Estudo do Movimento dos Atingidos por Barragens mostra o cenário da entrega da água para grandes empresas privadas
Publicado 22/03/2021
Para nós do MAB, a água é um bem comum, um direito, é sagrada, é vida; para o capital, a água é simplesmente algo com um enorme potencial de lucro. Cada vez mais, as elites vêm investindo em políticas que visam transformar este bem tão precioso e necessário para a vida humana em mercadoria.
No Brasil, a água não é considerada propriedade privada, no entanto, cada vez mais os capitalistas estão tentando mudar essa condição e a privatização da água é uma pauta urgente para os que querem transformá-la em mercadoria. Basta observarmos a urgência com que a legislação brasileira vem sendo mudada para entendermos os reais interesses dos grandes empresários do setor.
O Brasil concentra 12 % de toda a água doce do mundo, é uma das maiores reservas do mundo, e não é à toa que no Congresso Nacional tem avançado o Projeto de Lei que estabelece o Mercado das Águas, ou seja, transformar a água em uma commodity.
Com o controle do tratamento e distribuição da água, o capital dá um passo importante no controle dos aquíferos, rios e nascentes, por isso se faz tão necessário para eles privatizar o saneamento básico.
No documento Cobranças pelo uso de recursos hídricos no Brasil: caminhos a seguir (XXII Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos, Florianópolis, 28 de novembro de 2017), um grupo ligado ao Banco Mundial dá uma ordem ao Brasil para que nosso país, com urgência, comece a cobrar pela água consumida pelo povo. Fica claro que a intenção dos governos não é melhorar a qualidade de vida do povo, e sim atender as orientações do capital financeiro.
Para nós do MAB, a privatização dos serviços de saneamento, atualmente orquestrada por Paulo Guedes, ministro da economia de Bolsonaro, é o principal caminho para a privatização da água.
Hoje, 90% do serviço de saneamento no Brasil é prestado por empresas estatais, e o primeiro passo para ter o controle da água é afastando as pessoas do direito de acesso a ela. Precificar, dar um dono para a água, este é o real objetivo das privatizações, eles nunca pensaram em melhorar o acesso ao saneamento. A prova disso é que nunca investiram na universalização por meio de nossas empresas estatais.
Por isso é necessário advertir: o processo de concessão do saneamento que vem sendo feito no Rio de Janeiro tende a se espalhar pelo Brasil, pois na verdade, o Ministério da Economia tem ordens a cumprir, e para eles as prioridades não são os interesses do povo, mas sim do mercado financeiro.
Breve resgate histórico da privatização da água no Rio de Janeiro
Desde o golpe que tirou do poder a presidenta Dilma, em 2016, o governo federal vem intensificando as tentativas de privatização de setores essenciais para a soberania do país, principalmente a água e a energia, mas também os Correios, a Casa da Moeda, os bancos públicos. A Petrobrás, a Eletrobrás e suas subsidiárias foram alvos dessa “operação” que já vinha sendo implantada desde o governo de Michel Temer, mas ganhou mais força no governo Bolsonaro.
No estado do Rio de Janeiro, o governo investiu muito ao longo desses anos na privatização da CEDAE, a Companhia Estadual de Água e Esgoto do Rio de Janeiro. Desde 2017, vem sendo feitas agiotagem com a empresa, oferecendo-a como garantia de empréstimos financeiros; trocas, oferecendo sua privatização como moeda para o perdão de dívidas com a União; intervenções no quadro gestor e de funcionários da empresa, promovendo boicotes referentes às negociações e à serviços prestados à população.
Um exemplo aconteceu em 2019, quando Wilson Witzel assumiu o governo do estado e nomeou Hélio Cabral como presidente da estatal. Cabral foi conselheiro de administração da Samarco, indicado pela Vale, quando houve o rompimento da barragem de Fundão, em novembro de 2015, em Mariana (MG). O Ministério Público Federal (MPF) acusou Cabral de saber dos riscos de vazamento de rejeitos de mineração e ele foi um dos 22 réus do caso. Na época, era fundamental para o governo do estado ter na direção da empresa alguém especializado em colocar o lucro acima da vida.
Outro exemplo claro dessas intervenções foi quando, em 2020, a CEDAE demitiu 54 funcionários que atuavam diretamente no tratamento da água da estação de tratamento do Sistema Guandu. A partir de então, a água passou a chegar com gosto e cheiro ruins nas casas da população. Isso causou grande repercussão e revolta, e a grande mídia sempre apontou como solução a imediata privatização da estatal.
A falsa universalização do saneamento
Apesar do alto investimento em propaganda e desmoralização da empresa prestadora do serviço de saneamento no estado, não é fácil privatizar uma estatal com o tamanho e a importância da CEDAE. No entanto, com a aprovação do novo marco regulatório do saneamento, privatizar os serviços passa a ser a alternativa mais viável a governos alinhados com o capital privado. Com esse caminho aberto, o Ministério da Economia, através do BNDES avança então em uma ofensiva poderosa: dessa vez não mira diretamente na CEDAE, vai direto na água.
O projeto intitulado Universalização do Saneamento Básico no Rio de Janeiro foi apresentado logo após a aprovação do novo marco regulatório do saneamento. Sem a participação popular, sem passar por votação na Assembleia Legislativa do estado, nem nas câmaras de vereadores das cidades, o governo propôs entregar ao setor privado a prestação dos serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto em 64 municípios do Rio de Janeiro. Esse número reduziu, e atualmente 35 municípios tem interesse em aderir ao projeto. Mas eles seguem em seus objetivos e pretendem entregar os serviços, que até então são prestados pela CEDAE a empresas privadas por meio de uma concessão que vai durar 35 anos. E querem fazer isso ainda no primeiro semestre de 2021.
Um detalhe importante a se considerar é que apesar da modelagem apresentada pelo BNDES dizer que a CEDAE não estará se tornando uma empresa privada, a concessão dos serviços de saneamento consiste na privatização da Companhia, pois com a concessão, a estatal passará a operar somente na captação e no tratamento da água bruta. Isso terá um impacto muito grande na vida do povo fluminense, além do mais, tira da CEDAE o seu principal papel social que é o de garantir a água e o esgotamento sanitário para o povo. Devemos estar certos de que eles continuarão o processo de desmonte da CEDAE até que tenham total controle da água no estado.
O estado dividido em blocos
O projeto de concessão do saneamento prevê a divisão do estado em quatro blocos, podendo comercializar o saneamento no estado por quatro diferentes empresas. Os blocos são compostos da seguinte maneira:
Municípios | Valor mínimo da outorga | |
Bloco 1 | Aperibé, Cambuci, Cachoeiras de Macacu, Cantagalo, Casimiro de Abreu, Cordeiro, Duas Barras, Magé, Maricá, Miracema, Itaocara, Itaboraí, Rio Bonito, São Gonçalo, São Sebastião do Alto, Saquarema, São Francisco de Itabapoana e Tanguá, mais a Zona Sul da Capital. | R$ 4,036 bilhões |
Bloco 2 | Miguel Pereira e Paty do Alferes, mais a Barra da Tijuca e Jacarepaguá, na Capital | R$ 3,172 bilhões |
Bloco 3 | Piraí, Rio Claro, Itaguaí, Paracambi, Seropédica e Pinheiral, mais a Zona Oeste da Capital | R$ 908,1 milhões |
Bloco 4 | Belford Roxo, Duque de Caxias, Japeri, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados e São João de Meriti, mais o Centro e a Zona Norte da Capital. | R$ 2,503 bilhões |
Ao todo, está previsto arrecadar cerca de R$ 10, 6 bilhões com o leilão. Destes, 80% ficarão com o estado do Rio, e 15% serão distribuídos entre os municípios que fazem parte do processo de concessão, proporcionalmente de acordo com o número de habitantes. Os outros 5% serão destinados ao Fundo de Desenvolvimento da Região Metropolitana. Caso o valor arrecadado supere os R$ 10, 6 bilhões, o montante que ultrapassar este valor será dividido em 50% para o estado e 50% para os municípios.
Nesse modelo, o município de Cachoeiras de Macacu, que se encontra no Bloco 1 e que tem uma enorme importância para o abastecimento hídrico no Leste Metropolitano, receberá uma quantia mínima deste valor, apenas 0,3025% da outorga fixa, o equivalente a R$ 12,208 milhões. Fica claro que a principal intenção aqui é a compra das gestões municipais a fim de aprovarem o projeto, quando o correto seria utilizar valores como estes para o reflorestamento, recuperação de nascentes, despoluição de rios, educação ambiental, entre outras coisas que visem aumentar a quantidade e a qualidade da água ofertada.
Explosão nas tarifas cobradas da população
Olhando para a atual conjuntura e o que as empresas do setor de energia fazem com os preços dos combustíveis e da energia elétrica é impossível não prever um grande aumento na conta de água e esgoto da população fluminense com a privatização dos serviços privados. Sabemos que como o setor elétrico faz, as empresas de saneamento também buscam de qualquer forma justificar aumentos abusivos no preço que cobram pelos serviços, basta olhar os exemplos que temos no próprio estado do Rio de Janeiro em cidades como Nova Friburgo, Petrópolis e Araruama.
A conta que devemos fazer é simples: a nossa conta de luz sempre é calculada a partir do custo de produção mais caro. Ou seja, sempre pagamos como se toda a energia fosse produzida em usinas termoelétricas, e com isso pagamos absurdos na conta. Com a água vai ser assim também, a empresa vai cobrar o custo do tratamento mais caro, como se todos os municípios fossem iguais.
Além disso, sabemos bem que o interesse das empresas nunca vai ser o de melhorar a vida do povo, nesse sentido, não é uma boa opção o que estão fazendo com o saneamento no Rio de Janeiro, essa conta será cobrada de nós. Esses R$ 30 bilhões que serão investidos no saneamento não sairão de outro lugar a não ser das contas de água e esgoto que o povo pagará. Independente se seu bairro será ou não contemplado com obras de saneamento, a conta será distribuída a todas as famílias, tal como é na conta de luz.
O BNDES não foi claro no que disponibilizaram para a leitura a cerca das tarifas, somente apontam que no modelo proposto a conta seria 14% mais barata do que é hoje. Em fevereiro de 2021 o Tribunal de Contas do Estado cobrou isso do governo, pois não tem clareza quando falam de tarifa. Certamente após os leilões esse assunto será esclarecido nas primeiras cobranças.
Acessibilidade comprometida
Uma das grandes cobranças que vem sendo feita por movimentos sociais e por trabalhadores e trabalhadoras da área do saneamento é referente ao que tem sido chamado “áreas irregulares”.
Nessas áreas, segundo o projeto, as empresas não precisariam priorizar obras de saneamento nos primeiros 20 anos da concessão. Vejam o que diz o caderno de encargos do contrato: “A obrigação da Concessionária estará adstrita à realização de um determinado volume de investimentos ao longo dos primeiros 20 (vinte) anos da celebração do contrato de concessão. A concessionária alinhará com o Estado e a Agência Reguladora, quais serão as áreas irregulares que ele deve investir, devendo ser priorizadas as áreas que atendam aos requisitos (i) de urbanização ou de planejamento de urbanização pelo poder público e (ii) de maiores condições de segurança. […]” (Apêndice Rio de Janeiro, Item: 3.4, página 157).
Sabemos que a prioridade das grandes empresas privadas sempre vai ser o lucro, os crimes da Vale em Mariana e Brumadinho (MG) mostram isso com muita clareza. Sendo assim, entendemos que a prioridade das empresas que ocuparem o papel da CEDAE no estado será ganhar dinheiro com a água. Nesse sentido, comunidades de zonas rurais e principalmente as favelas serão as últimas a receberem os investimentos (se algum dia os receberão), e isso fica claro neste trecho da cartilha Apêndice Rio de Janeiro, citado acima.
Para o MAB, não basta garantir o acesso ao cano de água e rede de esgoto, é necessário garantir o acesso e a acessibilidade, mas o que vemos é que por mais que o Ministério da Economia e o governo do estado apresentem um projeto que pretende “universalizar” o acesso ao saneamento, não olham para as especificidades dos municípios e bairros, e com isso certamente negará o direito aos mais pobres e historicamente excluídos.
Projetos de barragens
Além de todas essas injustiças na prestação dos serviços, que já existem hoje e que tendem a ser intensificadas com a privatização, o projeto de concessão prevê a implementação de duas barragens para acúmulo de água só na região metropolitana. Barragens essas que pretendem tirar de suas terras milhares de famílias e não apresentam direitos para as mesmas.
Os projetos de barragens nos rios Guapiaçu e Tanguá ganham uma nova configuração após a privatização, pois a perspectiva é que sejam construídas pela iniciativa privada.
Para o MAB, é inadmissível que um projeto que se apresenta como a solução para o acesso a água no Rio de Janeiro possa defender construções que, além de matar os dois dos únicos rios limpos que nos restaram na região, não garantem que acumularão água por mais que 15 anos. É uma tecnologia atrasada, demonstra a imaturidade desta concessão, que inclusive não considerou em nenhum momento a opinião dos atingidos e atingidas sobre o tema.
Continuaremos a resistir, pois já provamos através de muitos estudos feitos junto a grandes universidades que a melhor solução para o abastecimento hídrico das casas do Leste Metropolitano é revitalizar nossos mananciais e por fim na desigualdade social, que no final das contas é o que realmente determina quem tem e quem não tem água em casa.
O que fazer diante desses desafios
Para o MAB só a luta organizada é capaz de reverter este quadro que o Rio de Janeiro vive. Não é atoa que estão aproveitando o momento da pandemia para privatizar o saneamento. A pandemia do Coronavírus somada aos enormes ataques que a classe trabalhadora vem sofrendo por parte do governo de Jair Bolsonaro dificulta muito nossas ações. Mas é preciso lutar!
O MAB, somado as demais organizações que compõem a Plataforma Operária e Camponesa da Água e Energia no Rio de Janeiro tem iniciado um processo de construção de espaços de discussão, nos municípios, nos bairros e nas universidades que se intitula Assembleia Popular da Água e Energia, que pretende se estabelecer como um espaço permanente de organização, formação e luta do povo a fim de defender o direito ao saneamento.
Seguiremos na defesa da CEDAE que é nossa, que foi construída com nosso dinheiro e com o suor de seus trabalhadores e trabalhadoras e que precisa servir para os nossos interesses e não aos interesses de empresas privadas. Seguiremos defendendo a estatal, pois sabemos que defender a CEDAE é defender a água, e nós não podemos permitir que nossa água se torne mercadoria.
Convocamos todas as organizações populares a se somarem na construção de espaços de discussão que visem a garantia do direito ao saneamento para a população fluminense, e dessa forma avançar na nossa luta.
No ano em que comemoramos 30 anos do MAB podemos afirmar com clareza que privatizar não é a solução, e que nós atingidos e atingidas não nos calaremos diante destas ameaças.