Cinco mil reafirmam coragem e determinação em defesa das águas em Correntina (BA)
No oeste da Bahia, Audiência Pública reúne milhares de trabalhadores e trabalhadoras para debater e denunciar junto a representantes do poder público os crimes ambientais e sociais na região
Publicado 01/12/2017 - Atualizado 21/08/2024
O uso indiscriminado da água pelo agronegócio nos rios do Oeste da Bahia foi tema de denuncia em Audiência Pública realizada hoje, 01 de dezembro, no município de Correntina. A população do município se uniu a outras seis cidades da região para uma marcha em direção ao Ginásio de Esporte de Correntina, onde ocorreu a atividade.
“Nosso rio está sendo dizimado pelas empresas estrangeiras e nós estamos na rua para denunciar e exigir providências do Governo”, afirma Edelson Alves, morador da região. Ele se uniu aos três mil trabalhadores e trabalhadoras que percorreram as ruas da cidade convocando a população para participar da luta por suas águas.
Convocada pelo Ministério Público Estadual da Bahia, com condução da promotora ambiental Luciana Khoury, a Audiência mobilizou cinco mil moradores, além representações do poder público e movimentos sociais.
O ponto alto da audiência foi as quase duas horas de falas da população com a Fila do Povo, onde pelo menos cinquenta pessoas tiveram a oportunidade de falar suas angústias e denunciar suas insatisfações ao poder público. Maria Pereira faz uma fala indignada onde afirma que não irá desistir da luta, pois a vida depende das águas: “Prefiro morrer de bala do que de sede”, brada.
CRISE HÍDRICA: CULPA DE QUEM?
A atividade é fruto do conflito histórico na região, e que se agravou no dia 02 de novembro, quando cerca de mil moradores da bacia do Rio Corrente ocuparam as Fazendas Curitiba e Rio Claro, da agroempresa japonesa Igarashi. Segundo cálculo da Comissão Pastoral da Terra-CPT, o uso de 182.203 m³ de água por dia, autorizado para as fazendas pelo Inema, abastece 6.600 cisternas de 16 mil litros por dia.
“A crise hídrica que vivemos é também impulsionada pela insuficiência total das instâncias de gestão, os instrumentos não estão sendo aplicados”, afirma a promotora Luciana. Com o objetivo dar início à resolução do conflito de águas na região, o MPE propõe ao Governo do Estado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
Dentre os pontos do TAC estão a suspensão imediata das outorgas em discriminatória e as concedidas a partir de 2015, que o Inema se abstenha de autorizar novas outorgas e a elaboração do Plano de Bacia Hidrográfica do Rio Corrente.
Há anos o Governo do estado concede outorgas para essas empresas com falhas na fiscalização. Para a promotora, é preciso acertar a equação entre os critérios técnicos do INEMA e as informações trazidas pela população. “Se o povo diz que as empresas estão prejudicando o rio, ninguém melhor que quem vive na região para saber”, reforça Luciana.
CRIMINALIZAÇÃO DA LUTA
Após a ocupação das fazendas no dia 02, centenas de famílias têm sofrido com violações de seus direitos. Somada à criminalização da mídia, moradores denunciam que têm sofrido ações de intimidação da polícia para as investigações do caso. O Conselho Nacional de Direitos Humanos enviou uma comissão para acompanhar a audiência e investigar essas ações. “Já estamos acompanhando as famílias e temos as denúncias nas mãos. Vamos cobrar para que o Governo do estado não se omita diante dessa realidade. Crime é o que o agronegócio faz com os rios”, afirma Gilberto, do Conselho Nacional de Direitos Humanos.
No entanto, a luta se reafirmou no dia 11, quando 12 mil pessoas saíram de preto às ruas contra a morte dos rios. Hoje, o que se ouviu na audiência foi a coragem e a determinação do povo dessas águas. “Botamos milhares de pessoas nas ruas para dizer que não temos medo”, afirma o morador Batista Souza. “Se hoje, com sessenta anos, eu for preso pela luta das águas, uma luta que vai beneficiar muita gente, podem me prender que eu vou satisfeito”, diz seu Juscelino, agricultor familiar nas margens do rio Arrojado.
A VIDA NO RIO EM RISCO
Dados do Comitê da bacia do rio Corrente apontam que cinco grandes outorgas autorizadas entre 2015 e 2016 utilizam um total de 290.191 m³ de água por dia. O valor é equivalente ao abastecimento para toda a população de Correntina, rural e urbana, durante 73 dias, ou para todo o município de Brasília por um dia.
Atualmente, mais de duzentas mil pessoas dependem diretamente das águas dos rios da bacia para sobreviver. Seja para o abastecimento doméstico, hospitais, escolas e outros órgãos públicos, ou mesmo para a produção de alimentos pela agricultura familiar, essas águas são de fundamental importância para a manutenção da vida na região. Os moradores cobram que, enquanto as outorgas são concedidas às grandes empresas, os agricultores familiares também devem ter direito a essas concessões.
“Estou aqui pela minha neta, que dorme comigo e acorda toda noite me pedindo “vô, quero água!”. Meu medo é um dia ela acordar e eu ter que dizer “filha, a água acabou””, diz, emocionado, seu Joaquim.
Temóteo Gomes, do MAB, afirma ainda a importância do cerrado do oeste da Bahia para a manutenção dos principais rios do nordeste. “O cerrado é o bioma raiz dos principais aquíferos que se espalham pelo nordeste e alimentam os nossos grandes rios. O desmatamento e o uso desenfreado das águas estão colocando em risco a soberania de todo o Brasil”, alerta.
ENFRENTAMENTO JURÍDICO, MAS TAMBÉM NAS RUAS
“A Audiência foi bastante positiva, fez com que a gente continuasse debatendo o assunto, e deu aos ribeirinhos a oportunidade de falar, colocar aquilo que tava engasgado para fora. Foi bom também para ouvir o apoio do Ministério Público Federal e das entidades presentes, o povo ficou mais empoderado. Foi importante para o ânimo e para a auto-estima da comunidade”, avalia Andréia Neiva, militante do MAB.
Na região há mais de 20 anos, o MAB segue acompanhando os desdobramentos da Audiência. Entre os principais, está o inquérito civil instaurado para investigar as autorizações de outorgas, onde já foi identificada a falta de instrumentos de gestão. A proposta do TAC tem o objetivo de realizar um acordo com o governo para sanar as irregularidades encontradas.
O acordo foi apresentado ao governo no último dia 22, com prazo de resposta em até noventa dias. Ao fim da audiência, Luciana Khoury afirma que está disposta a realizar outras ações e até mesmo audiências públicas caso não haja resposta.
Até lá, alguns encaminhamentos já foram definidos. Os prefeitos e vereadores presentes se dispuseram a participar ativamente na criação de uma lei de proteção ao cerrado. A promotora encampou a proposta, confirmando a participação do Ministério Público no desenvolvimento da nova legislação.
Apesar de não ser promotora criminal, Luciana se responsabiliza também por dar encaminhamento às denúncias contra os pistoleiros na região. “Nos tempos de hoje, não podemos admitir a existência de pistolagem em qualquer região. Precisamos acabar com isso”, enfatiza.
“Esperamos que os encaminhamentos tenham efetividade, mas a gente não quer ilusão. Só vai ser efetivo se a gente continuar com a mobilização das pessoas, não dá para o assunto cair no esquecimento. Fazer o enfrentamento jurídico com as propostas do MP, mas também manter a articulação dos ribeirinhos e todo povo para continuarmos atentos e pressionando”, convoca Andréia.