Com relator empresário, Senado vota privatização do saneamento básico

O Projeto de Lei n° 4162/2019, votado nesta quarta-feira (24) pelo Senado, é apresentado por elites econômicas e aliados políticos como um avanço para a universalização dos serviços de saneamento básico no Brasil; a realidade mostra que está em jogo um grande retrocesso

Waldemir Barreto / Agência Senado

A fala do ministro de Meio Ambiente, Ricardo Salles, na reunião ministerial do dia 22 de abril, de que a pandemia era um bom momento para “passar a boiada”, ou seja, aprovar reformas de desregulamentação e de simplificação no setor ambiental, atende aos mesmos interesses que estão por trás do Projeto de Lei (PL) 4162, que está na pauta do senado nesta quarta-feira (24).

O projeto que tem por objetivo privatizar o setor do saneamento básico é também um sinal claro para a privatização da água no Brasil. Mais uma vez, um contexto de crise é utilizado para aprovar reformas que beneficiam os mais ricos e que são contrárias aos interesses da grande maioria empobrecida do Brasil.

O relator do PL é o senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), um dos políticos mais ricos do país, cuja família domina várias empresas poderosas, dentre elas, a maior produtora de Coca-Cola no Brasil, que consome enorme quantidade de água e tem interesse direto no projeto de lei.  

O projeto

Enviado pela Presidência da República e aprovado pela Câmara dos Deputados em dezembro de 2019, o novo marco regulatório do saneamento é tramitado atualmente em caráter de urgência pelo Senado, em meio à pandemia do coronavírus, e sua aprovação foi definida pelo presidente Bolsonaro como “prioridade”.

Utilizando como desculpa a vergonhosa falta de acesso ao saneamento básico no país, onde mais de 100 milhões de brasileiros não têm acesso ao serviço, os setores empresariais e seus aliados políticos no governo e no Congresso tentam aprovar às pressas a entrega do setor ao capital privado, e facilitar a venda de estatais.

Segundo o PL, para receber apoio financeiro e técnico da União, os municípios devem privatizar suas estatais de saneamento. Ou seja, o que até hoje era uma possibilidade para estados e municípios, passa a ser uma obrigação. Outra modificação é que a Agência Nacional de Águas (ANA) será a nova reguladora do saneamento básico, cuja colaboração financeira e técnica também está sujeita a adesão dos municípios ao novo sistema.

O projeto irá acabar com o subsídio cruzado, que permitia reaplicar recursos dos municípios rentáveis para os menos lucrativos, priorizando as empresas privadas, que visam lucro. Por isso, existe um alto risco de que a situação permaneça igual ou pior nos municípios mais pobres, e de que o setor privado explore apenas áreas mais lucrativas.

O governo e o relator articulam para que o projeto seja aprovado tal como está no Senado, pois caso seja alterado, deverá passar novamente pela Câmara dos Deputados. Para o deputado federal Glauber Braga (PSOL/RJ), é inaceitável “utilizar um período de pandemia para aplicar uma agenda ultraliberal, que colocará milhões de brasileiros e brasileiras em dificuldades ainda maiores das que já estão enfrentando”.

Foto: Matheus Alves

Argumentos enganosos

No Brasil, dois exemplos marcantes apontam para o desastre que pode significar a privatização do saneamento básico e da água. Em Manaus, esses serviços são controlados e geridos pelo setor privado há 20 anos. No ano 2000, sob o comando na época do grupo Suez, um dos maiores do setor no mundo, foi criada a empresa que hoje se chama “Águas de Manaus”.

Segundo o ranking do saneamento 2020 do Instituto Trata Brasil, somente 12,4% da população da capital do Amazonas é atendida pela coleta de esgoto. A cidade é também uma das capitais com menor média de investimentos no setor.

O Tocantins, mesmo com cifras de cobertura de água e saneamento bem melhores, também é um claro exemplo de como opera a lógica do mercado. Após a privatização da Saneatins, a empresa devolveu ao estado cerca de 78 municípios que eram deficitários, e ficou apenas com o controle de 47 municípios que apresentavam níveis mais altos de rentabilidade.

O deputado Glauber Braga, que acompanha a pauta e é um dos mais ferrenhos lutadores contra a privatização da água no Congresso, afirma que o argumento da falta de recursos para universalização do acesso é mentiroso.

“As empresas que vierem a assumir o setor de água e saneamento vão solicitar empréstimos aos bancos públicos, com juros baixos, com prazo de pagamento longo, quando essas linhas de financiamento poderiam e deveriam ser disponibilizadas para as estatais. Linhas específicas para universalização temos que ter, mas não para o setor privado”, opina Braga.

Segundo o parlamentar, o pressuposto de que o privado é melhor que o público é falso. “Aí está a Vale para demonstrar o contrário”, afirma, mencionando a mineradora privatizada nos anos 90 pelo governo tucano do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, responsável pelos crimes ocorridos em Mariana (2015) e Brumadinho (2019) que, somados, provocaram a morte de quase 300 pessoas e graves danos socioambientais.

Para o ministro de Economia Paulo Guedes, ultraliberal e capitalista de carteirinha, a entrada do setor privado ao setor do saneamento vai ter efeito similar à privatização da telefonia, ampliando o acesso e a cobertura. Braga afirma que essa projeção não faz sentido, pois são “tecnologias e tempos diferentes”.

Na avaliação do deputado Glauber Braga, o que acontecerá na realidade é “uma transferência de monopólio público para o monopólio do setor privado”, onde não haverá aumento da competição. E continuará existindo a falta de interesse das empresas nas regiões mais remotas e não-lucrativas, como acontece até hoje, inclusive no setor de telefonia.

Na contramão do mundo

A privatização dos serviços de saneamento e água tem se revelado desastrosa no mundo. Grandes cidades como Buenos Aires, Berlim, Paris, Kuala Lumpur e Budapeste, são algumas das mais de 300 ao redor do mundo que decidiram retomar o controle sobre seus serviços após os péssimos resultados com a privatização. Segundo o Transnational Institute (TNI), de 2000 a 2017, foram 900 reestatizações.

Foto: Matheus Alves

Juiz e parte

O sobrenome Jereissati é conhecido de longa data no Ceará e no Brasil. O grupo pertencente à família que controla a rede de shopping centers Iguatemi, o Grande Moinho Cearense e tem alta participação acionária na empresa de telefonia Oi. Não à toa, Tasso Jereissati (PSDB), que já governou o estado em três ocasiões, é um dos políticos mais ricos do país. Segundo o portal Congresso em foco, com mais de R$ 389 milhões em bens e patrimônio declarados, Jereissati é dono da maior fortuna informada à Justiça Eleitoral. Eleito em 2014, e com mandato até 2022, Tasso é um dos maiores representantes dos interesses privatistas no Congresso Nacional.

Mas o conflito de interesses entre o público e o privado talvez tenha seu ponto mais alto na questão da água. O grupo Jereissati também tem participação majoritária na Solar Br, uma das maiores produtoras e distribuidoras de Coca-Cola no mundo, e a segunda maior engarrafadora do produto no Brasil.

A Solar surgiu da fusão das companhias Norsa, Renosa e Guararapes. A Norsa era de propriedade de Jereissati, que atualmente é o relator da proposta no senado.

Para o deputado federal Glauber Braga, há nesse caso um “total conflito de interesses” e o senador “nem poderia ser o relator de uma matéria desse tipo”. Ele explica: “quanto maior a presença do capital privado no setor de água e saneamento, maior é também a possibilidade de eles ficarem ampliando o seu poder de intervenção e controle em relação as nossas reservas. Nesse momento, a gente não pode ter meias palavras. Ali há um interesse de natureza privada, que capturou o interesse público pela ação desse senador da República. O Tasso [Jereissati] é o representante da Coca-Cola no Brasil. Pelos negócios que tem, é o senador Coca-Cola”, explica.

Em 2017, Jereissati elaborou também o Projeto de Lei n° 495, que estabelece a criação dos “mercados da água”, prioritariamente em áreas “com alta incidência de conflito pelo uso de recursos hídricos”. O relator da proposta no Senado é José Serra, também do PSDB.

Em linhas gerais, além de tratar a água como uma mercadoria, o texto estabelece que a lógica de mercado será a encarregada de resolução dos conflitos hídricos. Na redação, o senador escreve: “é medida necessária para promover a alocação eficiente dos recursos hídricos em atividades que gerem mais emprego e renda”.

Posicionamento do MAB

Em nota, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) denuncia que o novo marco regulatório do saneamento “busca avançar a estratégia de privatização da água no país” e afirma que “para as empresas transnacionais e bancos, a privatização do saneamento brasileiro está ligada diretamente à tentativa de privatização da Eletrobrás, maior empresa de energia da América Latina, haja visto que se houver a aprovação legal do mercado da água (PL n° 495/17) e a privatização da Eletrobrás, a outorga dos principais rios do país passará para o controle de empresas privadas estrangeiras”.

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