Quase 200 anos após “grito”, qual independência, de fato, temos?

Com um processo com pouca participação popular, o Dia da Independência em 1882 nos faz refletir o quão colônia o país continua a ser ao atender interesses imperialistas

Em uma contextualização histórica, este artigo traz reflexões sobre as origens na nossa independência; qual caminhos nós percorremos?  Que país temos hoje e o que queremos para os próximos duzentos anos?

“Independência, pero no mucho”

A independência do Brasil ocorreu com fortes contornos de dependência, ausência de autonomia e, sobretudo, de soberania nacional. A independência foi “proclamada” por Dom Pedro I – filho de Dom João VI rei de Portugal, e, portanto o próprio sucessor da coroa portuguesa.

Em 1825, o “Tratado de Paz e Aliança” estabeleceu o reconhecimento de Portugal com relação à independência do Brasil. No entanto, este reconhecimento, que foi mediado pela Inglaterra teve, dentre outras condicionantes, o pagamento por parte do Brasil, a Portugal, o valor de 2 milhões de libras esterlinas, a título de indenização – que seriam utilizados para quitar uma dívida dos portugueses com a Inglaterra. Como o Brasil não dispunha do valor acordado, coube a Inglaterra emprestar o dinheiro.

Essa contextualização rápida demonstra o grau de subordinação do Brasil a antiga metrópole e, especialmente, a potência hegemônica do período – a Inglaterra, nos marcos do que deveria ser a nossa independência, evidenciando uma profunda contradição originária.

“De fato, em 7 de setembro de 1822 houve uma protocolar independência politico-administrativa em relação à Portugal, mas que não significou, em si, um processo de consolidação da nossa soberania, justamente, pela ausência de protagonismo popular e pela falta de ambição para mudanças profundas na sociedade brasileira e na construção e consolidação do Brasil como nação.

O caminho do nacional-desenvolvimentismo

Podemos considerar o processo que desembocou no movimento de 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, como um primeiro salto qualitativo de independência e afirmação da nossa soberania. Ao romper com a hegemonia das oligarquias paulista e mineira, houve um impulsionamento de um processo de industrialização no Brasil, aproveitando a oportunidade histórica oferecida pela crise de 1929, e posteriormente pela segunda guerra mundial.

No entanto, este processo foi marcado, contraditoriamente, até 1945, por conquistas históricas importantes como a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e o reconhecimento do direito ao voto feminino ainda na primeira metade dos anos 30.

Por outro lado, havia um estado forte, repressor e ditador que sufocava as lutas e as organizações da classe trabalhadora na busca por democracia, liberdades e mudanças mais profundas.

Ainda assim, principalmente depois de 1945, os traços de desenvolvimentismo e soberania na política econômica foram se intensificando. Neste contexto, surgiram a Petrobras, a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), a Vale do Rio Doce e a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF). O que gerou fortes contradições com os interesses do imperialismo norte-americano, já consolidado e em franca disputa pela hegemonia mundial contra a União Soviética.

Em seguida, nos anos 60 e 70, a disputa pela hegemonia mundial torna-se ainda mais acirrada, em especial pelo avanço e vitórias das lutas de libertação na África, Ásia e América Latina, e também se intensifica no Brasil.

Os limites do processo de industrialização colocam a necessidade de um protagonismo maior das classes populares e de reformas ainda mais profundas. O governo João Goulart propõe, em 64, as reformas de base, que consistiam principalmente na reforma agrária, acesso à moradia, controle de remessas de lucro ao exterior, estatização de alguns setores, expansão monopólio da Petrobras e reforma eleitoral, permitindo o voto aos militares de baixa patente e aos analfabetos.

No entanto, a reação das elites empresariais e econômicas associadas a maioria das forças armadas, políticos conservadores e católicos reacionários consolidou o golpe militar que instituiu a ditadura civil-militar de abril de 1964 até 1985.

A ditadura militar reprimiu, prendeu, matou, torturou e exilou centenas de mulheres e homens que lutavam por democracia, liberdades, justiça social e condições de vida digna para o povo. Este processo foi implementado e dirigido a partir dos EUA, que orientou e assessorou os regimes ditatoriais em toda América Latina.

Com as contradições do regime e a reação da luta da classe trabalhadora, houve a reabertura democrática. O processo foi lento, seguro e gradual para que mudanças profundas não ocorressem, mesmo com o retorno a democracia liberal, consolidada na constituição de 1988. A constituinte assegurou avanços e direitos importantes, mas não trouxe mudanças profundas e substanciais no sentido da distribuição da riqueza ou estruturas de poder.

Neoliberalismo e a desindustrialização nacional  

A década de 90 representou a consolidação do capital financeiro como hegemônico, com o fim da experiência do socialismo na União Soviética e do predomínio dos EUA como potência imperialista.

No Brasil e na América Latina este processo levou a um choque de políticas e reformas neoliberais que consistiram na retirada de direitos, privatização de setores estratégicos e na abertura e desregulamentação da economia em favor do capital financeiro transnacional, com a desindustrialização interna.

Este processo levou a economia dos países a níveis cada vez piores das condições de vida da população. Ao mesmo tempo, o processo de avanço do capital financeiro sobre a economia fracionou e fragmentou as relações de trabalho e produção, dificultando a ação de resistência dos sindicatos e organizações da classe trabalhadora, que na ausência de uma estratégia politica de luta pelo poder, centrou seus esforços na disputa eleitoral e nas lutas de resistência corporativa.

A ressaca das politicas neoliberais proporcionou o avanço de governos progressistas em quase toda América Latina, que promoveram importantes politicas de inclusão social. Proporcionou também um protagonismo de articulação de interesses de países em desenvolvimento, recolocando o tema da soberania e da independência no horizonte de projetos de nação, criando certa autonomia nos espaços e fóruns multilaterais.

Por outro lado, estes governos progressistas não romperam as âncoras neoliberais na política econômica – pilares da dominação do capital financeiro. Também não aprofundaram mudanças nas estruturas de poder e decisão, apostando as fichas num sistema político altamente corrompido e controlado pelas elites rentistas e oligarquias associadas e subordinadas, especialmente aos interesses do imperialismo estadunidense.

O resultado de deste processo, até agora, é a uma brutal violação à soberania popular, consolidada com o golpe de 2016 e com a criminalização da política e a impossibilidade de eleições livres em 2018, que culminou com a chegada do neofascismo ao posto de direção política da nação.  

Foto: Viviana Rojas Flores

Desafios da luta

A crise sistêmica do modo de produção capitalista não apresenta alternativas dentro dos marcos deste modelo. Ao povo recairá mais miséria, violência e exclusão. É preciso construirmos um processo em direção a superação desta lógica. Às forças populares, sociais e de esquerda não restam muitas saídas. A saídas possíveis pressupõe algumas questões fundamentais e urgentes.

A primeira delas é a questão da unidade das forças de esquerda em nosso país. Unidade entorno de um programa, de um projeto de país, capaz de sinalizar para a superação do modelo de sociedade baseado na exploração e na dominação das classes dominantes sobre o povo, no enfrentamento a todas as formas de opressão, ao processo de mercantilização da vida, de privatização de serviços públicos essenciais à vida, a financeirização da economia e a pilhagem dos recursos e bens naturais de elevada produtividade.

Precisamos urgentemente apontar formar um programa que redefina o papel do Estado; das Forças Armadas, como guardiões da nossa soberania e dos interesses populares, e das policias como defensoras da vida, baseados nos direitos fundamentais. Temos que ter um horizonte que reestruture o sistema financeiro e da dívida pública, que nacionalize e coloque sob controle popular setores como a mineração, energia, telecomunicações e nos meios de comunicação, agricultura, água e transportes. E que a riqueza produzida nestes setores esteja à serviço da universalização e melhoria das condições de vida do nosso povo.

A história dos próximos duzentos anos está em aberto, dentro das possibilidades concretas. Temos de estar convencidos da capacidade do nosso povo, organizado e em luta, capaz de sonhar soberanamente, independentemente e generosamente em construir o futuro desde já. Que a única subordinação possível de aceitarmos seja a da realização das nossas necessidades em sermos livres e felizes.

*Robson Formica é historiador e membro da Coordenação Nacional do MAB

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