bielschowsky- Professor da Faculdade de Direito da UFU

Pablo Leurquin – UFJF-GV

Marcelo Cafrune – Doutor em Direito, professor adjunto na Faculdade de Direito (FURG)

Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho – Advogado

Stacy Torres – Associada Instituto Pólis

Samantha Vilarinho Mello Alves. Defensora Pública. DPMG

Ana Paula Costa Barbosa – Defensora Publica

Priscila Ferreira Marques Ofrante – DPES

Júnia Roman Carvalho – Defensora pública

Rafaela Faria Viana Magnta- Defensoria Pública 

Maria Cecília Pinto e Oliveira – Defensora Pública

Maria Augusta Ferreira- Advogada e autora de livros de Direito e Gestão Ambiental

Paola Portes – Advogada

Cleide Aparecida Nepomuceno – Advogada

Ana Flávia Oliveira Freitas – Advogada

Maria Cecília Pinto e Oliveira – Defensora Pública

Ana Flávia Soares Diniz – Defensora Pública

Felipe Bley Folly – Advogado popular

Ana Paula Costa Barbosa – Defensora Publica

Renata Cristina Torres Maia Coelho – MPMG

Ronaldo T Pagotto – Advogado, SP.

Movimento dos Atingidos e das Atingidas por Barragem (MAB)

JusDh – Articulação Justiça e Direitos Humanos

Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos

Terra de Direitos

Justiça Global

Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)

Rede Social de Justiça e Direitos Humanos

Forúm Justiça (FJ)

Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais (GEPSA/UFOP)

LABÁ – Direito, Espaço & Política (UFRJ, UFPR, UNIFESP)

Comissão Arquidiocesana de Justiça e Paz de Belo Horizonte

Conselho Pastoral dos Pescadores

Sociedade Sinhá Laurinha

Sinad Sindicato dos Advogados MG

Movimento de Assessoria Jurídica Universitária Popular (MAJUP) Isabel da Silva

Centro Acadêmico 22 de Agosto

Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – Paraná (MTST/PR)

Coletivo Margarida Alves

IDPN – Instituto de Defesa da População Negra

Núcleo de Estudos Internacionais (NEI) – FDUSP

APD – Associação Advogados Públicos para a Democracia

CAHS – Centro Acadêmico Hugo Simas (Direito UFPR)

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