E se rompesse uma barragem em meio à pandemia do coronavírus?

É uma hipótese alarmante e absurda? Não. A pandemia não cancela por mágica as contradições do capital e seus danos já existentes na vida da sociedade. Thiago Alves, jornalista e […]

É uma hipótese alarmante e absurda? Não. A pandemia não cancela por mágica as contradições do capital e seus danos já existentes na vida da sociedade.

Thiago Alves, jornalista e militante do MAB

Vivemos dias extraordinários. A crise que a pandemia do COVID-19 está provocando em todo o planeta vai redefinir nossa geração. Esse exílio dentro de casa que já colocou mais de 300 milhões de pessoas em confinamento obrigatório em vários continentes e outras centenas de milhões de forma voluntária ao redor da Terra será um experimento histórico único que põe em xeque, entre outros fundamentos das sociedades, todo o discurso neoliberal de décadas, democracias representativas, lideranças de poderes e Estados e ideologias dominantes.

“Onde está o Estado?” perguntam aqueles que o destruíram nos últimos 40 anos. E a face mais brutal desta destruição é o drama de milhões de pessoas que não podem fazer o famoso home office (trabalho em casa), ou porque está desempregado ou perdido no trabalho informal ou ainda abandonado nas ruas porque sequer tem casa. Água potável, sabão e álcool gel para estes são um sonho. 

Todas essas reflexões nos levam a considerar como o capitalismo em sua forma mais selvagem defendida pelos extremistas de direita, incluindo os que desgovernam o Brasil, pode destruir a vida em todas as suas mais profundas dimensões. 

Questões semelhantes a estas foram colocadas também quando em 5 de novembro de 2015 a Barragem de Fundão rompeu sobre o reservatório Santarém e 10km depois destruiu Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana, matando 19 pessoas e provocando um aborto forçado. Percorrendo mais de 620 km de cursos d’água, causou o maior crime socioambiental do Brasil até então, superado apenas pelo derramamento de óleo no litoral brasileiro, em 2019.

Eu testemunhei junto com outros companheiros e companheiras desde o primeiro momento o caos instalado na bacia do rio Doce, sobretudo a violência contra a vida dos moradores de Mariana e Barra Longa. O drama dos desabrigados; o luto pelas perdas; a desorganização ou a simples perplexidade sem ação das autoridades; a atuação perversa das empresas desde o início combatendo a organização social; o adoecimento físico e mental em massa; o desespero. Cidades sitiadas pelo horror. Ouvimos mais de uma vez: “isso é uma guerra”.

Três anos depois, em janeiro de 2019, a mineradora Vale, criminosa reincidente, permite outro rompimento. Agora, na barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, ceifando 272 vidas e provocando um desastre social, ambiental, econômico e humano na bacia do Paraopeba. Novamente fomos testemunhas do caos desde a primeira hora.

Nos meses que se seguiram, várias cidades passaram a viver o estado de sítio imposto pelas mineradoras. Foram centenas de famílias expulsas de casa, economias locais e modos de vida destruídos, vida social e comunitária desorganizadas, medo e falta de perspectiva, adoecimentos físicos e mentais em massa. Foi Macacos, Nova Lima, Itatiaiuçu, Barão de Cocais, Congonhas, Itabirito, Itabira, Antônio Pereira, Ouro Preto, entre outras.

Romper uma barragem ou manipular as informações sobre o risco das estruturas virou um negócio pensado, uma fonte de lucros e de ampliação do domínio político, econômico e simbólico dos territórios. Esse é o capitalismo selvagem. Esse é o resultado e o motor da sua multiplicação. 

Um dos aspectos mais dramáticos do resultado desses crimes que se renovam é o da saúde. São danos individuais e coletivos causados pelas contaminações do ar, das águas e dos solos; as incertezas e inseguranças sobre as informações oficiais; as negligências das empresas que pioram a condição de atendimento do SUS nos municípios; e o não reconhecimento destes danos.

Não há dúvidas de que todo rompimento gera por si um caos sanitário e de saúde pública bem como predispõe para tal as regiões ameaçadas. Recordo-me da epidemia de dengue em Barra Longa no primeiro semestre de 2016 que deixou mais de 400 pessoas acamadas. Foi um caos inimaginável em meio a cidade destruída que registrou um aumento de mais 1.000% de casos entre 2014 e 2016, a maior epidemia proporcional a população em um município do Brasil. 

Após vivenciar todas estas situações de violações de direitos e também de ser atingido por elas, a pergunta que fica é: e se rompesse uma barragem em meio à pandemia do coronavírus? É uma hipótese absurda? Não. A pandemia não cancela por mágica as contradições do capital e seus danos já existentes na vida da sociedade. 

Hoje no Brasil existem, pelo menos, 723 barragens classificadas com algum risco de rompimento, segundo o relatório de 2017 da Agência Nacional das Águas (ANA). Esse dado é bastante defasado considerando que das 24.092 estruturas apenas 3% foram fiscalizadas, porque o Estado mínimo neoliberal não se preocupa com segurança dos atingidos e trabalhadores, assim como não se importa com a saúde deles. 

Essa reflexão é para reafirmar o alerta profundo que precisamos fazer: é urgente defender o Sistema Único de Saúde (SUS) e seus trabalhadores e trabalhadoras, único instrumento capaz de garantir uma reação organizada em meio a pandemia. Mas, igualmente, é necessário fazer um apelo às autoridades para que fiquem atentas às comunidades ameaçadas, nas condições de seus desabrigados, dos que moram em áreas de risco não desocupadas, e no que está sendo feito pelas mineradoras para garantir que novos rompimentos não aconteçam, sobretudo neste período. São regiões urbanas e rurais inteiras vivendo nesta dura expectativa. 

Ao mesmo tempo é preciso fortalecer as pautas dos atingidos e trabalhadores das barragens para diferentes finalidades, fazendo dura oposição organizada a atuação das mineradoras, especialmente a Vale, que tem 167 barragens em 5 estados brasileiros e grandes aliados como o Governador Romeu Zema (Novo). Uma de suas iniciativas é destruir uma importante conquista da sociedade que é a Lei 23.291, também chamada de “Mar de Lama Nunca Mais”. Depois de sancionada em 2019, ele quer regulamentar tornando mais reflexível a ponto de continuar autorizando barragens construídas acima de comunidades. 

O mesmo desprezo que ela tem pela justa reparação dos seus crimes, ela demonstra com seus trabalhadores. Em meio a tantos esforços feitos por todas as esferas da federação e pela sociedade civil em geral para combater o coronavírus, a Vale, assim como outras grandes empresas, não parou nenhuma mina, obrigando milhares de pessoas a arriscar a sua vida e a de outros apenas para garantir seus lucros. Na malha ferroviária entre Minas Gerais e Espírito Santo sua ação foi demitir trabalhadores em plena pandemia.

Esse momento extraordinário que vivemos nos pede coragem, recolhimento e cuidados. Mas também pede a consciência de que a superação desse modelo gerador de morte será o resultado de uma luta coletiva, porque somente a organização e a solidariedade constroem direitos e salvam vidas.

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